sábado, 20 de maio de 2023

Angola | O ERRO DE AGOSTINHO NETO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Naquele tempo o José Mena Abrantes traçava uma linha da informação internacional, recolhia e traduzia as notícias que considerava mais importantes e depois eu fazia um resumo que levava, ao fim da tarde, a casa de Agostinho Neto, no Bairro de Saneamento. Lia o meu texto em voz alta, entregava-lhe as notícias traduzidas e depois respondia a perguntas. 

Nessas sessões percebi, logo no início, que Agostinho Neto tinha o dom da clarividência. Analisava as mensagens informativas e depois tirava conclusões dizendo o que ia acontecer no futuro, face aos dados que ele tinha. Batia sempre certo. Eu ia guardando essas premonições e servia-me delas para fazer brilharetes como repórter. Estava sempre em cima dos acontecimentos, porque já sabia que iam acontecer.

A clarividência de Neto entrou para as páginas da História Universal. Ninguém sabia que os angolanos iam derrotar o regime de Pretória no Triângulo do Tumpo. Ninguém imaginava que o cavalo do estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA), Reino Unido, França, Reino Unido, Alemanha ou Portugal ia ficar enterrado no lodo dos pântanos à vista de Samaria, Cuito Cuanavale. Neto sabia e não tinha a mínima dúvida.

Os angolanos sofreram séculos de colonialismo, o mais hediondo crime que alguma vez foi cometido contra a Humanidade. Fizeram a Luta Armada de Libertação Nacional. Lutaram pela Soberania e a Integridade Territorial ao longo de 13 anos. E ainda tiveram força para libertar Nelson Mandela. Agostinho Neto sabia disso muitos anos antes.

O Presidente Fundador da Pátria Angolano disse que a luta dos angolanos se projectava na Namíbia, Zimbabwe e África do Sul. Garantiu aos incrédulos que Angola era uma trincheira firme do socialismo em África. Explicou ao Povo Angolano e ao mundo de ouvidos limpos, que a liberdade dos angolanos só era possível quando fossem livres os povos da África Austral, submetidos ao regime de apartheid: Namíbia, Zimbabwe e Árica do Sul. Sem parangonas, sem truques, sem ilusões foi muito claro no apoio aos povos irmãos submetidos.

Um dia fui chamado à Quinta Rosa Linda e lá estava Joshua Nkomo com Agostinho Neto, que me apresentou o seu convidado como o futuro líder do Zimbabwe. Entrevistei-o mas manifestou muitas dúvidas quanto à premonição do Presidente de Angola. A Frente Patriótica derrotou o apartheid e tomou o poder. Outro dia fui entrevistar San Nujoma. A mesma cena no Futungo. Agostinho Neto apresentou-me o futuro presidente da Namíbia. Mas o líder da SWAPO, durante a entrevista, manifestou muitas inquietações e dúvidas. Quando foi empossado como Presidente da Namíbia deve ter recordado a premonição de Agostinho Neto, o que tinha razão antes do tempo.

Um dia Hermínio Escórcio deu-me uma missão muito delicada: Receber e acompanhar uma delegação do ANC que ia chegar na manhã seguinte a Luanda. Foi mais fácil do que parecia. Disse-lhes que Agostinho Neto dava pouco tempo de vida ao regime racista de Pretória. Olharam para mim com estranheza. Não acreditaram na premonição. Neto sabia que o Triângulo do Tumpo ia ser o túmulo dos racistas. Soube dez anos antes!

Agostinho Neto, como todos os governantes do mundo, cometeu erros no exercício do poder. Foi Presidente da República desde 11 de Novembro de 1975 até 10 de Setembro de 1979. Se fosse hoje, nem dava um mandato presidencial. Alguns erros cometidos devem ter sido para se convencer a ele próprio que era humano. Um dia disse-me que o problema do presente e do futuro era o comportamento moral dos nossos camaradas, porque “Luanda é um mar de areia onde as águas se perdem”. Acertou. Mas errou no mais importante.

Namíbia livre. Zimbabwe livre. África do Sul livre. O embaixador dos EUA em Pretória foi obrigado a pedir desculpas públicas por ter acusado o país de ter fornecido armas à Federação Russa. A resposta do governo-sul africano foi implacável. Os senhores de Washington perceberam rapidamente que tinha acabado o seu tempo de antena. 

O Presidente Cyril Ramaphosa disse a Washington e ao mundo que o seu país é livre desde o dia em que os angolanos derrotaram o regime racista de Pretória e seus aliados, no Triângulo do Tumpo. Entre os derrotados está o estado terrorista mais perigoso do mundo. O líder sul-africano mostrou ao ocidente alargado que a clarividência de Agostinho Neto estava certa quando ele vaticinou o fim dos supremacistas brancos.

A África do Sul é hoje uma medalha de honra de Agostinho Neto. A mais alta condecoração de José Eduardo dos Santos. O Presidente Ramaphosa mobilizou países africanos para junto de Kiev e Moscovo lutarem pela paz mundial. O grupo africano é também constituído pelo Egipto (Presidente El Sisi), Uganda (Presidente Museveni), República do Congo (Presidente Nguesso) e Senegal (Presidente Sali). O ocidente alargado foi ignorado.

O primeiro-ministro de Portugal, António Costa, para defender a guerra até ao último ucraniano, comparou o cerco da OTAN (ou NATO) à Federação Russa com a ocupação de Timor-Leste pela Indonésia. O Presidente João Lourenço comparou o conflito na Ucrânia com a invasão dos racistas sul-africanos a Angola. 

Este é o erro de Agostinho Neto. Soube antes do tempo que a luta dos angolanos havia de libertar a Namíbia, Zimbabwe e África do Sul. Havia de libertar a Humanidade dessa mancha ignominiosa do racismo como política de Estado. Mas não previu que Angola ia ficar de costas viradas para os povos libertados da África Austral, alinhando, de cócoras, com o estado terrorista mais perigoso do mundo. 

O erro vai durar pouco. Os libertadores não podem ficar muito tempo ao lado dos opressores.

*Jornalista

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