quarta-feira, 8 de abril de 2015

A AGRI(CULTURA) DA TRAGÉDIA (1)



Rui Peralta, Luanda

A urgência da Reforma Agrária

I - 
Num discurso efectuado na Conferência da Tricontinental de Havana, em Janeiro de 1966, Amílcar Cabral abordou uma questão tabu aos olhos e aos ouvidos de alguns sectores nacionalistas africanos (e que hoje continua sendo tabu. É como o ateísmo): a luta de classes no seio do movimento de libertação nacional, nas sociedades ainda colonizadas (da época) e nos novos Estados africanos politicamente independentes. Em determinado momento da sua abordagem, Cabral, interroga-se sobre o que se passava nas sociedades arcaicas-comunitárias que subsistiam (e subsistem) em África, como sejam os Balantas na Guiné-Bissau, os Macondes em Moçambique ou os Cuanhamas, entre outros, em Angola. Estes grupos desprovidos de estratificação social, de estruturas estatais, dispondo de instituições como os conselhos de anciãos e com a propriedade colectiva da terra ao nível da aldeia, como poderiam ser inseridos na luta de libertação nacional e nas dinâmicas da construção de um Estado moderno? Esta questão poderá ser alargada às comunidades recolectoras, transumantes e nómadas. Obviamente que num mesmo Estado iriam coexistir diversas e diferentes formas se organização rural, desde as formas comunocràticas à propriedade privada da terra. Deverá ainda ser observado que todas as estruturas rurais pré-coloniais constituíram-se no quadro do sistema tributário, na base de economias não monetárias, conhecendo outras formas de comércio e de troca e em alguns casos com produção de excedentes.

Se este tema incómodo levantado por Cabral, na Conferência, fez coçar cabeças e barbas, alguns ouvidos demasiado sensíveis e alguns cérebros incompletos quase colapsaram quando Cabral apontou o caminho da Reforma Agraria como condição primeira para o combate ao neocolonialismo. E este espanto hipócrita tinha uma base ideológica profundamente instalada no movimento de libertação nacional: o mito de que as sociedades tradicionais pré-coloniais eram todas "democráticas" e "socialistas". É claro que este mito tem origem na distorção do passado e serviu de ensaio á penetração de alguns sectores neocoloniais que deram-se ao trabalho de elaborar "socialismos africanos" para todos os gostos e interesses.

O problema destas apressadas conclusões teóricas geradoras de ideologias e de práticas políticas a partir da antropologia cultural e social ou da etnologia é que a conclusão é pensada antes da investigação, ou nasce durante a investigação, deturpando os dados e mistificando o método. O resultado é a efemeridade política e um frenético corre-corre ao mínimo gesto do dono: o regime neocolonial.

II - 
Observemos um exemplo vindo do Quénia, na região central e que foi responsável por muitas deturpações estruturalistas e culturalistas criadoras de "socialismos africanos" com vários sabores tropicais: a sociedade kikuyu.

O sistema fundiário kikuyu é de propriedade familiar e não de propriedade colectiva. A terra, pertença da família, é um símbolo visível dos laços familiares, da união entre os seus membros. Neste sistema a terra pode ser vendida, concedida em usufruto sem ou com remuneração, arrendada ou trocada por outras terras. O mesmo acontecia com as pastagens e com as florestas. Todos esses locais eram propriedade familiar que, sob estritas regras, eram utilizados como terrenos comunais da tribo. Pastagens, locais de dança, bosques sagrados, terras não cultivadas, tinham uso comunitário, embora fossem propriedade de famílias. As terras cultivadas eram pertença exclusiva da família e os seus proprietários estavam isentos de qualquer tipo de imposto ou tributação, tendo como única obrigação cultivá-las.

O caso dos Kikuyu não é único, mas está muito longe de ser generalizado. A diversidade de sistemas fundiários pré-coloniais em África é imensa e engloba desde os mais primitivos até à propriedade privada (em algumas regiões existiu um embrião de burguesia rural, que sob o colonialismo foi destroçada na maioria dos casos e excepcionalmente aproveitada, nos casos em que a penetração colonial revelou-se difícil, ou em que havia manifesta vantagem - e interesse mutuo - de estabelecer alianças), para além de uma imensidade de modelos mistos comunitários-privados, ou de formas diversificadas de propriedade colectiva.

III - Hoje pode considerar-se a divisão do sector rural africano em três grandes grupos: os comunitários, que praticam uma agricultura de autossubsistência; o dos produtores virados para a exportação (na agricultura estas camadas foram introduzidas pelo colonialismo, embora existissem regiões onde a propriedade privada da terra, ainda na época pré-colonial, já permitia o comercio externo a nível continental e mesmo, no caso do Indico, para a Ásia. Neste grupo devem ser considerados, ainda, os criadores de gado e com o advento do afrocapitalismo e das novas oligarquias neocoloniais, o agro-negócio e a agroindústria); e entre estes dois grupos surgem os produtores que abastecem o mercado interno.

As culturas para exportação constituem uma importante fonte de lucro e após as independências permitiram o desenvolvimento de uma burguesia rural na Costa do Marfim (cacau e café), no Ghana (cacau. No entanto os "cocoa farmers" podem ser pequenos plantadores, que produzem com a família, ou grandes plantadores que utilizam mão-de-obra assalariada), nas feudalidades religiosas islâmicas ou cristãs do Senegal (amendoim), ou a feudalidade religiosa militar do Norte da Nigéria (amendoim). A estes exemplos há que juntar as técnicas mais avançadas de produção utilizadas na Africa do Sul pelas comunidades bóer e os criadores de gado bovino numa vasta região que engloba a África do Sul, Botswana, Namíbia, Zâmbia, Uganda, Tanzânia e Quénia (o Zimbabwe viu a sua produção de carne - assim como a agricultura para exportação - ser destruída pelas politicas dementes de Mugabe e do seu bando de vendidos aos sectores mais obscuros do neocolonialismo: os gangues de trapaceiros dos negócios de ocasião). 

Em contrapartida os que produzem para o mercado interno têm menos rendimentos e menos segurança na obtenção dos mesmos. O poder de compra da maioria das cidades africanas é baixo. As camadas oligarquico-burocràticas e as burguesias nacionais compram no estrangeiro e as camadas da média e da pequena burguesia ou sofrem dos tiques de imitação e seguem as pisadas dos que são mais ricos do que eles, ou estão demasiado endividadas para fazer a diferença. Seja como for o seu número é insuficiente (para agravar a questão há por aí uma tese sobre crescimento demográfico que não acrescenta nada de novo ao problema. É com certeza uma daquelas teses produzidas pela mediocridade que caracteriza o sistema utilitário de ensino. Algumas dessas teses são produto das febres que assolam os cerebelos pouco exercitados que levam a serio a neutralidade do conhecimento e tornam-se "fezes") e um facto é que a progressão insuficiente da oferta para a procura interna é um dos obstáculos ao "arranque" da economia.

A evolução recente demonstra uma tendência para a apropriação individual da terra enquanto as formas tradicionais e comunitárias têm cada vez mais dificuldades em manterem-se. Mas se olharmos um pouco para trás, podemos concluir que esta evolução não é, afinal, assim tão recente e que remonta ao período final do colonialismo na década de 50 no Imperio britânico, aos finais da década no colonialismo francês e aos inícios da década de 70 no colonialismo português. Aliás a sua prática generalizada foi desejada pelas respectivas administrações coloniais.

IV - 
Observemos o que se passou na África Oriental, durante o período final da colonização britânica: os ingleses não ocultaram a sua intenção de promover uma classe média africana, em particular uma pequena burguesia rural. Mas isto colocava contradições entre a administração e os colonos. Por outro lado (o caso do Quénia) o comércio e os negócios não europeus pertenciam aos indianos, enquanto os africanos negros que tentavam fundar sociedades comerciais não conseguiam crédito por não possuírem títulos de propriedade da terra, que serviam de garantia bancária. Em 1952, no Quénia, inicia-se a revolta dos Mau-Mau e com ela surge a oportunidade pela qual a administração britânica ansiava. Enquanto cerca de 30 mil guerrilheiros combatiam na floresta, a administração colonial inglesa implantou um regime de terror, dividindo a população Kikuyu, Embu e Meru em dois grupos: os suspeitos de colaborar com a guerrilha e os leais ao Império Britânico. Os primeiros foram enviados para campos de concentração e aos segundos foram entregues terras que ficaram disponíveis devido à partida dos guerrilheiros para a floresta e à devastação efectuada pela repressão (as terras dos guerrilheiros e seus familiares ou comunidades eram-lhe retiradas, o mesmo era efectuado aos que foram colocados nos campos de concentração). As novas terras devolutas foram entregues aos "lealistas" (os que denunciavam os suspeitos) acompanhadas por titulos de propriedade. Desta forma os ingleses criaram a almejada pequena-burguesia rural africana.

Com a chegada da independência em 1963 havia o compromisso de garantir indeminizações aos fazendeiros coloniais se o Estado lhes retirasse as terras. Como resultado em 1965 somente 1/8 destas terras estavam intervencionadas e mesmo dessas, mais de metade foram recompradas pelos europeus. Por outro lado as famílias africanas estabelecidas em "squatters" (pequenas terras anexas às grandes fazendas, exploradas por famílias africanas a troco de trabalhos agrícolas para o colono) foram inexplicavelmente expulsas, por ordem do fascistoide Jomo Kenyatta. Os poucos domínios retirados aos colonos (a troco da indeminização) que não foram recomprados pelos europeus com o dinheiro que receberam das indeminizações foram parcelados e entregues a altos funcionários, ex-guerrilheiros, ministros e ao próprio Kenyatta. As terras da pequena burguesia rural criada pelos ingleses a título de recompensa aos "bufos" não foram tocadas, mas a comunidade indiana que controlava o comércio (e que participou na luta contra o colonialismo) foi expulsa do país. Os fazendeiros coloniais permaneceram com as suas propriedades sem qualquer obrigação sobre quotas de exportação ou industrialização da sua produção, mas as terras comunitárias retiradas pelos ingleses nunca foram restituídas às comunidades, nem as pequenas parcelas restituídas aos camponeses que as trabalhavam.

O Quénia é, portanto, um exemplo "bem-sucedido" de neocolonialismo...

Yala, Quênia. A tragédia do agronegócio

I - 
Também do Quénia, observe-se um outro exemplo: na bacia pantanosas de Yala, no Quênia apareceu, certo dia no ano de 2004, um estranho personagem vindo dos USA (Calvin Burguess, é o seu nome), proprietário de uma empresa denominada Dominion Farms (DF). O senhor Calvin (provavelmente para dar luz ao seu nome) é movido por uma fé calvinista e considera-se (á imagem de Calvino) um "homem de Deus" (e o resto da humanidade será o quê? Um rebanho que vagueia pelas trevas e que aguarda pela chegada dos iluminados Calvinos deste mundo, para terem luz nas pastagens?) encarregue pelo Altíssimo de uma missão: colocar África nos eixos do progresso divino, ou seja, o progresso "made in USA" (na mitomania norte-americana Deus, um CEO de uma multinacional monopolista que vende viagens ao Paraíso e ao Inferno, reuniu com o Conselho de Administração para implementar as decisões da assembleia de acionistas - o "povo eleito" norte-americano - da empresa que iam no sentido de levar a boa-nova do "american way of life" aos povos obscuros, ou não-iluminados).

A DF chegou cheia de promessas a Yala. Apresentou um projecto que iria transformar os moribundos terrenos do Estado e a área pantanosa numa plantação moderna que empregaria a maioria da população local. O projecto apresentava contrapartidas sociais como a construção de escolas e de um grande hospital. Convencida a população local a DF assinou um acordo com as comunidades e com os poderes públicos locais que colocou na posse da empresa mais de 2 mil e 700ha de terras.

Dez anos depois as comunidades apenas colhem miséria e os camponeses foram conduzidos a uma situação de extrema pobreza. Yala regrediu e está, hoje, num estado avançado de decomposição. O "divino projecto" da DF não era mais do que uma forma de saquear os camponeses e as comunidades e de pilhar as terras.

II - Quando a DF apareceu por Yala, pela mão do governo queniano, tinha por objectivo (para além das suas febres místicas e do marketing habitual das empresas do agronegócio: escolas, empregos e hospitais) trabalhar nas terras abandonadas do Estado (os camponeses não o podiam fazer e não eram terras comunitárias), onde iriam gerar uma exploração experimental de cultivo de arroz e outra de banana. Pouco tempo depois de instalada a DF inicia uma campanha de persuasão. Primeiro efectuou "cursos de formação", gratuitos, aos camponeses, comunidades e criadores de animais. Na "formação" os habitantes locais foram persuadidos a abandonar as técnicas tradicionais, substituindo-as por novos métodos. Numa segunda fase a DF  convence as comunidades, os camponeses e os criadores de animais a cederem as terras, de "mútuo acordo" á empresa. Em contrapartida a DF distribuiria os lucros pelos seus novos "sócios". Desta forma a maioria das terras comunitárias e a maioria dos camponeses e criadores de animais entregaram as suas terras e as pastagens. Foi assim que a DF efectuou a pilhagem. Agora a DF detém o monopólio do mercado de toda a região e os poucos que não aderiram ao projecto não conseguem fazer frente aos preços que a DF impôs no mercado. Quanto aos que aderiram, aprenderam que a) as letras pequenas dos contratos devem ser lidas; b) o Estado quando não é controlado pelos cidadãos é um instrumento dos poderosos; c) sem reforma agrária as formas tradicionais de produção rural são eliminadas do mercado.

Hoje a DF produz tudo o que a população local produzia: legumes, banana, batata, arroz e carnes. Quanto aos empregos reduzem-se a trabalho precário. Mão-de-obra contratada por períodos de 3 a 6 meses, a baixo custo. Escolas e hospital continuam (desde 2004) por construir (ainda nem se deram ao trabalho do ritual bolorento da colocação da primeira pedra e do hipócrita e fascizante corte-de-fita do costume). Em contrapartida as populações locais recebem, caído do céu, grandes doses de pesticidas, lançadas pelos aviões da DF sobre os seus terrenos, que engobam as aldeias ou estão demasiado próximos das comunidades. Os pesticidas contaminam o solo e a água, agravando ainda mais os problemas e complicam a saúde aos habitantes.

Nos últimos dois anos a DF trabalha com agentes imobiliários quenianos, adquirindo terras para a produção de cana do açúcar. Mas e expansão da DF não está limitada ao Quénia. No ano passado a empresa adquiriu terras no Estado de Tarabat, na Nigéria, com o objectivo de implementar uma enorme exploração de arroz, varias vezes a área adquirida em Yala.

"Da costa á contracosta vinde e rebentai com as nossas terras", eis o slogan politico-empresarial do afrocapitalismo.

(Continua)

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