Sam
Kriss – Jacobin, Londres - Opera Mundi
A
luta é contra os que atacam cafés e casas de espetáculo, os que bombardeiam
cidades com caças e com seus próprios corpos, os que abandonam refugiados para
fora de suas fronteiras e aqueles que os obrigam a deixar sua terra
Se
escrever poesia após Auschwitz é barbárie, escrever reflexões em forma de
artigo após os ataques em Paris também é uma barbárie. Não politize; não use o
assassinato em massa para obter pontos retóricos contra o adversário, não
pragueje com je te l'avais bien dit, ("eu bem que te avisei"),
não brinque de cabo de guerra com os cadáveres, não aja como se os fatos
dissessem respeito a você mesmo, não aja como se fosse uma questão de política.
Na
verdade, isto tudo é bastante estranho: a morte é sempre política, e não há
nada mais político do que um ataque terrorista. Estes eventos acontecem por
razões políticas e têm consequências políticas; ter uma opinião é algo bom,
embora frustrante, em tempos de paz, mas é absolutamente essencial em tempos de
crise.
No
entanto... Surge um sentimento de repulsa assim que as pessoas comentam sobre o
fechamento sem precedentes das fronteiras francesas, afirmando que nada disso
teria acontecido se a medida tivesse sido tomada antes; quando começam a
resmungar sobre a ameaça global do Islã ou sobre a presença dos estrangeiros;
quando presunçosamente afirmam que a legislação antiarmas deixou a população
indefesa.
Esta
tendência não está limitada à direita: há muitos que se dizem de esquerda e que
também tratam do massacre como um palco propício à encenação de seus autos de
moralidade. E se os agressores fossem brancos? Não estaríamos todos falando
sobre saúde mental? Você sabia que não muçulmanos também cometem atrocidades?
Por que você se importa com isto, e não com todas as outras tragédias que estão
ocorrendo no mundo? Você não consegue perceber que todos estes cadáveres
existem apenas para provar que eu estava certo desde o princípio?
Normalmente,
o dever de não opinar seria aplicável apenas a um pequeno setor da população,
mas nos últimos anos estivemos todos envolvidos. A maioria destas participações
acontece na internet, e parece absoluta e inteiramente errado prognosticar
solenemente o futuro de centenas de catástrofes pessoais nas mesmas plataformas
e da mesma forma como se fala sobre os programas de TV e partidas de futebol.
Boa
parte disso tem a ver com as demandas do próprio meio: você se sente
constantemente encorajado a dar sua opinião e participar da conversa, a
preencher constantemente caixinhas brancas com palavras, já que agora o que
você pensa sobre qualquer assunto se tornou extremamente importante. Antes
mesmo de você perceber, no ímpeto de dar sua opinião e participar da conversa,
já está pisando sobre os mortos. Rabiscamos nossas ideias com sangue. Expressar
qualquer coisa que não pesar é monstruoso.
No
entanto, veja só o que está sendo dito. Na noite do ataque, o presidente
francês François Hollande esteve do lado de fora da casa de shows Bataclan,
onde dezenas morreram, para declarar: "vamos lutar, e a luta será
impiedosa". Haverá mais guerra, mais mortes e tragédias.
As
emissoras de TV estão levando ao ar especialistas que insistem na ideia de que
a culpa é dos migrantes e estrangeiros, como se os refugiados levassem consigo
a violência da qual fugiram. Mais repressão, mais crueldade, mais pogroms.
Ataques terroristas, como todos sabemos, são levados a cabo com o intento de
colocar as pessoas umas contra as outras e intensificar a violência do Estado,
e é isto o que está ocorrendo: a população está dividida e o Estado anuncia sua
determinação em agir com violência.
Isto
já é politização da tragédia, e falar abertamente contra esta situação é apenas
outra forma de politização: será ela inaceitável?
No
dia anterior aos ataques em Paris, dois homens-bomba se explodiram em Bourj
el-Barajneh, um subúrbio predominantemente xiita de Beirute, matando 43 pessoas
inocentes que tocavam normalmente suas vidas. Agências de notícias como a Reuters noticiaram
um ataque contra um "reduto do Hezbollah".
A
humanidade das vítimas desapareceu, elas foram brutalmente reduzidas a um
partido político que grande parte delas sequer apoia. Não foram tratadas como
pessoas, mas sim como um partido, o Hezbollah, como se o que tivesse sido
atacado fosse uma fortaleza armada, e não um bairro repleto de famílias. Muitas
pessoas manifestaram muito claramente seu horror diante disto. Mas fazê-lo
também foi uma forma de politizar a tragédia: isto também era inaceitável?
Quando
honestamente mobilizada, a ordem de que não se politize uma morte significa não
torná-la parte de outra coisa: ela não diz respeito ao tema com o qual você
sempre se importou, não diz respeito a você. Fazer isso é fazer um certo tipo
de política. Mas há outro. Insistir na humanidade das vítimas é também um ato
político que continuará sendo necessário enquanto a tragédia for transformada
em conflito civilizacional ou em desculpa para vitimar os que já são vítimas.
Há
a politização que se aproveita da morte para atingir objetivos políticos
limitados, e há a politização que recusa qualquer texto padrão pré-determinado
a não ser o da libertação. Este último tipo insiste na natureza política da
tragédia não para capitalizá-la em prol de uma ou outra narrativa, ou para impor
um filtro de direita ou de esquerda sobre as imagens da carnificina, mas porque
a política é a saída para tudo isto.
A
atrocidade demanda solidariedade. Compaixão absoluta pelas vítimas; por todas
as vítimas. Insistir em ter uma opinião, não o desdém de quem acreditava estar
certo desde o início, mas solidariedade irresoluta diante da devastação. Lutar
contra os que atacam cafés e casas de espetáculo, contra os que bombardeiam
cidades com caças e com seus próprios corpos, contra os que abandonam
refugiados no frio para fora de suas fronteiras e contra aqueles que os obrigam
a deixar sua terra. Lutar: a luta comum de todos os que sofrem, contra o
sofrimento.
Tradução:
Henrique Mendes - Artigo original publicado no site da revista norte-americana Jacobin - Foto Efe
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