Carlos
del Castillo, Madri – Publico, em Opera Mundi
Jornalista
adverte que ‘sociedade não tomou consciência’ da ameaça que a vigilância maciça
representa, apesar dos alertas de Assange e Snowden; 'hoje é mais seguro enviar
carta pelo correio do que por e-mail, ninguém vigia carta', afirma
gnacio
Ramonet dirigiu durante 18 anos Le Monde Diplomatique, um dos órgãos de
imprensa de maior prestígio no mundo e principal tribuna do movimento
altermundialista. Enraizado na França, esse jornalista espanhol que atualmente
dirige LeMondeDiplo, a versão espanhola da citada publicação mensal,
analisa como o Governo do presidente francês François Hollande aprova um corte
de liberdades e a prorrogação por três meses do estado de emergência, tentando
fortalecer a capacidade de suas forças de segurança.
Para
o autor de El Imperio de la Vigilancia, Ediciones Galileo (O Império da
Vigilância), os governos “não podem garantir a segurança total”. No entanto, “o
estado de emergência implica o abandono das liberdades democráticas e
republicanas”, ao mesmo tempo que “hoje em dia há instrumentos para vigiar
todos”. Uma vigilância que, além do mais, “é ineficaz”. É a tese de Ramonet em
seu novo livro, transformado quase em premonição, pois foi publicado na
quinta-feira, 12 de novembro. Um dia depois ocorreram os atentados jihadistas
que levaram a “intimidada” sociedade francesa a não criticar as medidas
propostas por Hollande. Para Ramonet, é um erro.
Publico:
A sociedade francesa, que tradicionalmente defende seus direitos com
tenacidade, aceitará ter menos liberdade em troca de mais segurança?
Ignacio
Ramonet: Estamos no momento mais emotivo. Os atentados ocorreram na
sexta-feira passada [13/11], e a partir daí foram sendo conhecidos os detalhes
do que aconteceu, com os depoimentos de gente que viveu um inferno. Neste
momento, o Estado pode pedir praticamente o que quiser à sociedade, e ela está
em condições de lhe outorgar.
Acabamos
de ver como o presidente conseguiu uma união nacional em plena campanha para as
eleições de 6 de dezembro. Conseguiu aprovar uma série de medidas, algumas
delas propostas pela direita, em meio a um unanimismo geral. Quando ocorrem
monstruosidades como a de Paris, as sociedades se intimidam. Quase não houve
críticas à prorrogação do estado de emergência, que representa um abandono das
liberdades democráticas e republicanas. No meu livro falo do que se passou
depois do 11 de Setembro, quando os EUA promulgaram o Ato Patriótico, com essa
mesma ideia, um contrato com os cidadãos: aceitem perder um pouco de vossas
liberdades e eu lhes vou garantir maior segurança. O problema é que o Ato
Patriótico ainda está em vigor.
A
vigilância significa mais segurança?
Não, a vigilância maciça demonstrou que não é eficaz. A segurança total não existe, embora obviamente os governantes não possam dizer isso, sobretudo neste momento. O que a sociedade pede ao governante é segurança absoluta, e é o que ele promete. Mas a segurança absoluta não existe. E em particular diante de grupos terroristas.
Por
sua vez, a vigilância maciça, sim, existe. Comprovamos isso depois das
revelações de Edward Snowden. Atualmente há instrumentos para vigiarem todos. É
uma espécie de coação: eu te dou segurança total, mas permita-me que te vigie
totalmente. Porque apesar de eles poderem te vigiar, em troca não vão poder
garantir segurança total.
As
sociedades devem aceitar essa troca?
Claro
que não! Esse é todo o sentido do livro que acabo de publicar. O problema é que
neste momento é muito difícil emitir críticas porque, se você as faz, aparece
como um aliado dos terroristas.
Qual
é a alternativa à vigilância?
A
vigilância é legítima. É perfeitamente legítimo que um governo vigie. Desde que
o faça de maneira democrática, ou seja, por ordem de um juiz e com um controle
democrático. Se um juiz determina que uma pessoa deve ser vigiada, é preciso
vigiá-la. A questão não está em opor-se a toda vigilância, o problema é que o
que se pratica agora é uma vigilância maciça e clandestina. O princípio é
“vigiamos todo mundo para poder, no dia de amanhã, identificar aqueles que
podem cometer um atentado”. Estamos perdendo liberdades sem que isso tenha sido
debatido de modo suficiente, e discutindo a questão em um marco emocional muito
específico.
A
França promulgou em maio uma lei que permite a interceptação e a escuta de
conversas por parte dos serviços secretos, sem que haja controle judicial. E
isso foi feito em meio à emoção dos atentados contra o Charlie Hebdo. Somente requer a autorização do
primeiro-ministro, Manuel Valls. Mas o primeiro-ministro não é um magistrado!
Não é o poder judicial. É um político, é o poder executivo.
A
ferramenta para a vigilância maciça é a internet, que permite uma inspeção
exaustiva de todos os nossos movimentos e conversas. Pode-se dizer que já
perdemos a liberdade na web?
Quando
a internet surgiu era um ambiente de liberdade porque democratizava o acesso à
informação. No entanto, hoje se centralizou e 99% das empresas que usam a
internet recorrem quase inevitavelmente a uma das cinco grandes empresas
digitais: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft.
Hoje,
quando você utiliza a internet está entrando por esse gargalo que permite às
autoridades terem acesso a todos os seus dados, primeiro porque essas empresas
os passam ao Governo dos EUA, por lei, e segundo porque os Estados puseram em
marcha sistemas próprios de vigilância. Hoje é muito mais seguro enviar uma
carta pelo correio do que mandar um e-mail. Ninguém vigia a carta. Entretanto,
qualquer comunicação digital deixa um rastro, os metadados. Desde o lugar onde
você se comunica, com quem se comunica, quanto tempo durou esse intercâmbio,
quando se deu... Toda uma série de dados com os quais se pode fazer uma espécie
de galáxia de todos os teus contatos e conhecimentos, um verdadeiro atlas. Sem
que você saiba o que está ali.
Embora
sejam feitas gravações, escutar conversas é muito complicado porque é preciso
colocar alguém ali para ouvi-las. No entanto, esses dados são coletados
automaticamente, de forma maciça, de todos nós.
Os
EUA têm acesso direto a esses dados graças às empresas que você citou. Considera
que existe um neocolonialismo na internet? Que a web, que aparenta ser aberta e
supranacional, é um território controlado pelos EUA?
Está
controlada por essas empresas americanas. No livro, por exemplo, publico um
relatório da CIA a respeito disso, “O Mundo em 2030”. Diz que daqui até 2030 um
dos perigos para os EUA é precisamente que essas cinco empresas consigam ter
maior poderio em termos de informação que o próprio governo dos EUA, que a
própria administração do país. Não falamos de imperialismo norte-americano, mas
do domínio de empresas que efetivamente são estadunidenses.
Dominamos
a tecnologia ou a tecnologia nos domina?
O
problema é que hoje já não podemos prescindir da tecnologia. Sem internet seria
muito difícil fazer tudo o que fazemos. A pergunta é legítima. No dia de hoje,
acredito que a resposta é que a tecnologia nos domina, não podemos
desconectar-nos.
Em
seu livro o senhor enaltece os “lançadores de alertas”. Chama de “heróis”
pessoas como Julian Assange ou Edward Snowden. No entanto, os alertas que
lançaram não tocaram a sociedade, muito pouca gente tomou consciência ou
modificou seus costumes.
Exato.
Essa é uma realidade. Para a maioria das pessoas pouco importa o estado de
vigilância, não as incomoda. A prova: do que vive o Facebook? Dos dados que nós
colocamos voluntariamente, não os arranca de nós.
O
que coletivamente a sociedade diz com seu comportamento é que aquele que se
incomoda de ser vigiado deve ter algo que quer esconder. E se quer esconder
algo é porque, como diz Assange, é um dos quatro cavaleiros do infocalipse: ou
é um traficante de drogas, ou é um pedófilo, ou é um sujeito que está fugindo
do fisco ou é um terrorista. Se eu não sou nenhuma dessas quatro coisas, que me
importa que me vigiem, se não tenho nada a ocultar? Essa é a problemática.
O
problema é quando os governos começam a fazer uso dessa informação contra você.
Estamos todos nus diante disso. É a distopia de 1984. Nós, europeus, vemos isso
como algo muito distante, mas é algo que já se passa no Irã e na Arábia
Saudita, com governos que perseguem os dissidentes.
Nós,
jornalistas, estamos fracassando na hora de comunicar esse perigo?
Acredito
que não porque, embora os jornalistas tenham, talvez, maior sensibilidade, é a
sociedade que não toma consciência. A sociedade não valoriza suficientemente o
heroísmo de gente como Assange. Quem são as pessoas mais perseguidas do mundo?
Assange, Snowden, Chelsea Manning, condenada a 30 anos de prisão por ter
revelado crimes que não teria de ocultar. Assange está há três anos trancado na
embaixada do Equador em Londres e Snowden está exilado na Rússia. E o que
fizeram que mereça tal perseguição? Demonstrar que somos vigiados. Denunciar um
atentado contra nossas liberdades.
Publicado
originalmente no site Publico – Foto: Mike Mozart / Flickr CC
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