Marco Carvalho – Hoje Macau, opinião
Das forças e
pulsões que nos consomem, a inquietude é a que melhor nos serve. É uma força
mobilizadora, a resposta natural do espírito ao que se desconhece ou ao que se
não pode controlar. A morte, a antecipação da ausência, o envelhecimento, o
desconcerto do mundo, a erosão do conhecimento e dos sistemas de crença são
factores universais de inquietação. Os residentes de Macau andam inquietos, a julgar
pelos resultados de um par de inquéritos, um conduzido pela Universidade de
Hong Kong, o outro pela Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau,
instituições circunspectas e até evidência em contrário entidades acima de
qualquer suspeita.
A requentada
problemática dos preços da habitação, reporta a instituição de ensino superior
do território, fere de morte a crença que o futuro da RAEM nos reserva a todos
dias mais confortáveis. Os índices de confiança dos consumidores de Macau andam
pelas ruas da amargura e o exercício improvável de se sonhar com casa própria
sem naufragar num mar de inquietações é um atentado à tranquilidade de uma boa
parte da população. Num recanto do mundo onde o desafogo financeiro persiste e
a aritmética das contas se produz com parcelas quilométricas, a erosão da
tranquilidade é a mais desconcertante evidência de que o governo não cumpre o
seu papel.
Desconcertante,
ainda que por outros motivos, o inquérito conduzido pelos investigadores do
Programa de Opinião Pública da Universidade de Hong Kong confirma também que os
índices de confiança da população de Macau entraram em declínio e atesta o
inatestável. Ao que parece, os residentes do território andam desiludidos –
pasme-se – com os princípios de democracia e a vivência democrática.
A história da
governação, como meio de orientação e de elevação das sociedades, foi ao longo
de milénios um relato de desequilíbrio e barbárie, de conflito e de relações
brutais de poder em que o indivíduo e o pressuposto do individual não têm
lugar. Em milénios de canalhocracia, contam-se apenas duas experiências
significativas do que se pode definir como democracia. A primeira teve a Atenas
clássica como palco e perdurou por pouco mais de um século e meio; a segunda
está em rápida erosão e tem o que se convencionalizou chamar de Ocidente como
principal protagonista. Se resumirmos a ideia de democracia ao paradigma
simplista de um cidadão, um voto, a vivência democrática nos Estados Unidos da
América – o paladino bélico-moral do sistema – tem pouco mais de nove décadas
em teoria e quase meio século na prática, dado que só em 1965 foi aprovado o
Voting Rights Act e sancionado o direito ao voto da população negra. Pelo mesmo
termo de comparação, a experiência democrática em Portugal é uma realidade
ainda mais incipiente, forjada que foi no dealbar da madrugada inteira e limpa
que pautou o mais essencial virar de página na história de um país que sempre
conviveu mal com o preceito das liberdades civis.
Um tal virar de
página não teria hoje a si inerente, porventura, um tão arreigado capital de
esperança. A maturação doutrinária dos princípios e ideais democráticos teve no
pós- Segunda Guerra o seu período áureo, não apenas como resposta óbvia aos
horrores perpetrados, mas também como alternativa ao sincretismo utilitarista
dos ideais comunistas. Durante quase meio século, mais do que um inimigo
confesso, o Ocidente teve na União Soviética um referente ideológico que
importava desdizer e contrariar. O que a história recorda como “guerra fria” e
os manuais escolares definem como um diálogo de surdos garantiu aos
trabalhadores da circunspecta Inglaterra ou da libertária França benesses hoje
fragilmente adquiridas como o subsídio de férias, o décimo terceiro mês ou a
semana de trabalho de 40 horas. Erroneamente aplaudida como sendo uma grassa
vitória dos princípios democráticos, a perestroika e a queda da União Soviética
privou as democracias do Ocidente da incómoda sombra que lhes insuflava
integridade e plenitude. Sem um antagonista moral forte, o estado democrático
tergiversou, sucumbiu a interesses e grupos de pressão e colocou em cheque a
própria ideia de democracia, ao reduzir os ideais democráticos à sua acepção
mais folclórica e à premissa de que no direito ao voto se condensa a mais
essencial das liberdades. Permitir que o povo eleja quem o governa não é
necessariamente o mesmo que governar com e para o povo, como a União de todas
as austeridades Europeias tão mal tem demonstrado ao longo dos últimos anos,
prestando um péssimo serviço e uma pior homenagem aos ideais democráticos.
Ignaro me confesso.
Desconheço o alcance da definição de democracia sob a qual se alicerça o
inquérito conduzido pelo Programa de Opinião Pública da Universidade de Hong
Kong, mas uma instituição acima de suspeita, com uma reputação e um nome a
defender, tem a responsabilidade de saber e fazer melhor. Perguntar a um
residente de Macau se os “ideias democráticos” que por cá se comungam o
satisfazem é o mesmo que perguntar a um refugiado do Sudão do Sul ao que sabe o
caviar. Inquietos, nem um nem outro saberão responder. Um nunca provou
democracia. O outro nunca saboreou caviar.
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