sexta-feira, 26 de maio de 2023

Portugal | RESPOSTA A CAVACO: ESTE PAÍS

António Carlos Cortez* | Diário de Notícias | opinião

Para quem tenha nascido nos anos de 1970 (sensivelmente entre 1970 e 1980) e tenha, hoje, os seus 54, 50, 45, 40 anos, e seja pai, mãe, encarregado de educação, com casa para pagar ao banco, ou renda de casa a pagar ao senhorio, uma pergunta se impõe: para onde foram os três mil milhões de euros despejados na TAP? Para quem, hoje, tenha chegado a meio da carreira tributária, a meio da carreira profissional (se a tiver), seja como professor, médico, polícia, oficial de contas, enfermeiro, agente cultural, profissional do sector terciário, pequeno e médio empresário, outra pergunta se impõe: por que houve dinheiro para os bancos e para quem trabalha congelamentos de ordenados e de progressão nas carreiras? Para quem - desempregado de longa duração, dependente de subsídios do Estado, de redes de solidariedade social, outra pergunta se impõe: para onde foram os nossos sonhos? Para quem oiça Galamba e Cavaco uma pergunta se impõe: que país é este?

Portugal é, antes de mais, o país que, à beira de celebrar os 50 anos do 25 de Abril de 1974 e não obstante as notícias de crescimento económico acima da média europeia previstas pelo BCE, conta ainda com dois milhões de pobres. Portugal é o país onde, não obstante os inúmeros e óbvios sinais de progresso que Abril nos deu (SNS, sobretudo) há um ressentimento geral, uma vez que a sensação que todos temos é a de que, aqui, empobrecemos a trabalhar. É o país dos recibos-verdes (criação cavaquista), é o país onde, mesmo com contrato, os salários são manifestamente baixos face ao custo de vida. País onde um Primeiro-Ministro do PSD convidou à emigração dos mais jovens em tempo de TROIKA. País onde um outro Primeiro-Ministro, também do PSD, para ter um cargo chorudo na Europa, entregou o país a essa "má moeda" - escreveu Cavaco -, chamado Santana Lopes. Portugal, que, com Salazar, era pouco mais que um país medieval com aviões a passar por cima, é o lugar onde, depois de uma ponte cair, um Primeiro-Ministro, agora do PS, dos mais bem preparados da nossa democracia, saiu do cargo porque Portugal não podia "cair num pântano político". Portugal é o país onde a classe política em exercício, criada no cavaquismo e no guterrismo, é quase toda filha das "jotas" partidárias: da JSD à JS, da Juventude Popular à Juventude Comunista, dos grupescos da IL aos arremedos de políticos que vêm do Chega. Para os portugueses que não são filiados em partidos, a impressão que dá, ancorada em factos, é que, neste país, só quem tiver o cartão do PS ou do PSD, pode almejar a viver com alguma qualidade de vida.

Neste sentido, Portugal é ainda esse país de Rafael Bordalo Pinheiro onde todos - empresários, políticos, autarcas - mamam as tetas da "porca da política". Por estes e outros factos incontornáveis é que as palavras de Cavaco Silva são uma óbvia manipulação da verdade histórica, na medida em que Cavaco Silva, o político que mais tempo dirigiu o país depois de Salazar, é directamente responsável pela fragilização do Estado. Defensor da livre iniciativa, fez, porém, entrar interesses privados em sectores estratégicos da economia, com impacto nas políticas de emprego que à minha geração foram oferecidas. Dos salários baixos, em nome do perpétuo combate à inflação, à precariedade laboral, foi com Cavaco Silva que a minha "geração rasca" (disse um iluminado) cresceu nas escolas e nas universidades tendo o deus-dinheiro como valor absoluto. Muitos dos políticos actuais são filhos da cábula, da praxe e da estupidez institucionalizada na educação alienante que (de)forma os jovens portugueses há décadas, incapazes de se projectarem num Portugal mais justo e digno, porque roubados na igualdade de oportunidades. Quem é rico em Portugal, vive; quem é pobre ou da classe média, paga impostos e mata-se num quotidiano sem energia vital. Assim, o cavaquismo consolidou, na democracia, a existência comezinha de se ser funcionário público com ordenado baixo, mas certinho.

O PS, assombrado por Cavaco, repetiu esse liberalismo à portuguesa, sem nunca combater as oligarquias instaladas. Com o cavaquismo regressaram os tiques de autoritarismo salazarista: quem se esqueceu da célebre carga policial na Ponte 25 de Abril? Quem não se lembra das cargas sobre os estudantes na 5 de Outubro? País feito à imagem e semelhança do homem de Boliqueime, Portugal é hoje, como ontem, o país da protecção dos interesses de classe: país de serventuários dos partidos e das empresas e das famílias ricas. "Nunca me engano e raramente tenho dúvidas", disse Cavaco.

Para a minha geração, Portugal é um país onde é impossível viver. Saúde, habitação, educação: tudo caro, inacessível para os nossos rendimentos. Com a mais longa ditadura da Europa, Portugal é um país, hoje ainda, semi-analfabeto, inculto, pobre. Vítimas, na verdade, da nossa cegueira, do nosso atavismo, aceitamos que a nossa democracia, esse regime que Cavaco deplora, seja hoje o regime da raiva e do ódio. Ora, o PS, bem como toda a Esquerda, têm de se unir contra o ódio e a raiva vindas de um político para quem Os Lusíadas tinham quatro cantos. Montenegro, de resto, não diria coisa diferente - e que ideias de facto tem o líder do PSD para não trair a minha geração e os nossos filhos - os da classe média, os filhos dos pobres?

*Professor, poeta e crítico literário

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