sábado, 28 de julho de 2012

O OLHO DO PIRATA



Rui Peralta

Durante o século XVII e século XVIIII piratas e corsários criaram uma rede de informação global dedicada, principalmente, aos negócios proibidos. Repartidas pela rede havia ilhas remotas, muitas delas “escondidas” e fora das rotas comerciais, onde os seus barcos descarregavam os frutos da pilhagem e eram aprovisionados. Algumas destas ilhas eram autênticas micro-sociedades e mantinham comunidades que intencionalmente ali estabeleciam o seu espaço vital, vivendo de forma consciente fora das leis dominantes. Em alguns casos essas comunidades formaram autênticas “utopias piratas”, como denominou-as Hakim Bey.

As tripulações piratas eram constituídas por rebeldes proletários - excluídos ou autoexcluídos das sociedades europeias da época - escravos fugidos e mestiços “filhos incógnitos”, nobres proletarizados, burgueses falidos, aventureiros, marginais de todos os tipos e idealistas. Operando a partir dos enclaves, portos livres e ilhas (as utopias piratas), atacavam o comércio dos Impérios, as carregadas embarcações imperiais que comercializavam com as colonias, base do emergente sistema global de exploração, escravatura e colonialismo.

Pode-se imaginar, facilmente, que para estes homens e mulheres, a atração exercida pela vida no mar, livre, sem ter que responder a ninguém, era fascinante. A sociedade europeia da época estava mergulhada na emergência do capitalismo, em guerras, escravatura, lutas pela posse das terras, extrema pobreza e condições de vida miseráveis. A igreja exercia, ainda, um grande domínio sobre todos os aspectos da vida humana e as mulheres tinham poucas alternativas á escravatura a que eram sujeitas pelos maridos. A vida do mar era uma fuga para muitos, mas ser marinheiro das tripulações dos Impérios, ou dos mercadores ricos, não era, também, solução. As tripulações eram sujeitas a sevícias e a condições de vida que não eram muito diferentes á sua vida em terra. Em oposição a isto, os piratas criaram um mundo, construído por eles, longe das leis religiosas e imperiais, onde as decisões eram discutidas pelo colectivo das tripulações, assim como a vida nas comunidades era sujeita á participação e ao voto.

A era de ouro da pirataria está mergulhada na fase de globalização criada pela chegada a África e á América das embarcações espanholas e portuguesas. Novas tecnologias tinham permitido as viagens marítimas de longo curso, realizadas com regularidade e relativa segurança. Os novos impérios emergiram, não através das vias terrestres, mas pelo controlo e descoberta das vias marítimas. Espanha e Portugal eram as duas superpotências dos finais do século XV e de grande parte do século XVI, mas não por muito tempo. A França, a Holanda e a Inglaterra emergiam concorrendo pelo controlo das vias marítimas, recorrendo a todos os meios para o conseguirem. Um desses meios foi a pirataria, feita por aventureiros, misto de espiões e mercenários, que trabalhavam para as respectivas coroas dos seus países, ou em alguns casos, oferecendo os seus serviços a quem pagasse mais.

Durante o seculo XVII as potências emergentes tinham derrotado as grandes potências Ibéricas, estabelecendo-se como impérios. As novas tecnologias da navegação permitiam que o comércio marítimo não fosse apenas realizado com base nos produtos de luxo e tornou-se a base do comércio internacional intensivo, essencial às origens e crescimento do capitalismo. A expansão massiva do nascente comércio marítimo em grande escala criou uma larga população de marinheiros, uma nova classe de assalariados, que nunca antigamente existira em tão grande número, especializada em novas funções (timoneiros, cordoeiros, navegadores, artilheiros navais, manobradores, carpinteiros navais, serralheiros, cordoeiros, etc.).

Os novos impérios deixaram de utilizar a pirataria e a figura do bucaneiro, do corsário, o aventureiro, espião e mercenário estilo Francis Bacon, deixou de fazer sentido para os novos mercadores e para os burocratas dos novos impérios, mais interessados nos registos contabilísticos das mercadorias transportadas e nos balanços finais. As classes dominantes reconheciam-se neste comércio regular e altamente lucrativo. Os piratas tornaram-se, então, massas proletarizadas, sem lugar na nova economia. Mas tinham embarcações, conheciam as rotas marítimas e detinham um grande conhecimento de navegação e das novas tecnologias marítimas. Por outro lado as tripulações eram compostas por gente de todas as nacionalidades, línguas e raças. Brancos, Negros e Mestiços, gente de todos os continentes, analfabetos e letrados, rufias, ladrões, aventureiros, trabalhadores, intelectuais provenientes da nobreza e da burguesia caídos em desgraça, ex-clérigos que nas suas viagens encontraram outras verdades para além dos dogmas religiosos e da teologia, homens de ciência, médicos, guerreiros africanos e asiáticos, escravos fugidos, tudo homens e mulheres que descobriram que poderia existir um outro mundo para além do mundo dos Impérios e das classes dominantes, que podiam construir o seu mundo, muito diferente do mundo dos senhores do mundo.

As ilhas do Caribe na segunda metade do século XVII eram locais de rebeldes e pauperizados imigrantes vindos de todo o mundo. Milhares de deportados irlandeses, escoceses, exilados franceses, dissidentes religiosos de toda a Europa, Judeus, prisioneiros políticos, ex-escravos alforrados, mestiços (considerados filhos do pecado), enfim uma multidão de deserdados. Os movimentos revolucionários proto anarquistas da guerra civil inglesa na Republica de Cromwell, tinham sido derrotados e os seus cabecilhas e protagonistas foram espalhados pelas colonias penais do Novo Mundo. Muitos destes insurrectos juntaram-se aos rebeldes piratas nas Caraíbas. Muitas das tripulações assumem a designação das sociedades secretas revolucionárias inglesas, escocesas, irlandesas e francesas. Diggers, Ranters, Muggletonians, Homens da Quinta Monarquia, Sem Deus, Pedreiros do Povo, Republica dos Livres e Iguais, etc. Um grupo de Piratas sediados no Madagáscar, deu o nome á Baia onde as suas embarcações eram reparadas de Ranters Bay, em homenagem aos Ranters, insurrectos ingleses. Homens como o líder insurrecto dos Levellers (Revolta dos Niveladores, em 1640 na Inglaterra), o ferreiro John Lilburne tornou-se membro influente de uma tripulação e líder de uma comunidade pirata numa ilha das Índias Orientais, ou o leader Ranter o carpinteiro Perrot e Joseph Salmon o mais conhecido intelectual dos Ranter, que se tornaram piratas nos Barbados. As Caraíbas tornaram-se de tal forma radicais que quando o líder religioso Quacker, James Nayler foi condenado ao exilio em 1656, o Parlamento Britânico fez menção de que o seu exilio não fosse nas Caraíbas, porque (cito) “é um local demasiado inflamado para um radical com a importância de Naylet. Seria como atirar um archote para um barril de pólvora (…).”

Existiam mais de 80 mil escravos negros nas plantações das Caraíbas, onde eram frequentes sangrentas rebeliões. Em 1649, nos Barbados, uma estranha revolta de escravos negros com trabalhadores brancos de origem irlandesa obrigou o Governador a fugir. A revolta só foi reprimida de forma sangrenta pela artilharia britânica e os sobreviventes formaram grupos guerrilheiros de brancos e negros. Este padrão foi observado na época em revoltas nas Bermudas, Montserrat, St. Christopher e Jamaica. A população negra, para fugir da escravatura refugiava-se nas comunidades piratas e alguns chegaram mesmo a posições de destaque nessas comunidades, ou a dirigirem embarcações. Um deles foi Abraham Samuel, conhecido pelos franceses por Tolinor Rex e pelos ingleses como Capitain Black. Samuel era um escravo africano quando fugiu da colonia francesa de Martinica e reuniu-se á tripulação do John and Rebecca, um temido e audacioso barco pirata. Samuel chegou a contramestre e mais tarde foi eleito capitão. Em 1696 a sua tripulação capturou uma valiosa fortuna pelo que decidiram retirar-se e criar uma comunidade no Madagáscar. Alguns meses depois da chegada a esta ilha Samuel foi reconhecido por uma rainha local, afinal a sua mãe, que o tinha perdido quando os franceses o levaram, ainda criança, como escravo para a Martinica. Mais tarde tornou-se rei do seu grupo tribal e deu guarida a várias comunidades piratas nos seus territórios.

Os Piratas eram agitadores natos. Infiltravam-se nas tripulações mercantis e estabeleciam, assim, não só uma vasta rede de informações, como, simultaneamente, um sistema de recrutamento. Uma das formas de luta mais usadas pelos piratas eram os motins. A dura disciplina a que as tripulações das embarcações imperiais e das companhias comerciais eram submetidas, criava um ambiente propício á agitação. Um dos maiores agitadores e amotinadores de tripulações era Edward Buckmaster, um marinheiro que em 1696 juntou-se á tripulação de Capitão Kid, depois de ter sido preso inúmeras vezes por agitação e amotinação de diversas tripulações comerciais, ou Robert Culliford, condenado á morte - mas que nunca foi capturado, morrendo de velhice em Trinidad e Tobago - que liderava motins empolgando de tal forma a tripulações que estas aderiam á pirataria levavam a embarcação ou formavam novos núcleos de amotinação.

É toda uma textura de rede de informação que está por detrás das utopias piratas. Embarcações, tripulações, comunidades e ilhas, que estabelecem contactos entre si, códigos comuns, como a linguagem, os gestos, as temáticas e muito igualitárias, sem estruturas hierárquicas. Os capitães dos barcos são eleitos pelas tripulações, nos barcos e pelas comunidades nas ilhas. Podem ser depostos por vários motivos. Toda a cadeia de comando é funcional e operacional e não uma rígida hierarquia. Informação, mobilidade, circulação da informação. Nos barcos e nas ilhas. Aliás as comunidades piratas nas ilhas são organizadas a partir do modelo das tripulações nos barcos. Espaços de liberdade preenchidos pela informação, vasos comunicantes.

Bruce Sterling, um dos expoentes da ficção científica cyberpunk, abordou numa das suas publicações, a hipótese de num futuro próximo, com a decadência dos sistemas políticos, assistirmos a uma proliferação descentralizada de experimentos sociais e culturais, portanto, políticos: gigantescas corporações de propriedade operária, enclaves independentes dedicados á pirataria de dados, enclaves verdes/social-democráticos, enclaves de trabalho zero, zonas sem estado, anarquistas, comunidades anarco-comunistas, áreas libertárias de estado mínimo, de mercado livre ou anarco-capitalistas, etc. A economia da informação que sustenta essa diversidade é chamada “a rede” e os seus enclaves, zonas, áreas, os seus espaços dentro do vasto espaço que é a rede, Sterling denomina-os por “Ilhas na Rede”.

Os piratas fundaram um sistema que consistia numa rede de ilhas e barcos e portos, conectados por um ágil fluxo de informação (e contrainformação), em guerra com todos os governos e com os grandes mercadores e capitalistas. A interligação das zonas autónomas piratas foi o segredo da sua afirmação e da sua sobrevivência durante o capitalismo nascente na Europa e na América. A tecnologia moderna converte essa autonomia, subvertendo-a e possibilitando um mundo inteiro, global, de zonas autónomas. Para o conquistarmos, a esse mundo de liberdade, isento das tiranias do capital e do estado, isento das alienações que nos afastam da nossa humanidade intima e da nossa individualidade, temos de fazer como os piratas: construir espaços, defendê-los, ampliá-los e sustentá-los ou torna-los autossustentáveis.

Extrapolando as histórias do passado e do futuro sobre as ilhas em rede, podemos acumular evidencias para afirmar esses espaços, esses enclaves livres, utopias piratas, zonas libertadas, no presente. Hakim Bey designa-as por Zonas Temporalmente Autónomas. No contexto actual não podem ser explicadas teoricamente, apenas afloradas. Talvez porque só possam ser entendidas na acçäo.

Fontes
Hakim Bey; Zona Temporalmente Autónoma; Talasa Ediciones
Daniel Defoe (Captain Charles Johnson); A General History of the Pyrates; Edited by Manuel Schonhorn, London, Dent, 1972
Larry Law; Misson and Libertatia; Dark Star Press, London, 1991
The Complete Works of Oscar Wilde; Glasgow, Harper Collins, 1994
Howard J. Ehrlich (ed.); Reinventing Anarchy, Again; Edinburgh, AK Press, 1996
John Nicholson; The Great Liberty Riot of 1780; London, Bozo, 1985
John Stanhope; The Cato Street Conspiracy; London, Johnathan Cape, 1962
Lawrence Osborne; A Pirate's Progress: How the Maritime Rogue Became a Multicultural Hero; http://www.linguafranca.com
Lionel Wafer; Voyage de Mr. Wafer, Ou l'on trouve la description de l'Isthme de l'Amérique; http://www.buccaneer.net/piratebooks.htm

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