Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
O
elogio do sofrimento evoca memórias sinistras na história da Europa e do nosso
país. Psicólogos e psiquiatras observam que, em regra, esse elogio surge
associado a estados muito doentios, a uma "pulsão de morte".
Passos,
Portas e C.ª vão celebrar este fim de semana o "êxito" das suas
políticas de aplicação do memorando, assinado com a troika há quatro anos, e
"festejar a saída" daquela entidade como se o seu espírito demoníaco
não estivesse bem presente e a marcar pontos.
Portugal
viveu quatro anos de desajustamentos e a esmagadora maioria da população foi
sujeita a sofrimentos inúteis. As fragilidades detetadas na economia, na
sociedade e na organização e funcionamento da sua vida coletiva não foram
resolvidos; no geral agravaram-se. A continuação das políticas de austeridade,
que o Governo e as instâncias europeias nos encomendam, visam subjugar-nos à
inevitabilidade do sofrimento como destino, para com ele expiarmos as culpas de
sermos povo do sul da Europa e de termos aspirado a um futuro melhor. Para os
donos do clube do euro, se aí quisermos estar terá de ser na condição de
membros de segunda; se quisermos sair esperam-nos todos os castigos do
deus-mercado.
Uma
séria avaliação das políticas do memorando evidencia que os seus resultados
foram desastrosos face aos objetivos enunciados e que em áreas onde os
objetivos não estavam identificados os desastres foram ainda maiores,
provocando efeitos recessivos atrofiadores do futuro. Entretanto, temos
"cidadãos gold" e o empreendedorismo tipo Dias Loureiro passou de
envergonhado a modelo.
Disseram-nos
que em 2014: o PIB estaria apenas 0,4% abaixo do nível de 2010, mas o resultado
foi uma queda de 5,5%; o emprego só diminuiria 1,1%, mas a descida foi de 7,1%
e associou-se-lhe a degradação da sua qualidade e o aumento do desemprego; a
dívida, que segundo as previsões da troika e do Governo devia situar-se no
final de 2014 em 115% do PIB, atingiu aí os 129%; a estabilização do setor
financeiro foi e é uma miragem, de tal forma que em 2014 assistimos à falência
de um dos maiores bancos, o BES.
O
Governo tem propagandeado um "seguro crescimento económico" nos
últimos trimestres, exatamente o mesmo período em que se observa agravamento do
desemprego, o que significa estarmos longe de um crescimento gerador de mais
emprego. Sobre a consolidação orçamental, de que Passos e C.ª se vangloriam, a
Comissão Europeia veio dizer, na última semana, que nada está seguro e que mais
austeridade é precisa.
No
plano das consequências sociais e políticas, escamoteadas no fundamental pelo
memorando, surgem agora bem claros os prejuízos: a isto, hipocritamente, Passos
Coelho chama "modernização" da sociedade portuguesa. Aumentaram a
pobreza e as desigualdades. Em diversas áreas o Governo e a UE querem
transformar programas assistenciais de emergência em programas políticos
estruturais, vinculando "definitivamente" os pobres à pobreza, e
reduzindo a esta condição centenas de milhares de portugueses que pertenciam a
classes médias.
O
esvaziamento da contratação coletiva, a redução de pensões de reforma, a
desvalorização salarial, as alterações à legislação laboral, a ofensiva contra
os direitos do trabalho - depreciativamente catalogados de privilégios -
proporcionaram uma enorme transferência de rendimentos do trabalho para o
capital e puseram em marcha uma dinâmica de mobilidade laboral e social
descendentes. Também a estes retrocessos Passos Coelho chama modernidade.
Num
quadro destes, quando acontecer crescimento económico a sério teremos, sem
dúvida, mais riqueza mas para uma nova forma de distribuição, em que os detentores
do capital receberão uma fatia bem mais gorda do que recebiam em 2010.
A
celebração da vida de que precisamos não é a da submissão a estas injustiças e
ao escuro das "inevitabilidades" que as sustentam. Tal como a
natureza se transforma e renasce a cada ano, também nós portugueses seremos
capazes de uma transformação libertadora, gerando esperança e energias que nos
levem a correr os riscos necessários para garantir trabalho digno, direitos
sociais fundamentais e uma sociedade democrática.
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