Estão
na Amazônia ou Chaco 90% dos grupos não-contactados do planeta. No Brasil, são
defendidos pela Constituição, mas pressionados pelo “progresso”. Como
tratá-los?
Antenor
Vaz, no Le Monde Diplomatique – em Outras Palavras
Avistamentos
ou contatos com indígenas “isolados” na América do Sul têm sido notícia
recorrente na imprensa internacional. Brasil, Equador, Peru, Colômbia, Bolívia,
Paraguai e Venezuela abrigam mais de duas centenas de referências sobre a
presença de grupos indígenas isolados e/ou recém-contatados.
O
Brasil voltou a ser notícia quando um grupo de sete indígenas isolados decidiu
contatar os ashaninka da aldeia Simpatia (localizada na Terra Indígena
Kampa/Isolados, no Alto Rio Envira, Acre, uma região de fronteira do Brasil com
o Peru). Um grupo de isolados, na manhã do dia 11 de junho, tentou comunicação
verbal, mas não foi compreendido pelos ashaninka. Por meio de gestos,
solicitavam roupas e objetos industrializados – facões, panelas, entre outros.
Faz cerca de três anos que esses “indígenas não contatados” são avistados
próximo das aldeias dos ashaninka em busca de objetos industrializados e
produtos das roças.
Esse
fato desperta curiosidade acerca do então grupo isolado, mas também suscita
outras questões: existem outros grupos indígenas isolados no território
nacional? Quantos são? O que ocorre com esses grupos após o contato efetivado?
Existem políticas públicas dirigidas a esses povos? Como o Estado brasileiro
concebe essa questão e quais são os instrumentos de “proteção” para eles?
Povos
indígenas isolados
Cerca
de 90% dos povos indígenas isolados que restam no planeta vivem em sete países
da bacia amazônica e chaco paraguaio, em florestas onde os ciclos
ecossistêmicos e a biodiversidade se encontram preservados. Esses povos
mantêm-se em isolamento como defesa de um contato que se mostrou destruidor,
seja por conflitos com o “branco” ou com outros povos indígenas. A decisão de
isolamento é manifestada por atos de ameaça dirigidos a invasores, mas principalmente
pela fuga sistemática em direção a territórios cada vez mais distantes das
frentes de expansão da “civilização” – territórios escassos e submetidos à
avidez que cobiça cada centímetro de terra para a completa conversão da
“natureza” em “recursos naturais”.
Para
o Estado brasileiro, a definição de “índios isolados” ainda é a do Estatuto do
Índio (1973): “quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos
e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão
nacional”. Grupos indígenas de recente contato, para a Funai, são “grupos que
mantêm relações de contato permanente e/ou intermitente com segmentos da
sociedade nacional e que, independentemente do tempo de contato, apresentam
singularidades em sua relação com a sociedade nacional e seletividade
(autonomia) na incorporação de bens e serviços”.
Com
a Constituição de 1988, a
Funai instituiu a política específica de proteção aos índios isolados, calcada
na “premissa do não contato” enquanto “prerrogativa da autodeterminação” desses
povos. E, em 2009, reconheceu a necessidade de conceber políticas diferenciadas
para os grupos de recente contato. A despeito de iniciativas abnegadas de
servidores, da sociedade civil organizada e de indivíduos isolados, essas
políticas tendem a ser pouco efetivas diante do sucateamento e do desprestígio
do órgão indigenista oficial perante as demais políticas de governo. Mas,
afinal, qual é a política de Estado para os povos indígenas isolados e de
recente contato no Brasil de hoje? Para responder, é necessário retroceder na
história.
A
política indigenista da Colônia à República
A
política indigenista na Colônia, Império e República Velha no Brasil levava a
marca do tráfico indígena e negreiro e dos conflitos entre as oligarquias
locais, secundadas pelas vagas de imigração europeia. Nesse contexto, “a
questão indígena” transitou de uma questão de mão de obra para uma questão de
terras[1]. O debate girava entre exterminar os índios “bravos” ou civilizá-los.
Para efeito prático/administrativo, até o século XIX os índios se subdividiam
em “bravos” e “domésticos ou mansos”. Os “bravos”, não se submetendo aos
aldeamentos e, consequentemente, às leis, eram perseguidos e exterminados.
Essas duas concepções povoam o imaginário da população brasileira. A criação,
em 1910, do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores
Nacionais (SPILTN), renomeada em 1918 como Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
racionalizou a incorporação dos territórios e das populações indígenas à
sociedade brasileira na Primeira República. O principal articulador desse
projeto foi o Marechal Rondon, que aplicava um sistema militar de defesa da
integridade territorial no país. Para o SPI, cabia à República
resgatar as populações indígenas do extermínio.
O símbolo da nova orientação
foi a substituição da palavra “catequese” pelo termo “proteção”.
De maneira geral, podemos afirmar que a política indigenista do Estado
resumia-se à política de atração/pacificação como premissa de proteção,
fomentando a passagem dos índios a trabalhadores agrícolas, levando ao
extermínio físico e aniquilação cultural dessas sociedades, e servindo à
integração dos territórios indígenas à
sociedade brasileira.
Funai
– “Contato” enquanto paradigma de “proteção”
Em
1967, em meio a denúncias de corrupção no SPI, foi instaurada uma Comissão de
Inquérito no órgão. O Relatório Final [2], publicado em 1968, entre outras
conclusões, determinou a demissão e a suspensão de duas dezenas de servidores.
Nesse mesmo ano e num contexto de reorganização burocrática do Estado, os
militares extinguiram o SPI e criaram a Funai. No que se refere aos índios
isolados, mantiveram-se os princípios do contato/atração enquanto norteadores
da proteção.
Proteção
dos índios isolados no contexto da redemocratização
Em
1987, a
Funai criou a Coordenadoria de Índios Arredios, atribuindo-lhe a competência de
coordenar as ações relativas à atração e ao contato com grupos indígenas
“arredios”. Naquele mesmo ano, coordenado pelo sertanista Sydney Possuelo,
ocorreu o I Encontro de Sertanistas, que teve como finalidade a“análise da
política de atração dos grupos indígenas arredios, visando definir uma nova
postura da Funai”.Esse evento tornou-se um marco divisor, uma vez que formulou
a mudança do paradigma do “contato” para o “não contato” enquanto premissa para
a proteção dos isolados. E, ainda em 1987, a Funai introduziu a Coordenadoria de
Índios Isolados(CII) [3], estabeleceu diretrizes e criou o Sistema de Proteção
ao Índio Isolado (SPII). Tendo
como referência a Constituição de 1988 e o princípio da autodeterminação dos
povos, a Funai definiu como uma de suas diretrizes garantir “aos índios e
grupos isolados o direito de assim permanecerem, mantendo a integridade de seu
território, intervindo apenas quando qualquer fator coloque em risco a sua
sobrevivência e organização sociocultural”. A experiência inovadora
desenvolvida pela Equipe de Localização dos Índios Isolados da Reserva
Biológica do Guaporé, entre 1989 e 1994, resultou na primeira terra indígena
demarcada exclusivamente para um grupo isolado, sem se estabelecer o contato.
O
SPII, concebido originalmente em 1987, é a estrutura administrativa destinada à
proteção física, patrimonial e cultural dos grupos indígenas isolados. Em 2007,
após duas décadas de experiência, formulou-se o Sistema de Proteção e Promoção
de Direitos para Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC),subdividido em
quatro subsistemas: 1) Gestão (Planejamento, Administrativo, Sistematização,
Comunicação e Capacitação); 2) Proteção (Localização, Monitoramento e
Vigilância); 3) Promoção de direitos (Processos Educativos e Intercâmbio,
Educação Etnoambiental e Saúde); e 4) Contato. As ações de proteção, promoção
de direitos e contato são desenvolvidas por equipes denominadas Frentes de
Proteção Etnoambientais (FPEs). Nesse sistema, o contato pode ser estabelecido
por decisão do grupo indígena isolado, por estranhos, ou pela Funai quando se
caracteriza perigo eminente de extinção.
Em
2003, com a definição de um novo estatuto para a Funai, criou-se a Coordenação
Geral de Povos Indígenas Recém-Contatados,mas o tema relacionado aos grupos de
recente contato só voltou à discussão em 2007 e se institucionalizou com a
reestruturação da Funai entre 2009 e 2012. A partir das práticas desenvolvidas com
os grupos indígenas de recente contato (zo’é, korubo, akuntsu, kanoé,
piripikura, awa guajá, entre outros), surgiu a necessidade de repensar as ações
instituídas. Em 2010, deu-se início à concepção de programas nos quais se
priorizaram a promoção sociocultural e a proteção física e territorial desses
povos sujeitos a extrema vulnerabilidade, que resultariam na formulação da
Política para Povos Indígenas de Recente Contato. Até hoje a Funai ainda não
publicou portaria instituindo essa política pública.
Quantos
e onde estão os índios isolados e de recente contato no Brasil?
Em
1988, o sertanista Wellington Figueiredo mapeou os grupos indígenas isolados no
Brasil, relacionando 88 localizações com possível presença de grupos de
isolados. A cada uma dessas localizações atribuiu-se a nomenclatura de
“referência”.
As
últimas atualizações realizadas pela Funai indicam 104 registros de índios
isolados e dezesseis de grupos considerados de recente contato no Brasil (veja
tabela).
Cenário
atual: duas décadas do SPII
Após
26 anos de execução do Sistema de Proteção ao Índio Isolado, é possível
celebrar a eficácia de seus princípios: o respeito à decisão dos povos de se
manterem isolados e a autodeterminação dos grupos de recente contato. No
entanto, dificuldades de ordem conjuntural e estrutural apontam para um colapso
do SPIIRC. O aumento da pressão da frente expansionista/desenvolvimentista
pelos territórios ocupados por índios isolados e de recente contato, inclusive
nas regiões de divisas internacionais, a falta de apoio político ou omissão dos
poderes constituídos, o aumento das ações proselitistas missionárias, as
atividades econômicas ilegais, os empreendimentos de grande impacto derivados
de políticas e programas de governo, e os empreendimentos privados levarão os
grupos isolados a procurar contato como única forma de sobrevivência. Dessa
forma, a política estatal de “não contato” vai configurando-se como mera ficção
retórica.
Desafios
da política para índios isolados e de recente contato
Neste
passeio pela atuação do Estado, o termo “proteção” assumiu conotações e
práticas distintas, a depender do momento político/econômico: a “proteção”
enquanto pacificação/contato, com a finalidade de incorporar os indígenas à
civilização (Rondon); contato na perspectiva do protecionismo com “aculturação”
lenta e controlada dos indígenas (irmãos Villas Bôas); contato na perspectiva
do integracionismo ao mercado regional (Francisco Meirelles) [4]. Todas elas
sob o guarda-chuva do contato enquanto prerrogativa da “proteção”. Já na Nova
República, com a decisão tomada na Reunião dos Sertanistas (1987) no âmbito do
processo constituinte, a política para grupos isolados mudou radicalmente ao
adotar o “não contato” enquanto premissa de proteção e a consequente introdução
do Sistema de Proteção ao Índio Isolado na perspectiva da proteção territorial
(Sydney Possuelo). Atualmente, a Funai/Coordenação Geral de Índios Isolados e
Recém-Contatados (CGIIRC) tenta dar continuidade à política de proteção na prerrogativa
do não contato; as políticas de governo em curso, porém, não acenam com a mesma
postura. Com essa compreensão, observa-se um paradoxo entre a finalidade de
“proteção” para a qual a Funai fora criada e sua relação com o Poder Executivo,
a quem é subordinada, quando este coloca em prática políticas que impactam os
grupos isolados e de recente contato.
É
necessário e urgente que a Funai, em cooperação com a sociedade civil, resgate
sua atribuição constitucional de proteger e promover os direitos indígenas,
incluindo os grupos isolados e de recente contato de modo que seus técnicos e
dirigentes não se desviem dessa atribuição. O que se observa hoje é um volume
grande de “tarefas administrativas” sendo exercidas por
sertanistas/coordenadores de FPEs e seus auxiliares, impossibilitando-os de
atuarem nos trabalhos de proteção in situ, que lhes competem.
Como
já dito no início: as políticas indigenistas subordinam-se aos planos de defesa
nacional, construção de estradas e hidrelétricas, expansão da
agropecuária/agronegócio e extração de minérios. No papel, as mais nobres
intenções valem, mas, de fato, as disputas em torno da questão indígena, desde
o tempo colonial, têm como cenário de fundo o ordenamento territorial e os
recursos naturais. E, para a Funai, resta mitigar os efeitos de uma política da
qual é refém. Esse contexto reproduz-se na maioria dos países sul-americanos
com presença de índios isolados e de recente contato. No entanto, como na
Colômbia, as políticas e metodologias de proteção têm tido avanços
consideráveis. E a Funai, refém das políticas desenvolvimentistas, como a
seleção brasileira de futebol, vai perdendo seu lugar de protagonista no campo
da proteção para índios isolados e de recente contato.
_________
*Antenor
Vaz é físico, educador e sertanista. Especialista em laboratórios
didáticos de física, trabalhou nas áreas de educação popular, metodologias de
trabalhos com jovens e gestão de projetos sociais. Sua maior experiência na
área social deu-se com educação indígena e coordenação de trabalhos de
localização de grupos indígenas isolados na Amazônia brasileira. Pôs em prática
a Política para Índios Isolados na região amazônica, o que possibilitou a
criação da primeira Terra Indígena (T.I. Massaco) exclusiva para índios sem
contato reconhecida pelo governo brasileiro. É membro do Comitê Consultivo
Internacional para Assuntos de Índios Isolados e em Contato Inicial. Foi
coordenador de políticas para índios de recente contato na Coordenação Geral de
Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai até março de 2013.
1
Manoela Carneiro da Cunha, “Política indigenista no século XIX”. In: História
dos índios no Brasil, Companhia da Terra/Secretaria Municipal de
Cultura/Fapesp, São Paulo, 1992.
2
Esse relatório tornou-se nacionalmente conhecido como “Relatório Figueiredo” e
ficou desaparecido por mais de quarenta anos. Recentemente foi localizado nos
arquivos do Museu do Índio, no Rio de Janeiro. O relatório denuncia não só os
casos de corrupção do SPI, mas também todo o processo de repressão e barbárie
exercido pelo Estado contra os indígenas.
4
Carlos Augusto da Rocha Freire, Sagas sertanistas: práticas e representações do
campo indigenista no século XX, tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2005.
Na
foto: Em 27/6, povo indígena isolado estabelece primeiro contato com indígenas
da etnia ashaninka e Funai, na Aldeia Simpatia da Terra Indígena Kampa,
fronteira do Acre com Peru
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