quinta-feira, 1 de junho de 2023

Portugal | MATERNIDADES: COMO ASFIXIAR O SNS

Daniel Oliveira | TSF | opinião

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) vai realizar convenções com entidades privadas e sociais para realização de partos durante o verão devido às obras no hospital de Santa Maria, em Lisboa. "Se for mesmo provisório, a decisão está certa", defende Daniel Oliveira no seu espaço de opinião semanal na TSF. "Se o SNS perde capacidade num período específico, é natural que tente compensar sem fazer alterações definitivas."

No entanto, lembra, "as carências nas urgências de obstetrícia não são provisórias" e "e a experiência diz-nos que, perante circunstâncias estruturais, o provisório se torna definitivo". Se para as grávidas é indiferente recorrer ao privado ou ao SNS, para o Serviço Nacional de Saúde há um impacto claro: a perda de cada vez mais profissionais.

"Para o Estado, a saúde não é um negócio, mas para os privados é", nota Daniel Oliveira. "A sua lógica é - legitimamente - a do mercado. E no mercado cresce-se roubando clientes aos concorrentes."

Por exemplo, quando os hospitais privados contratam anestesistas oferecendo salários mais atrativos do que no público, "sabem que sem eles o SNS perde mais do que anestesistas - perde capacidade em blocos operatórios", explica o jornalista. "Por falta de anestesistas, já há hospitais a mandarem doentes e cirurgiões do público operar no privado, pagando por isso."

Daniel Oliveira alerta que "os grupos privados de saúde não são complementares - são concorrentes. Concorrem entre si e, claro, concorrem com maior grupo de todos que é o Serviço Nacional de Saúde." E como "a procura na saúde é quase inelástica", ou seja, "as pessoas pagam o que puderem pagar até ao limite", os privados "sabem que aquilo que o SNS não garantir será garantido por eles".

No caso do acordo estabelecido para as maternidades, só podem ser encaminhadas para o privado as grávidas até às 36 semanas de gestação e sem patologia grave associada. Isto é, os casos onde se preveja que nem a mãe nem o bebé venham a precisar de cuidados intensivos. "Ou seja, o Estado pagará para serviços mínimos de obstetrícia, seguidos de alguma hotelaria", ironiza Daniel Oliveira. E é provável que, "se as coisas correrem mal, o internamento dos recém-nascidos ou das mães será transferido para o Estado".

Há uma "única boa notícia" neste acordo, na ótica de Daniel Oliveira: "por uma vez, acautelou-se que os privados não podem usar médicos do SNS", já o texto da convenção estabelece que ficam proibidos fazer contratações de profissionais do público nesse período.

Daniel Oliveira indica que "no privado, muitos dos partos são feitos pelos obstetras particulares das grávidas", conseguindo assim "funcionar com dois médicos da urgência, enquanto o público é obrigado pela Ordem dos Médicos a ter cinco".

"Veremos se com o novo bastonário [Carlos Cortes] que, ao contrário do anterior, não é um comissário partidário, as exigências passam a ser mesmo iguais para todos", apela.

Se o recurso aos hospitais privados para assegurar os partos durante o verão não for provisório, "o Estado estará a dar ao privado mais um empurrão, com margem de lucro garantida e sem riscos, o que lhes oferecerá, se for mais generalizado, uma almofada financeira para ir buscar obstetras ao SNS", alerta Daniel Oliveira. "Um SNS que paga mal, é obrigado a cumprir regras mais apertadas e fica com tudo o que é complicado, e por isso, mais caro - é com esta enorme vantagem concorrencial que os grupos privados ficam a ganhar."

"O Estado dá ao privado o filé mignon do negócio para não pagar mais aos seus, garantindo-lhe músculo para crescer mais um pouco e ir buscar aqueles a quem o Estado paga mal. É um círculo vicioso", lamenta o comentador. O maior risco, a longo prazo, é que o privado acabe "por canibalizar o sistema público às custas do Estado".

Para Daniel Oliveira, "o sistema que temos alimenta sua própria destruição, criando condições para que sejam os utentes, perante o desinvestimento no SNS - que desvia recursos para privado - a desejarem a sua privatização, até se matar o SNS por auto asfixia".

"Já aconteceu em várias áreas, espero que não esteja a ser preparado nas maternidades", condena.

Texto: Carolina Rico

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