Rui Peralta, Luanda
I - O 11 de Setembro
de 2001 representa o início de uma nova maratona extensivamente global, por
parte de governos e agências de inteligência. A consequência principal dessa
expansão do poder estilhaça a privacidade e as liberdades, em nome de uma
segurança cada vez mais omnipotente, omnipresente e omnisciente, vendida e
martelada nas mentes dos cidadãos, como o bem mais precioso da humanidade.
A paranoia, o
sentimento orwelliano, as fantasias, as ilusões, encontram-se por detrás das novas
políticas e estratégias da denominada “segurança nacional”, um sector que foi
reduzido á sua expressão de controlo mínima e á sua máxima capacidade
instrumental repressiva. A vigilância generalizada de populações inteiras, a
militarização da Internet, o fim da privacidade, o individuo espezinhado, a
fragmentação da persona, a humilhação de tudo o que é humano no ser, são os
fios condutores da segurança nacional a nível global.
Este é um novo
credo, cujo fim consiste em criar uma cerca em torno do debate, do
contraditório, do espirito crítico, assegurando, simultaneamente, que os
Estados (e toda a multiplicidade de interesses das elites que aí, de uma forma
darwinista, evoluem, utilizando os mecanismos de sobrevivência e de selecção)
não tenham de prestar contas ao poder publico, ou seja, á soberania popular.
Tudo é feito na
sombra. As leis secretas, as interpretações secretas das leis secretas, os
tribunais secretos, a anulação da fiscalização por parte do poder legislativo e
judicial, a política secreta, os gangues secretos e as facções secretas das agências
secretas, enfim um “admirável novo mundo” (admiravelmente velho), conhecido por
“sociedade da informação”, onde o “conhecimento é valor máximo” (o conhecimento
de pacotilha, claro, divulgado pela industria mediática global, através dos
seus guturais papagaios, catatuas e outros personagens circenses, muitos deles
académicos de pacotilha, licenciados, mestrados e doutorados em Universidades
da farinha Amparo, ou com os MBA´s que saem na Maizena) e onde a cidadania é
considerada um crime de lesa-majestade.
São tempos
irónicos, os tempos que correm. John Kiriakou, um ex-agente da CIA, está na
prisão porque informou os cidadãos norte-americanos sobre os actos de tortura
praticados pela CIA nos USA, enquanto os torturadores (e os que possibilitam a
práctica de tortura) passeiam-se em liberdade. Snowden não é caso único e
isolado. Thomas Drake, William Binney e Kirk Wiebe, funcionários da NSA
(Agencia Nacional de Segurança, dos USA) revelaram fraudes em grande escala,
denunciaram abusos de poder e uma multiplicidade infindável de ilegalidades que
tornaram-se modus vivendi dessa agencia e do resto do aparelho de estado dos
USA, constataram na práctica as consequências da “real politik”: 100% de perseguição
e 0% de responsabilização.
A intenção desta política
é simples. Longe vão os tempos em que poderíamos todos concordar com Winston
Churchill: a democracia é a pior forma de governo, excepto as restantes. Nos
tempos que correm, os governantes (e os ideólogos da segurança, os estrategas
da “inteligência” – cada vez mais entre aspas – e outros predadores alienígenas)
parecem querer provar o contrário, enterrando Churchill com o seguinte
epitáfio: Qualquer forma de governo é preferível á democracia.
Milhões de
funcionários realizam as suas tarefas diárias de espiar a Humanidade e de
transmitir informação aos seus Senhores, nesta nave espacial buckminsteriana, que
gira numa órbita heliocêntrica e que nos serve de habitat, um espaço em que
deveríamos preservar o bom senso de cultivar a liberdade, os direitos e as
garantias de uma vida melhor, mas que encontra-se cada vez mais transformado
num espaço concentracionário, feito de medo, de tiques neuróticos, de paranoias
com a segurança, como se habitássemos todos um imenso quarto oculto de um vasto
bordel de relações sadomasoquistas. Agências, Serviços, forças paramilitares,
Policia e Forças Armadas, espalhadas pelo mundo, abrangendo todos os seus
cantos, em todos os Estados-Nação, mobilizando milhões cidadãos que prestam
serviços á tirania encapotada (as diversas camuflagens que vão do Estado de
Direito ao Socialismo, ou do Nacionalismo balofo ao menos indisfarçável
totalitarismo) e aos tiranos de pacotilha, tiranitos de ocasião, disfarçados de
democratas responsáveis, de bons governantes, “homens virtuosos” nas mais
variáveis desvirtudes.
Grande parte destes
cidadãos, funcionários assalariados (a grande maioria são assalariados, com o
estatuto de funcionário publico, preenchendo uma letra nos qualificadores,
esses longos cardápios disfuncionais da burocracia) não têm direito a qualquer
representatividade profissional ou sindical, vendo os seus direitos vedados (é
bom não esquecer que são assalariados, como qualquer outro assalariado) por
intermináveis obrigações e deveres, geralmente pátrios ou esotericamente
estatais.
Debilitar a
democracia, limitar as liberdades civis, desrespeitar a privacidade, criando
sistemas de vigilância estratégica, institucionalizados, acima de qualquer lei
e assumindo as características de Deus (mas um deus intrometido que tudo sabe
da vida de cada um e nada sabe da vida de todos), é um retrato dos Estados no mundo
que nos rodeia e que qualquer um de nós poderá fazer sem esforço, bastando nele
viver. Transformar esta realidade é uma esperança que urge cumprir…Antes que a
“catástrofe eminente” que nos circunda chegue ao ponto de tornar-se a eminência
catastrófica que nos extinguirá, como espécie.
II - Um exemplo do
que nunca deve ser feito foi recentemente dado pela Espanha (a una e
indivisível, desde os Reis Católicos ao actual Rei-das-caçadas-em-África,
passando pelo generalíssimo caudilho, Franco de nome, fascista de facto). O
Parlamento espanhol aprovou um Projecto de Lei sobre a Segurança Privada, que
mais parece um retrocesso ao tempo dos carrascos inquisidores da Santa
dita-cuja. Este decreto insere-se num “pacote legislativo” que inclui as
reformas do Código Penal, do Código Penal Militar e a nova Lei de Protecção e
Segurança do Cidadão.
Em toda esta
estruturante reforma Penal, Punitiva e Protectora, paira a eterna sombra do “terrorismo”,
agora estendido e alargado ao protesto social, às manifestações, meetings e
outros “eventos de instabilidade”. Este exemplo espanhol institucionalizará –
se for aprovado no Senado – a prestação de serviços privados de segurança, que
funcionarão como “complemento” aos serviços de segurança do Estado. E o curioso
é que este “complemento” abrange o “uso da força”. As agências privadas irão
assegurar as prisões (guarda prisional e serviços administrativos, sendo
responsáveis pela gestão dos estabelecimentos prisionais. Não será que a
reforma do Código Penal será no efectuada no sentido de fazer crescer a
população prisional, para fazer crescer a clientela?), serviços públicos
diversos (controlo de manifestações, por exemplo, concertos, etc.) sob “supervisão”
das forças públicas de segurança. Estas empresas gozarão de um estatuto ao
nível da “autoridade do estado”.
As condições para a
sua actuação ainda não foram explicitadas, principalmente ao nível das armas e
equipamento a ser utilizado. Aliás esta lei deixa a Espanha, um país europeu,
membro da União Europeia e da Eurolândia, uma economia capitalista avançada e
uma democracia politica, ao nível dos países africanos onde as companhias de
segurança privadas - propriedades de generais e ex-ministros - são autênticas
milícias paramilitares camufladas. Na Espanha “civilizada” as agências privadas
são instrumentos autorizados a exercer o uso de violência (que por deverem
estar sob controlo dos cidadãos são exclusiva responsabilidade do Estado) inevitavelmente
ao serviço de interesses privados que desta forma fogem ao controlo
democrático, ao mesmo tempo que asseguram directamente as forças necessárias á
prossecução dos seus objectivos imediatos.
Definitivamente o
lema das elites do Reino de Espanha é: “Negócio para os ricos…encarceramento para
os pobres”.
III - Durante
longos séculos (talvez milénios, em alguns casos pontuais) o segredo foi
considerado essencial para a arte de governar. De Maquiavel a Hegel encontramos
o conceito de Razão de Estado, como formas, modos, circunstâncias e razões
diversas de sigilo (as “arcana imperii”, de Tácito). Em todas as épocas o
segredo encontra-se no núcleo duro do poder (o núcleo central, o mais interno
do Estado). O Estado serve-se do segredo, conhece-o e aprecia a sua
importância, em qualquer circunstância. Os segredos são combinados pelo Estado
num sistema que determina a fragmentação do segredo, para que nunca possa ser
desfragmentado pela cidadania. O que sabe de uma parte é controlado pelo que
sabe de outra parte e assim sucessivamente.
Nas diversas formas
de totalitarismo (abertas ou encobertas) a espionagem é elevada a princípio
geral do governo, sendo a regra suprema nas relações entre governantes e
governados, assim como nas relações entre governantes. O poder, nestes estados,
funde-se não só na capacidade do estado em espionar os cidadãos (os súbditos,
uma vez que nestes estados não existem relações de cidadania), mas também no
facto de os súbditos, aterrorizados, espionarem-se uns aos outros (encontramos
exemplos temporalmente próximos no socialismo real e nas ditaduras militares
pró-yankees da América do Sul e Central).
É uma
característica do poder, mesmo nas sociedades politicamente democráticas (as
democracias incompletas, também conhecidas por formais ou burguesas), a
desigual repartição do conhecimento, da informação. O detentor do poder (seja
ele quem for e seja o poder qual for) conhece as intenções dos outros mas não
permite que as suas sejam conhecidas. O poder sempre foi concebido á imagem e
semelhança de Deus: Omnipotente, omnipresente e omnisciente e como tal,
invisivelmente omnividente. Na torre central vê-se sem ser visto, mas nos
círculos periféricos somos vistos, sem jamais vermos. Por isso o edifício deve
ser submetido a constantes inspecções e a uma permanente fiscalização, por
parte dos cidadãos. E esse é o caminho para que o direito do cidadão á
informação seja pleno e torne-se numa “praxis” efectiva. Os que consideram que
o sigilo deva ser uma práctica do exercício do poder, não passam de partidários
(muitas vezes inconscientes do seu papel) do totalitarismo.
Sendo duas as faces
do poder (a face externa e a interna) é na primeira destas que o segredo se
desenvolve como razão de estado: Não permitir que o inimigo conheça os nossos
movimentos, sendo que esse desconhecimento por parte do inimigo é uma
mais-valia do nosso conhecimento, permitindo surpreender o inimigo. Já na
segunda face do poder (a face interna) o segredo desenvolve-se em função da
desconfiança sentida pela elite em relação ao povo, sendo o povo a massa dos
que não entendem o “bem comum”, o “interesse nacional” (que são sempre
definidos a partir dos interesses das elites dominantes). Desta forma, a razão
do estado começa por (face externa) não deixar saber porque o outro compreende
demais e evolui para (face interna) o não deixar saber porque o outro
compreende muito pouco.
Isto levou a que a
elite se apercebesse dos benefícios do segredo na administração da coisa
pública. Mas para existir um segredo (factor que amplia os benefícios da elite)
era necessário uma ameaça que o justificasse. Por outro lado, para além da
manutenção do seu segredo a elite necessita do segredo dos outros, por uma
questão de aumentar os seus benefícios e impedir que outros tenham benefícios
ou possam partilhar dos mesmos. O poder invisível torna-se uma necessidade.
Quando é necessário inventa-se uma ameaça (o terrorismo, o estrangeiro, o
fundamentalismo islâmico, etc., nas versões mais actuais), de forma a
justificar a sua existência.
A tirania (mesmo a
democrática, ela é real e não uma invenção de Montesquieu ou de Tocqueville)
exige o complô. Se este não existir inventa-se. O totalitarismo transforma o
universo num imenso complô. Nele a elite (transformada em oligarquia) livra o
comum dos mortais (o súbdito, o não-cidadão) do “reino das trevas”, do “eixo do
mal” ou dos “Estados canalhas”. O gabinete torna-se o templo do secretismo, os
responsáveis políticos reúnem-se em salas secretas e existem conselhos
secretos. O processo de deliberação é subtraído á vista do público, muitas
vezes camuflado em “decisões técnicas”. A mistificação atinge um ponto máximo
conducente á paranoia absoluta. Realidade e mistificação passam a misturar-se e
fundem-se criando uma realidade assente na razão de estado, a “realpolitik”.
É o apanágio da “sociedade
dos bufos”… Nada mais “real” e nada mais “político” do que o “súbdito-bufo”,
pau para toda a obra, barato e fiel, como só os cães sabem ser.
IV - A cidadania plena, consciente dos direitos e dos deveres, das garantias e das obrigações, implica um conhecimento profundo das questões do Estado. Para que os cidadãos tenham pleno conhecimento dessas questões é necessário que o Estado aja publicamente, caso contrário os cidadãos não podem fazer uso desse conhecimento e a soberania popular torna-se letra morta. Institucionalizar a prestação de contas do Executivo, do Poder Legislativo (representantes do povo) e do Judicial é um procedimento obrigatório para a transparência e para a participação democrática e que torna obsoleto grande parte dos argumentos dos defensores do “segredo de estado” ou (argumento mais maquiavélico) da “razão de estado”, uma vez que a única razão de Estado em democracia é a soberania popular.
As vozes mais “responsáveis”
do aparelho de Estado (aqueles que vivem da existência de segredos, premissas
escondidas, verdades esotéricas que escondem a taça do Graal debaixo do tapete
dos palácios presidenciais, na solução presidencialista, ou das bancadas dos
hemiciclos representativos, nas opções parlamentares) argumentam que o cerne da
questão prende-se com a segurança do cidadão (os mais astutos – raposas batidas
– expressam a sua preocupação com a segurança dos “pilares da democracia”) ou com
a “defesa da integralidade do território nacional” (este é um conceito elástico
que provoca sorrisos, quando é debatido e lágrimas quando é posto em práctica),
dos “interesses nacionais” (interesses que ninguém consegue precisar, mas que
são sempre os interesses das elites que assumiram o comando, que para legitimarem
o seu discurso de poder, professam os seus interesses específicos como
interesses do “todo”) e por fim, a necessidade do sigilo nas relações
internacionais.
Nas relações
internas (relação Estado/cidadãos, governantes/governado, deputados/eleitores)
a questão do sigilo não se prende com questões éticas (a argumentação Kantiana
contra a razão de Estado, considerando-a uma imoralidade pode ser muito efusiva
para as mentes que buscam uma razão pura, mas completamente inútil para o
funcionamento institucional na democracia) mas sim com questões efectivas de
poder. A soberania popular efectiva obriga a uma contração do segredo de estado
(impedindo a omissão dos poderes públicos e obrigando-os a assumir os
compromissos acordados no Contrato Social) e não é uma razão baseada na razão
de Estado, mas sim uma razão que encontra na participação popular e na vontade
soberana do povo os seus fundamentos.
O sigilo nas
relações internas representa um passo confiante para o abismo totalitário. As
relações internas, em democracia, são efectuadas pelas vias constitucionais (e
estas vias não são apenas os parlamentos e os acordos ou desacordos entre os
representantes, mas, também e principalmente, as ruas, a contestação social nos
locais de trabalho, escolas, campos, em todo o espaço publico, porque esse é o
espaço politico, é a Polis) e se estas permitirem a omissão e o sigilo nos
assuntos públicos internos, logo implica a institucionalização de uma elite que
tem por finalidade considerar-se uma “casta do poder”, que pode considerar o
que é melhor para o cidadão, uma vez que este fica alheado de toda uma serie de
questões, qua passam a dizer respeito, apenas, aos que sabem, ou seja aos que
governam.
Mas se a democracia
não aplicar o segredo de Estado na esfera interna, como vai defender-se das
ameaças internas (muitas vezes agentes de interesses externos)? Obviamente que
têm de existir instituições que realizem a coordenação da estrutura de
inteligência e contrainteligência, da informação e da segurança de Estado, mas
publicamente controladas e inseridas no sistema de defesa. E como deve ser
desenhado esse sistema de defesa em democracia? Na única forma em que ele
assume a sua organicidade democrática: pela estrutura originária popular (e
organicamente proletária) da resistência. Esse é sempre o principio. As
democracias defendem-se através da organização popular e não através de
guardiões do segredo supremo (que, em ultima instancia, serão os primeiros a
dar um golpe fatal na soberania popular).
E nas relações
internacionais, como pode uma sociedade democrática estar inserida no contexto
imperialista ou neocolonialista sem eximir os segredos de alcova? Assumindo o
mesmo principio que assume na esfera interna: através de estruturas
mobilizadoras, instrumentos únicos da soberania popular.
Utopia? Não! Apenas
a recusa em tornar o palco global das relações entre Estados e Povos numa
imensa e malcheirosa pia.
V - O poder público
tem de ser controlado. O controlo só pode ser exercido numa sociedade em que o
povo tenha assumido a praxis participativa democrática. Apenas dessa forma os
segredos de alcova, provocados pela razão de estado, são atirados para o cesto
dos papéis da História e criam-se políticas autenticas de defesa da soberania
popular. Apenas com o controlo popular a guerra deixará de ser um capricho das
elites dominantes e a Paz deixará de ser um vasto e fétido pântano.
A linguagem
esotérica e misteriosa não é condizente com a assembleia dos representantes,
periodicamente eleitos e muito menos com a autêntica assembleia popular da
democracia participativa. O carácter representativo do parlamento só pode ser
assumido se a sua actividade for pública. Sessões secretas, acordos secretos,
reuniões á porta fechada sem comunicação dos resultados, comissões que não dão
conta dos seus trabalhos ou que não os efectuam de portas abertas para os
cidadãos, não pertencem ao procedimento democrático, são apenas fachada,
encenações do poder das elites.
A autoridade democrática
tem de ser visível. Os dirigentes (sempre eleitos e com mandatos bem delineados
no tempo) devem ser discretos, mas não podem guardar, para si e para os que os
rodeiam, as suas intenções. Em nenhuma conjuntura o poder democrático pode
escamotear e esconder a verdade ao povo. De todas as ameaças á democracia
(internas e externas) a mais grave, a mais destrutiva, é a da falta de
transparência do poder. O poder tem a tendência para esconder-se e esconder. A
burocracia cresce a partir do núcleo interno do poder e mina toda a estrutura
democrática, tornando-se uma barreira sólida que impede o exercício da
soberania popular.
É na política
externa que o primeiro pretexto da “razão de estado” surge no seio da sociedade
democrática. Ao pretender que o relacionamento externo é um assunto complicado,
que é apenas matéria de estado, de especialistas em relações internacionais
(esquecendo que o papel mais importante das relações externas é efectuado pelo
comércio e pela migração) as elites dominantes isolam o poder democrático,
impedindo o exercício da soberania popular nas relações externas. As exigências
de defesa, de negociação, a reciprocidade, em suma, todos os princípios das
relações internacionais utilizados como argumentos da razão de estado e do
segredo, se fugirem ao controlo e á decisão popular tornam-se instrumentos
nocivos que colocam em causa a soberania nacional e a segurança efectiva do
Estado democrático, assim como de todas as instituições representativas da
soberania popular.
Há um paradoxo de incompatibilidade
(de antinomia) entre os princípios de segurança do Estado e o princípio da
liberdade dos indivíduos. Este é um paradoxo que está intimamente ligado a um
outro: o paradoxo da excepção á regra, a excepção que é permitida porque salva
a regra. A democracia exclui o segredo de Estado, mas este (através dos
serviços de segurança, que agem em segredo) é justificado como um instrumento
necessário para a defesa da democracia (as leis que ditam as normas de conduta
desses serviços, costumam referir “a politica informativa e de segurança no
interesse do Estado”, ou, nos textos mais cuidados, “para a defesa do Estado
Democrático”.
A serpente morde a
sua própria cauda. Claro que a serpente é considerada o símbolo da prudência
(uma metáfora para a virtude politica) e também é um símbolo para os juristas,
cuja ciência chama-se, curiosamente, “jurisprudência”. Mas com tantos e tão
importantes significados, não será que em vez de uma serpente, estaremos na
presença de uma anaconda?
VI - Para os
negócios públicos, para a Res publica, a transparência e a publicitação do
conhecimento e da informação é regra. Mas para os negócios privados, para a
esfera privada da vida, a privacidade e o segredo são regra. Nas relações
privadas vale precisamente o contrário, porque a democracia é o regime que
prevê a máxima liberdade dos indivíduos. E para garantir essa liberdade, os
indivíduos devem ser protegidos do controlo por parte dos poderes públicos,
sempre que estes ultrapassem a sua função e penetram na esfera privada. Ora,
sendo a democracia o regime do máximo controlo sobre os poderes por parte dos
indivíduos, esse controlo só será possível com o máximo de transparência. Eis o
cerne da lógica democrática.
No plano interno os
inimigos da democracia são de diversa ordem. Vão desde os mais acérrimos
defensores do totalitarismo (o fascismo) aos que em nome da própria democracia
(as ideologias do Capital) opõem-se a um dos pilares da sociedade democrática:
o binómio liberdade-igualdade. A oposição a este pilar da superestrutura
democrática tem como objectivo impedir o aprofundamento da democracia á esfera
económica, social e cultural. Mantê-la no domínio politico é o quanto basta às
elites para assegurarem os seus mecanismos de circulação e de reprodução. Desta
forma o capitalismo torna-se um obstáculo á concretização da ideia
democrática.
No plano externo os
inimigos da democracia são o imperialismo e o neocolonialismo. Uma vez mais é a
mão invisível do Capital que por aqui anda. No plano externo a infiltração
imperialista no aparelho de Estado democrático aposta no enfraquecimento das
instituições da soberania popular, nas tentativas de desestabilização, na
corrupção e na burocracia. Um aparelho burocrático é um amplificador da
corrupção e representa uma porta aberta para a ingerência imperialista e para a
penetração neocolonialista. Apenas a democratização efectiva de todas as
estruturas do aparelho de Estado e o aprofundamento da democracia, levando-a a
todas as esferas da sociedade e da actividade económica, poderá tornar
concretizável a praxis democrática, resistente á ameaça externa e interna.
Mas há um ponto,
único, que talvez possa ter um enorme contributo na resolução do paradoxal
binómio segurança/liberdade: os serviços de inteligência. Desde que a sua
actividade seja efectivamente inteligente e não sejam antros de coscuvilhice,
bajulação e base de penetração de interesses alienígenas. No fundo, desde que
os serviços de segurança, informação, inteligência e contrainteligência, sejam
instrumento da soberania popular. Tão-somente…
Fontes
Canetti, Elias Massa
e Potere Ed. Adelphi, Milano, 1981
Foucault, M. Surveiller
et punir. Naissance de la prision Ed. Gallimardi, Paris, 1975
Sennett, Richard Authority
Vintage Books, New York, 1980
Weber, Max Economia
e Societá Edizioni di Comunitá, Milano, 1974
Dahl, Robert Controlling
Nuclear Weapons. Democracy versus Guardianship Syracuse University Press, 1985
Wolfe, A. The
Limits of Legitimacy. Political Contradictions of Contemporary Capitalism The
Free Press, New York, 1977.
Laqueur, Walter A
World of Secrets Basic Books, New York, 1985
Bentham Filosofi
per la pace Editori Riuniti, Roma, 1991.
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