sábado, 29 de novembro de 2014

Portugal: NÚMERO 44




Quem avisou a televisão? Seja Sócrates culpado ou inocente, temos o direito de saber.

Alice Brito* – Esquerda net, opinião

“E estando já passados quase dois anos que se queimaram pessoas em Lisboa, está o Rossio cheio de povo duas vezes em festa por ser domingo e haver auto-de-fé, nunca se chegará a saber de que mais gostam os moradores, se disto, se das touradas, mesmo quando só estas se usarem” in Memorial do Convento- Saramago

Sócrates é o preso número 44. Sócrates comeu cozido à portuguesa ao almoço. A cela em que Sócrates está tem 8 metros quadrados. Sócrates tomou banho de água fria e pediu um gorro e um par de luvas. Alguém me pode informar o que é que temos a ver com isso?

Somos todos notificados para um voyeurismo primário e insalubre.

Em vez de informação servem-nos a humilhação. Uma humilhação mediática e espectacular.

A procuradoria vai abrir um inquérito para averiguar eventual violação do segredo de justiça. Eventual?

Quando Sócrates foi preso, estava uma televisão no aeroporto. Quem a avisou?

Há anos, num famoso caso de pedofilia, descobriu-se que a fuga de informação partia da cúpula da Polícia judiciária, mais propriamente do seu diretor, o juiz Adelino Salvado, que viria a demitir-se. Foi julgado?

O escândalo é uma espécie de fantasma que assombra as comunidades. Toda a gente se lhe entrega e opina e especula e inventa e potencia o boato que entretanto vai inchando pesado e gordo.

Nada sabemos sobre este caso. Nada. O que sabemos é que um ex-primeiro ministro, amado e odiado até ao paroxismo, foi preso quando chegava a Lisboa por suspeitas dos crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção.

Isto é o que sabemos. A partir daí multiplicam-se as especulações e socializam-se as convicções. O circo montado. Aparecem malas de dinheiro, o quotidiano parisiense, os restaurantes em que comia, os cafés que frequentava, as livrarias a que ia, tudo fazendo parte de um imaginário construído para abater um alvo visível e enfraquecido, acabrunhado, menorizado por palavras e por sorrisos alarves.

Quem avisou a televisão?

O escândalo é proporcional à preguiça e à indolência social. Levamos o tempo a ser colonizados por verdadeiros potentados de discursos para brutos. Um povo em crise é uma matéria-prima invejável para a indústria dos sentimentos das pessoas. Esta indústria tem fábricas e oficinas que vão desde o grande tablóide à pequena oficina argumentativa e emocionada. Tem a fuligem própria das unidades produtivas de Taylor, e linhas de montagem onde se reproduzem verdades inquestionáveis. As dúvidas são para deitar fora. Em horas certas a indústria dos sentimentos expele golfadas em que se jorram nomes apetitosos que tanto podem ser culpados dos crimes mais atrozes, como absolutamente inocentes, circunstância que não interessa a este mecanismo industrial. A culpa ou a inocência são absolutamente secundárias na mecânica especulativa das grandes avaliações que a opinião pública, a grande consumidora destes produtos, vai gerindo. Os media fazem-nos uma visita guiada ao desespero. E o pessoal vai gostando e vai assistindo de bancada como dantes assistia aos autos de fé.

Quem avisou a televisão?

Os tribunais não podem funcionar como grandes empresas de espectáculo.

Quando um juiz foi ao parlamento prender um deputado à frente da televisão, foi um grande profissional de circo.

Não gosto, nem nunca gostei do ex primeiro-ministro, agora preso. Lembro-me dele a entrar-me em casa a anunciar os primeiros cortes, acompanhado de Teixeira dos Santos, uma prótese mal-encarada no cenário formal do início da desbunda. Não esqueço a coincineração na Arrábida, esse crime ambiental. Não esqueço Maria de Lurdes Rodrigues, profissional do aviltamento dos professores.

Mas também não esqueço que a direita começou a invocar Sócrates para justificar toda a canalhice que foi e vai fazendo; que trabalha com afinco e sucesso na moldagem de um bode expiatório para todas as suas trapacices e velhacarias, com aquela dissimulação dos sem carácter; que utiliza de forma sórdida a vida pessoal do homem num concerto de desinformação que nos deve indignar.

Quem avisou a televisão?

Seja Sócrates culpado ou inocente, temos o direito de saber.

*Alice Brito - Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda

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