terça-feira, 19 de agosto de 2014

Portugal: A REALIDADE DE PASSOS COELHO NO PONTAL, BERLIM



Miguel Guedes – Jornal de Notícias, opinião

Na reentrada em cena da época política, Pedro Passos Coelho é um tradicional. Em 2011, quando recuperou a Festa do Pontal como pano de fundo para a reabertura pós-"silly season" do PSD, sabia bem parte da missão que o esperava: aproximar-se de Cavaco Silva que havia lançado os últimos foguetes no Pontal em 1994 e romper com a proximidade de Durão Barroso e Santana Lopes à Universidade da JSD em Castelo de Vide. Os anos de juventude partidária eram tempos passados e - como canta Florence and the Machine - "Dog days are Over". Só que a aproximação a Cavaco Silva nunca foi fácil e não lhe bastava reavivar o espírito da festa. Quatro anos volvidos, Passos Coelho nunca encontrou em Cavaco Silva um parceiro com quem dançar o tango ou fazer viagens alcatroadas. O betão estava armado e já não se sentia a febre das auto-estradas. Mas já que era seguro, Passos Coelho decidiu fazer a rodagem ao seu próprio carro e foi encontrar amigos lá fora.

Os seus verdadeiros amigos governaram a casa durante todos estes anos e para com eles o nosso primeiro-ministro não resiste à demonstração de uma lealdade enternecedora. A devoção com que Passos Coelho defende os amigos e credores europeus é uma surto de lealdade comprometida para a infinitude dos tempos, uma versão pagã de devoção pela fé ao eixo de Merkel, a liturgia do amor a crédito: "Portugal só não entrou em bancarrota porque houve uma Europa solidária", disse, sem conseguir explicar como conseguiu a proeza de aumentar a dívida pública de 95% para 133% do PIB. "Foram três anos que nunca mais esqueceremos", continuou. Nisso estamos de acordo.

Os nossos credores praticaram algo vagamente conhecido por um nome: extorsão. Consentida, claro, o que lhe retira a parte aguda do crime. Deram-nos o mínimo e perdoaram-nos zero. Alimentaram-nos o ego do "bom aluno europeu" para depois executarem, implacáveis, as suas políticas de empréstimos de casino. Entretanto, empobrecemos. Entretanto, reformamos as nossas vidas. Entretanto, muitos portugueses foram convidados a sair e vêem agora o país e as famílias ao longe, com tristeza e alguma resignação. Este Governo criou um Muro de Berlim entre os portugueses, dividiu para reinar e perdeu a soberania do reino. Este Governo dividiu entre novos e velhos, públicos e privados, úteis e inúteis, declarou ser insuportável o que é constitucional e inconstitucional o Tribunal que resolveu desafiar como engodo e bode expiatório para atingir os seus fins. O PSD marcou a sua "rentrée", mas está a ultrapassar pela direita na hora de ponta. A campanha eleitoral para as Legislativas 2015 arrancou no Pontal e, assim sendo, Passos Coelho interrompeu as suas férias. Não seria um banco a retirá-lo da espreguiçadeira.

O que mais me comove no discurso de Passos Coelho é a forma tão pessoal como vê a realidade e a descreve sem pudor. Como escrevia Paul Watzlawick, mestre austríaco das teorias de comunicação no livro "A realidade é real?", a ideia do nexo entre comunicação e a realidade é relativamente nova. A configuração da realidade de Passos Coelho é um labirinto só seu, recente, criado e alimentado por uma subserviência cega aos donos da Europa a que ele dá suporte, ao apogeu do poder financeiro em detrimento do elogio da nobreza do poder político, um labirinto criado por si e por aqueles que acreditam que estas políticas de empobrecimento são uma realidade divina e inultrapassável, o fim da história com credores de mão estendida à porta de um inferno que é o nosso.

Cerca de 45 minutos de intervenção. Intervalo, portanto. Passos Coelho acredita (e são palavras suas) que está a meio do percurso e, sendo assim, só lhe desejo que experimente um pouco da precariedade que foi semeando sem complacência no país que o resolveu eleger. Já que só lhe ouvimos palavras vagas sobre a promiscuidade entre a banca e o poder, auguro-lhe uma saída tão limpa como aquela que terá escolhido para o período pós-troika. Auditada, escrutinada, monitorizada, acompanhada pelos seus melhores algozes, aqueles que jura a pés juntos serem os nossos amigos e salvadores.

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