quinta-feira, 1 de junho de 2023

A subida das taxas de juro no Ocidente está a sufocar com dívida o Sul Global

Grace Blakeley* | Jacobin Magazine | Setenta e Quatro

Os decisores políticos do Norte Global responderam ao aumento da inflação aumentando as taxas de juros. Isso é mau para os seus próprios trabalhadores – e está a criar uma crise de dívida em muitos países do Sul Global.

No final do ano passado, o Gana entrou em incumprimento de dívida quando o governo suspendeu o pagamento da maioria dos empréstimos devidos a credores estrangeiros. Em meados de 2022, o Sri Lanka também entrou em default quando a inflação fez o valor da sua moeda cair em derrocada, exacerbando a crise do custo de vida, com bens essenciais, como alimentos e medicamentos, a tornarem-se cada vez mais caros.

Este ano, o Paquistão viu-se à beira do incumprimento do pagamento da sua dívida quando uma combinação de inflação alta e desastres ambientais, fruto do colapso climático, devastaram a sua economia. A situação paquistanesa é particularmente preocupante, visto que a sua população nacional é a quinta maior do mundo. Outros países, como a Zâmbia e o Líbano, estão igualmente em incumprimento, mas há muito mais tempo.

Inflação alta e baixo crescimento global têm arruinado várias economias pobres, ao mesmo tempo que o aumento das taxas de juro têm tornado mais caros os encargos de dívida. Metade dos países mais pobres estão já em situação de sobreendividamento — quando um país não é capaz de cumprir as suas obrigações financeiras e lhe é exigido uma reestruturação de dívida. A outra metade está em risco de cair nessa situação.

Resumidamente, a economia mundial já vive uma crise de dívida soberana. A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (CNUCD) já avisou que os países em desenvolvimento enfrentam uma “década perdida” como resultado da crise de dívida, estimando que os encargos de dívida custarão a estes estados pelo menos 800 mil milhões de dólares.

Há, claro, diferenças claras entre as situações económicas e políticas de cada país atualmente em — ou à beira do — incumprimento. No caso do Gana, grande parte da sua dívida foi contraída a credores domésticos, não estrangeiros. O seu incumprimento cria, portanto, o risco de um profundo abalo ao seu setor financeiro nacional, o que provavelmente ressoaria no resto da sua economia.

O Sri Lanka, antigamente um menino de ouro dos mercados financeiros internacionais pelo seu bom historial de pagamentos de dívida, geriu mal a negociação com os credores quando a crise económica se agudizou. E países como o Paquistão e o Líbano, à beira do incumprimento, sofrem de décadas de corrupção e má gestão política.

Mesmo que seja importante não escusar as elites domésticas das suas responsabilidades no exacerbar das crises de dívida dos seus respectivos países, é também essencial reconhecer os fatores globais que guiam o sobreendividamento pelos países em desenvolvimento — e um dos mais importantes é a maneira como os países ricos estão a lidar com as suas crises económicas.

A crise inflacionária que começou a lavrar pela economia mundial é alimentada por três fatores principais: a recuperação desigual da pandemia, a guerra na Ucrânia e o usualmente esquecido colapso climático. Não são problemas que se resolvam ao remexer no custo de se pedir dinheiro emprestado. E, mesmo assim, tem sido essa a principal resposta dos decisores políticos.

Ao aumentar as taxas de juro, os “banqueiros-centrais” esperam abrandar o crescimento e o desenvolvimento, aumentando o desemprego para tentar disciplinar os trabalhadores, obrigando-os a aceitar salários menores. Ou seja, pôr os trabalhadores a pagar a crise uma crise que não foi criada por eles.

Ainda assim, por todo o Norte Global, os salários reais não estão a acompanhar a inflação, o que significa que muitos trabalhadores estão, na verdade, a sofrer cortes salariais. Se os decisores políticos quisessem realmente parar a inflação, focar-se-iam nos lucros que em muitos setores têm aumentado vertiginosamente, mesmo quando os custos de produção também subiram. A economista política Isabella Weber argumentou veementemente que muitas das grandes empresas têm aproveitado a inflação para aumentar os seus preços muito para lá dos seus custos, embolsando a diferença.

Portanto, aumentos nas taxas de juro não resolverão a crise inflacionária no Norte Global. Irão, todavia, tornar o financiamento das dívidas dos países pobres muito mais difícil. A política monetária atualmente seguida pelos países mais ricos foi desenhada para empobrecer o proletariado doméstico, com o bónus de empobrecer globalmente os países mais pobres.

Já estivemos nesta situação antes. Nos anos 1980, quando o presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, Paul Volcker, aumentou as taxas de juro de forma colossal para disciplinar os trabalhadores norte-americanos, isso levou a dezenas de incumprimentos no Sul Global. O então chamado “choque Volcker” construiu os pilares do neoliberalismo nos Estados Unidos e providenciou convenientemente um pretexto para impor políticas neoliberais no Sul Global.

Quando os países pobres foram forçados a apelar por empréstimos de emergência às instituições financeiras internacionais, receberam essa ajuda em troca da aplicação de políticas como privatização de setores públicos da economia, desregulação e cortes de impostos. Os termos destes empréstimos — chamados programas de ajuste estrutural — dizimaram várias economias, enquanto noutras aumentaram permanentemente a desigualdade.

Ainda assim, parece que ninguém aprendeu a lição dessa crise da dívida da década de 1980. Enquanto países como o Gana e o Sri Lanka pediram ajuda a instituições financeiras internacionais, foram também obrigados a introduzir políticas de austeridade que vão constranger o seu crescimento económico durante anos.

Se a austeridade não funcionou nos países ricos, não irá certamente funcionar nos países pobres, onde um investimento significativo em infraestruturas e serviços públicos é necessário para garantir o desenvolvimento sustentável da economia. Forçar os países pobres a cortar nos seus gastos - numa altura em que são precisas grandes somas de dinheiro para investir em descarbonização e mitigação dos efeitos do colapso climático - vai exacerbar tanto a crise climática como as desigualdades globais.

É urgente o cancelamento de dívida para lidar com a crise global de dívida e com a crise climática. Mais do que forçar países a implementar medidas regressivas e de austeridade que se anulam a si próprias, em troca de empréstimos urgentes, novas linhas de crédito podem ser direcionadas para investimentos em infraestruturas verdes e mitigação climática — e para a proteção de importantes "captadores" de carbono, como as florestas tropicais e as tundras.

Mas, a longo prazo, mesmo o cancelamento de dívida não bastará para fechar o fosso de desigualdade entre o Norte e o Sul globais. Os países pobres foram forçados a contrair tanta dívida porque foram postos numa posição de dependência dentro da economia global, estruturada para enriquecer os ricos e empobrecer os pobres.

Um sistema financeiro internacional extrativista, normas regressivas sobre a propriedade intelectual e políticas neoliberais aplicadas à força fizeram com que a maioria dos países pobres não tenham os recursos necessários para um desenvolvimento sustentável.

A China é, claro, a maior exceção a esta regra. Conseguiu o seu desenvolvimento ao ignorar as regras ditadas pelo Norte Global, ao proteger a sua indústria e priorizar o investimento. Aliás, a China é hoje o maior credor de muitos dos países mais pobres, e a sua atitude perante a reestruturação de dívidas — influenciada mais por razões geopolíticas que por considerações económicas — terá um enorme impacto na resolução desta crise.

Num cenário otimista, os países pobres poderão tirar partido do melhoramento das relações entre a China e o Ocidente para garantir acesso a empréstimos com termos mais favoráveis. Como já o fizeram, através do movimento dos países não-alinhados, Estados pobres podem trabalhar em conjunto para resistir ao imperialismo e garantir cancelamentos de dívida reais.

Num cenário pessimista, estes países serão apanhados no meio de uma nova Guerra Fria. Credores ocidentais recusar-se-ão a negociar com credores chineses sobre como aceitar as reestruturações de dívidas dos países mais pobres, deixando-os presos num limbo. Essa é a exata situação de países como a Zâmbia, cujos credores estão há vários anos para chegar a qualquer acordo sobre a sua dívida.

Uma coisa é certa: a economia mundial não vai recuperar desta crise enquanto a crise de dívida do Sul Global não for resolvida. Mas, no que diz respeito à dívida, a política sempre triunfa sobre a economia. O que se segue será determinado pelo que políticos e decisores na China e no Ocidente considerarem ser do seu maior interesse, e não por aquilo que poderia promover um desenvolvimento sustentável.

Artigo originalmente publicado na Jacobin Magazine.

* Redatora na revista britânica Tribune e autora de Stolen: How to save the world from Financialisation.

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