terça-feira, 6 de junho de 2023

Portugal | QUANDO O ESTADO LEGITIMA OS VIGILANTES ANIMALISTAS DO IRA

Diogo Augusto | Setenta e Quatro

O IRA assinou um protocolo com os Bombeiros de Camarate, recebeu formação do ICNF e quer agora fazer uma parceria com a Câmara de Loures. Um dirigente local do PS e um ex-candidato autárquico do Chega têm sido essenciais a abrir portas ao grupo animalista conotado com a extrema-direita e marcado pelo secretismo e vigilantismo.

É feriado nacional e há por todo o país cerimónias a celebrar a liberdade. Em Camarate não é diferente. Um cortejo de bombeiros, com músicos à frente, passa em diante ao edifício principal do quartel dos Bombeiros de Camarate. Param, dispõem-se em parada e saúdam o presidente da Câmara de Loures e vereadores. É mais um 25 de Abril como tantos outros anteriores, mas desta vez há uma diferença: do lado esquerdo, e discretamente, quatro homens musculados vestidos com roupa paramilitar preta observam a parada. São do grupo justicialista animal Intervenção e Resgate Animal (IRA).

É que a cerimónia do 25 de Abril deste ano tinha atrações especiais: o batismo de novas viaturas dos bombeiros, uma das quais uma ambulância supostamente fornecida pelo IRA no âmbito de um novo protocolo. Os quatro homens estavam lá para assinarem o documento com a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Camarate e duas figuras centrais nesse objetivo foram Luís Martins e Pedro Magrinho, bombeiro, polícia e candidato pelo Chega em Loures nas autárquicas de 2021.

Luís Martins é Vogal da Junta de Freguesia de Camarate, Unhos e Apelação pelo PS, mas isso não o impede de ser bastante próximo do partido de extrema-direita Chega, criticando o seu próprio partido. O comandante partilhou, a 26 de maio de 2022, uma intervenção do deputado do Chega Bruno Nunes no parlamento sobre o PS ter votado contra propostas sobre bombeiros. O comandante disse ter vergonha do PS.

Uma semana antes, a 17 de maio de 2022, Martins, na qualidade de comandante dos Bombeiros Voluntários de Camarate (BVC), recebeu André Ventura no Quartel e protagonizou um vídeo de propaganda do Chega. No dia seguinte, o comandante publicou no Facebook um agradecimento ao apoio do partido de extrema-direita: “Obrigado pelo vosso apoio 🙏 assim é fácil”, diz, por cima de um vídeo que protagoniza com André Ventura.

Luís Martins tem uma página de “figura pública” no Facebook com dez mil seguidores. Usa-a para publicar selfies, fazer vídeos em direto ou publicar notícias sobre a família ou os Bombeiros Voluntários de Camarate. Numa das suas partilhas, no dia 18 de maio, a sua selfie mostra, com orgulho, o interior do carro no qual estão vários emblemas. A maioria deles são de corporações de bombeiros, mas há dois que se destacam: uma cruz da Ordem de Cristo, muito usada pela extrema-direita portuguesa, e um outro com um desenho do Punisher, super-herói da Marvel, com uma bandeira portuguesa.

Este emblema é vendido pela loja online de extrema-direita alemã 66 Totenkopf –totenkopf é a caveira das nazis Waffen SS. Devido à censura de simbologia nazi na Alemanha, a caveira da Marvel foi cooptada e é usada por neonazis como elemento identificativo de movimentos neonazis. A loja online vende o emblema anunciando: “Os portugueses são o povo mais patriótico que existe. Destaque o seu patriotismo com este caminho português”.

O comandante não respondeu às perguntas do Setenta e Quatro sobre o emblema, respondendo mais tarde, num vídeo no Facebook, que “nada impede que eu seja amigo de quem for”, independentemente das suas ideologias políticas.

A página de Facebook de Luís Martins não é, no entanto, a única a publicitar o apoio a André Ventura. A página dos Bombeiros de Camarate fez uma publicação alusiva à visita, sublinhando no entanto já terem recebido outras forças políticas no quartel. De facto, receberam uma delegação do PS em 2021 e uma do PSD em 2019. Apesar de constar das fotografias das visitas e de uma delas ter sido do seu próprio partido, Luís Martins não fez qualquer menção a essas visitas na sua página oficial.

A ligação de Luís Martins ao Chega, apesar da sua filiação no PS, já vem mais de trás. Em julho de 2021 recebeu no Quartel de Bombeiros de Camarate o candidato do Chega à Câmara Municipal de Loures Bruno Nunes. A filiação política de Luís Martins parece estar desencontrada com as suas tomadas de posição públicas e a sua proximidade a pessoas do Chega é evidente. A 2 de março de 2022 agradeceu ao deputado do Chega Bruno Nunes partilhando um vídeo seu com uma intervenção sobre a Ucrânia e, a 17 de março, voltou a partilhar um vídeo do “deputado e amigo” do Chega sobre ajudas de transporte devidas a vereadores.

São várias as interações entre o comandante e o político do Chega. Estas culminam a 6 de abril de 2022, quando os deputados do Chega Bruno Nunes e Pedro Pessanha receberam Luís Martins na Assembleia da República num ato de homenagem por uma missão de auxílio à Ucrânia liderada pelos Bombeiros Voluntários de Camarate. Nesse dia, Luís Martins foi acompanhado por Pedro Magrinho, bombeiro, polícia e candidato pelo Chega.

Em março de 2020, a LouresTV criou um novo programa chamado 18 Minutos (18M). Não é certo quem esteve por detrás destas emissões, mas, no seu vídeo de estreia, no início da pandemia de covid-19, o jornalista apresentou o seu primeiro convidado: Bruno Nunes. A primeira pergunta do apresentador foi: “como é que surge a ideia de arrancar com este 18M?”.

Ao ver-se o programa, a ideia de que Bruno Nunes o controla vai-se reforçando até que, no final da entrevista, o agora deputado do Chega diz que foi ele quem convidou o jornalista para estar em estúdio, mesmo com o risco da proximidade social em contexto de pandemia. O programa funcionou como mecanismo de propaganda da agenda política do Chega e Bruno Nunes marcou presença em 28 dos 38 vídeos com mais de cinco minutos. Outras duas figuras que também participaram no programa foram Luís Martins e Pedro Magrinho.

Mas a aproximação ao Chega não é a única que tem marcado as relações do comandante Luís Martins. O IRA, que no passado contou com a colaboração de Cristina Rodrigues, hoje assessora do grupo parlamentar do Chega, é outra relação próxima do bombeiro. No dia 15 de maio deste ano, o comandante publicou no seu Facebook um vídeo exibindo merchandising do IRA, terminando com a declaração: “Pois é, amigos, é fácil. Eu apoio o IRA!”.

O IRA foi criado em 2016 e, um ano depois, foi formalizado como associação Núcleo de Intervenção e Resgate Animal (NIRA). Em 2019, Armando Pires Tomás criou uma empresa com o nome IRA, Unipessoal Lda. No seu ano de criação, com zero pessoas ao serviço, a empresa perdeu pouco mais de 1.000 €. No ano seguinte contratou um funcionário e perdeu pouco mais de 13.000 € e, em 2021, com a contratação de uma segunda pessoa, a empresa declarou perdas de cerca de 31.700 €.

A identidade dos elementos do IRA permanece, em larga medida, secreta. Sabe-se apenas que tem membros de forças de segurança, militares e bombeiros e que surgiu a partir de relações criadas numa cadeia de ginásios em Lisboa e Porto, nomeadamente de kickboxing e muay thai. Além do seu presidente, pouco mais se sabe dos seus membros. O IRA faz, aliás, questão de manter esse anonimato como caraterística de marketing.

A página oficial dá especial destaque à angariação de donativos e à venda de merchandising. Vestuário de adulto e de bebé, porta-chaves, pulseiras, garrafas de água, canetas ou máscaras. Tudo com a estética do grupo cujas semelhanças com a do grupo sérvio animalista de extrema-direita Levijatan são difíceis de ignorar. Mas as contas do IRA são opacas. Se é possível ter acesso às contas da empresa, o mesmo não se pode dizer em relação à associação. As receitas dos donativos são recebidas pela associação, mas não é claro se esse dinheiro é usado para tapar o buraco financeiro da empresa que, em 2021, acumulava perto de 46 mil euros de perdas. O IRA não respondeu às perguntas do Setenta e Quatro sobre isto.

Ficaram por responder perguntas sobre a origem e o destino dos dinheiros que recebem e os prejuízos da empresa a eles associada, se não tem nem terá problema em apoiar candidatos de partidos xenófobos e homofóbicos desde que eles defendam os direitos dos animais, sobre detalhes acerca da relação do IRA com organismos públicos, em que é que o IRA sustenta a autoridade para fazer tais avaliações e, posteriormente, levar a cabo intervenções, quantas das suas intervenções se vieram a revelar ter sido baseadas num erro de julgamento e, finalmente, sobre se o IRA se substitui às autoridades do Estado de direito.

O vigilantismo e a publicação de dados sobre pessoas que o IRA suspeita que possam ter cometido atos de crueldade com animais são algumas das características que pontuam as redes sociais do grupo. A 28 de maio de 2021 publicaram o nome e o paradeiro de um alegado autor de atos de violência sobre animais; a 27 de fevereiro de 2023, tendo encontrado um cão perdido, pediram aos seguidores informações para que o próprio IRA apurasse se tinha existido crime de abandono; a 12 de junho de 2018 publicaram a fotografia e o nome de um indivíduo culpado, segundo o IRA, do crime de abandono.

A natureza vigilantista do IRA não é recente: o grupo já publicou, com o apoio dos seus seguidores, apelos diretos ao exercício da justiça pelas próprias mãos. A  6 de Julho de 2018, perante a notícia de que uma cadela tinha sido enforcada na zona de Sintra, o IRA publicou no Facebook um apelo: oferecia uma recompensa de 500 € por informações sobre o autor do ato, escrevendo: “Não falem com a polícia, falem CONNOSCO! Temos pessoal certificado em tirar a maldade do corpo de certas pessoas”.

A publicação foi partilhada por 12 mil pessoas e comentada por 3.800. As ameaças de violência e de justiça pelas próprias mãos são, expectavelmente, muitas. Uma pessoa dizia já ter morado naquela zona: “Uma bomba no meio e muita lixívia para limpar o resto”. Outra dispensava a recompensa: “Eu não precisava dos 500€ eu não os enforcava, simplesmente punha-os arragados [sic] a uma arvore [sic] num ermo durante 2 semana [sic]. Não lhes dava nem água”.

O IRA tem-se assumido como organização de vanguarda na defesa dos direitos dos animais e um passo nesse sentido foi a sua convocatória para uma manifestação contra a decisão de inconstitucionalidade da lei protetora dos animais pelo Tribunal Constitucional. Em janeiro deste ano, milhares de pessoas marcharam do Marquês de Pombal, em Lisboa, até à sede do TC e os Bombeiros de Camarate participaram no protesto integrando o “dispositivo de segurança”, segundo os próprios. Fizeram-no desfilando os veículos da corporação, entres eles a estrela da companhia: a ambulância de socorro a animais, ativada em parceria com o IRA num protocolo cujo conteúdo os BVC e o IRA se recusaram a divulgar ao Setenta e Quatro.

Esta ambulância encabeçou a manifestação ostentando uma bandeira do IRA. O comandante Luís Martins participou na manifestação ostentando vestuário com simbologia do IRA e foi fotografado em cima do veículo-palco com microfone na mão. Apesar de o IRA vender vestuário para gerar receita, não eram estas as roupas que Luís Martins vestia. Tratava-se, ao invés, do vestuário que serve de farda aos elementos do IRA.

A ambulância foi anunciada no início deste ano pela associação dos bombeiros. A parceria com o IRA “permitiu a criação de uma Ambulância Animal disponível 24 horas por dia, 365 dias por ano e tripulada por socorristas do nosso Corpo de Bombeiros devidamente formados para socorrer animais em situações de emergência”. Mas o IRA já se tinha antecipado: em janeiro de 2022, o grupo fez uma publicação no Facebook dizendo que tinham decidido reunir “com o Comandante Luís Martins, dos Bombeiros Voluntários de Camarate, para perguntarmos o que achava de criarmos uma ambulância animal”.

Um ano e quatro meses depois, a relação entre os Bombeiros de Camarate, via associação, e o IRA foi finalmente passada para o papel em cerimónia no 25 de Abril deste ano. Assinaram um protocolo, mas o documento mantém-se secreto, apesar dos deveres de transparência de associações com estatuto de utilidade pública, como é o caso da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Camarate. O seu presidente, Renato Alves, disse ao Setenta e Quatro que a divulgação do texto do protocolo dependeria de autorização do IRA. O seu conteúdo nunca foi divulgado, apesar de solicitado quer à AHBVC quer ao IRA.

Aliás, o primeiro contacto por e-mail do Setenta e Quatro foi encaminhado para o comandante Luís Martins sem que Renato Alves dele tivesse conhecimento. O presidente só soube dele uma semana depois, quando o Setenta e Quatro insistiu por telefone.

Na celebração que teve lugar no dia 25 de Abril, Luís Martins diz que chegou ao IRA através de Pedro Magrinho, seu subcomandante desde março de 2022 e que também é chefe da PSP. Foi Magrinho quem pôs os Bombeiros de Camarate em contacto com o grupo justicialista.

O subcomandante tem-se demonstrado uma figura chave nessas relações, mas também nas com o Chega. Magrinho considera André Ventura, líder do Chega, a “principal figura política nacional”, foi candidato pela coligação Basta nas europeias de 2019 e pelo Chega nas autárquicas de 2021 e esteve sempre nos momentos chave: nas visitas de Ventura e de Bruno Nunes ao quartel, nos vídeos do programa 18M e na homenagem prestada pelo Chega na Assembleia da República.

E, em setembro de 2021, já em pré-campanha eleitoral autárquica, Magrinho acompanhou Bruno Nunes numa reunião com o IRA. O encontro aconteceu depois de, no mês anterior, o IRA ter vindo a público apoiar a candidatura de Magrinho pelas listas do Chega. Disse o grupo animalista que, enquanto Chefe da PSP de Sintra, nunca negou “qualquer tipo de apoio solicitado pelo IRA”. Na fase inicial do IRA, a zona de Sintra foi precisamente a zona de atuação por excelência do grupo justicialista animal. "Chefe da PSP de Sintra, [Magrinho] mobilizou esquadras, agentes, viaturas e tudo o que nos fosse necessário para salvar dezenas de animais no município de Sintra, aplicando a LEI", lê-se no comunicado em que o IRA apoiou Magrinho nas autárquicas de 2021.

A parceria entre IRA e BVC parece ter sido apenas um passo de um caminho mais longo. Na mesma cerimónia de celebração do protocolo entre IRA e AHBVC, Armando Tomás, líder do IRA, disse estar em conversações com a própria Câmara Municipal de Loures para se firmar uma nova parceria. A Câmara de Loures, liderada pelo socialista Ricardo Leão, não respondeu às perguntas do Setenta e Quatro.

A ligação do IRA com organismos de Estado não se fica pelo poder local. Ainda este ano, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) deu uma sessão de formação ao IRA. Ao Setenta e Quatro, o ICNF confirmou a existência de outra ação de formação a 7 de janeiro de 2023, “ministrada pela Diretora do Departamento de Bem-Estar dos Animais de Companhia do ICNF, Alexandra Pereira, nas instalações do NIRA”.

Estas formações não foram custeadas pelo IRA, de acordo com o ICNF. No entanto, o instituto não respondeu à questão do Setenta e Quatro sobre se teria alguma reserva em ministrar formação a um grupo de natureza vigilantista. Também o Ministério do Ambiente, que tutela o ICNF, se recusou a responder a essa questão, dizendo apenas que “o ICNF participa em e organiza ações de formação no âmbito das suas competências de promoção do bem-estar animal”.

A confiança de organismos do Estado no IRA parece, ainda assim, ir mais longe. Esta sexta-feira, 2 de junho, terá lugar uma conferência promovida pela Provedora do Animal, Laurentina Pedroso, que contará com a participação do Presidente do IRA. Armando Tomás falará numa mesa redonda com o nome “Proteção das Vítimas – Estratégias para abrigar Animais e Pessoas, onde estamos e para onde queremos ir”. Enquanto Diretora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona, Laurentina Pedroso assinou em 2019 um protocolo com o IRA.

Em poucos anos de existência, o IRA, que tem sido conotado com a extrema-direita, conseguiu legitimar-se junto de órgãos de poder local e central, organismos cuja missão contrasta com a natureza violenta, justicialista e opaca do grupo animalista. A sua aparência paramilitar, o seu incitamento à violência, a opacidade das suas contas e o seu discurso vigilantista não parecem demover organismos de Estado de os acolher e legitimar. O grupo animalista tenciona alargar estas parcerias a outros municípios e celebra nas suas redes sociais todos os momentos em que são legitimados. 

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