terça-feira, 19 de maio de 2015

AFROCAPITALISMO, DESENVOLVIMENTO E LUTA DE CLASSES (Parte 2)



Rui Peralta, Luanda

O mundo dos povos ou a luta pelo planeta Terra sem amos e sem fronteiras

I -  Mantras e oráculos

Nos últimos 20 anos, cerca de 30 mil pessoas morreram às portas da Europa. Em 2014 a cifra da morte refere cerca de 3 mil e 500 pessoas e no presente ano de 2015 ("ano do desenvolvimento" segundo a UE) estimam-se entre 1700 e 2000 mortes até fins de Abril. De cimeira em cimeira os dirigentes europeus e africanos inventaram a ilusão do "desenvolvimento económico" que baseia-se no seguinte oráculo: "o desenvolvimento cobrirá as necessidades de África". O "novo oráculo" ganhou forma na Conferência de Rabat e de Trípoli, em 2006, foi revisto em Ugadugu e Paris (2008) e ê decorado em todas as cimeiras euro-africanas (metrópoles-província?) realizadas até 2015, ano em que a UE debateu entre si (sem a presença indiferente dos responsáveis africanos) as vagas migratórias africanas que se abatem nas suas costas mediterrânicas e do Atlântico Sul.

O assunto tornou-se urgente em Bruxelas e de forma febril iniciou-se um processo de contratações e subcontratações, confina-se, projetam-se centros de detenção e de retenção, arquipélagos concentracionários à imagem dos campos de extermínio dos nazis (que hoje rebolam-se nas campas, rindo dos seus juízes e questionando-se porque em vez de os enviarem para um tribunal em Nuremberga não os colocaram a dar formação de arte e ciência do extermínio e do genocídio num qualquer instituto de formação profissional, ou a realizar workshops de formação de quadros) longe dos olhos das gentes, dos direitos, liberdades e garantias. Enquanto Bruxelas reunia-se, consultando o oráculo, os responsáveis africanos batiam com as cabecitas duras nas rochas, repetindo ferverosamente e de forma metódica, por que razão o oráculo não lhes respondia, a eles crentes sequiosos de fé, metodologicamente expressa nas palavras sagradas: "taxa de crescimento". Cegos, surdos e mudos, de tanto baterem com a cabeça na rocha, os responsáveis africanos viraram-se para Oriente (não para Meca que é metodologia incorreta, mas para a "Ásia profunda") abandonando o oráculo e passando a recitar o "mantra" do desenvolvimento "neo-Bandung".

Com as suas mortes, no mar ou no deserto, os jovens africanos interpelam os seus governos e as metrópoles do Ocidente e do Oriente, onde os governantes africanos e as oligarquias económicas e burocráticas do continente passeiam a sua exuberante e luxuosa submissão (que a prepotência fica em casa quando se visita o patrão). Com as suas mortes no deserto e no Mediterrâneo, os jovens africanos lançam um repto ao mundo, um grito amordaçado à ONU e aos Objectivos do Milênio para o Desenvolvimento (que termina este ano. Que constará no relatório final? Mais um oráculo? Um mantra? Uma pia baptismal? Ou uma grande campanha de marketing a anunciar os novos objectivos do milénio?).

II - A Europa-Fortaleza e a África-Presidio

Para demonstrar que está a fazer algo a Europa veste a camisa do avesso e ataca os traficantes. É claro que estes têm de ser condenados, mas eles não são a causa do problema, apenas uma das suas inúmeras consequências. Aliás este tipo de raciocínio, próprio do polícia que anseia pela promoção, vem na sequência de outro perigoso "palpite" que considerava os emigrantes africanos como "terroristas" (em alguns países africanos da faixa Atlântica mais a sul esta lengalenga pegou: os emigrantes africanos e do Médio-Oriente são todos uma cambada de terroristas e agentes desestabilizadores, que roubam diamantes e fazem buraquinhos nos "pipe-lines" e trazem consigo hábitos nocivos, costumes pecaminosos e religiões estranhas e fanáticas, que adoram o seu Deus em língua estrangeira. Desta forma sustenta-se uma imensa multidão de bufos improdutivos, empregados num ineficiente e dispendioso sistema de segurança integrada que passa o tempo a inventar cenários, todos de péssima prosa, pobre de palavras e vazia de sentido, mas eficaz a cobrir interesses de rapina e obscuras intenções).

A intervenção do Papa e de outras autoridades religiosas cristãs e islâmicas fez recuar o bando de comissionistas e lobistas que os monopólios da indústria da defesa e da segurança (que vêm nas vagas migratórias uma excelente fonte de receitas, assim como no terrorismo ou nos folhetos jornalísticos que relatam casos de facadas nas velhinhas) recrutaram nos aparelhos de Estado da Europa e nas instituições da UE. Perante o alerta dos religiosos e as multidões de seres humanos desesperados, vindos de "exóticos lugares" (Eritreia, Mali, Republica Centro-Africana, Libéria, Níger, Camarões, Guiné-Conacri, Gambia, Sudão do Sul, Somália...) colocar o acento do problema nos traficantes é de uma leviandade própria dos personagens das telenovelas impróprias para consumo, ou de um policial barato da serie B, onde o policia bêbado desvenda o crime que ele próprio cometeu quando estava sóbrio e prendeu o cúmplice.

Mais que os emigrantes, os seus itinerários e as redes de tráfico de pessoas é a natureza das economias europeias e africanas e das suas relações que devem ser equacionadas. No banco dos réus devem comparecer os traficantes, como cúmplices do crime, mas primeiro deve comparecer os "cabecilhas" do bando, os autores morais e de facto do crime: o capitalismo e os seus instrumentos de acumulação e de reprodução: o neocolonialismo e o imperialismo. É a Fortaleza-Europa e a África-Presidio que devem ser julgados no tribunal dos Homens, são os monopólios da indústria da segurança, mais os "experts" que apenas olham para os "conceitos estratégicos e territoriais", para as "muralhas e fronteiras", os desavergonhados que propõem a "solução final" dos centros de detenção à maneira fascista, espezinhando, simultaneamente, o direito internacional, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Carta das Nações Unidas. E depois, muito depois das burocracias corruptoras e ao nível dos polícias e funcionários corruptos que retêm a documentação dos emigrantes, exigindo o pagamento de "tributos" e "taxas de entrada e de saída", é que estão os traficantes. Quanto ao direito básico que enuncia "o direito de toda a pessoa deixar qualquer país, incluindo o seu" é ignorado, espezinhado e sistematicamente atirado para o cesto dos papéis...

Os emigrantes africanos (tal como os seus congéneres latino-americanos e asiáticos) sofrem na pele as "normas de segurança", a vigilância das fronteiras, o FRONTEX, os dispositivos eletrónicos de segurança, a presença militar, as feras, os transportes clandestinos sem quaisquer condições, os itinerários infindáveis, as doenças e a indiferença dos seus governos e muitos encontram na morte o fim dos seus tormentos, mas transportam o sonho de uma vida melhor, mais digna, que ofereça algo que na sua terra foi executado à nascença: o futuro.

III - Os acordos homicidas

Em 2010 a 3° Cimeira Africa-UE realiza-se na Líbia e todos os participantes (cerca de 80 Estados africanos e europeus) estabelecem acordo em torno de um "plano de acção" a cumprir entre 2011 e 2013, que englobava a criação de empregos, investimento, crescimento económico, agricultura e emigração. Os acordos foram estabelecidos e o que aconteceu de seguida? A Líbia foi desestabilizada, invadida pela NATO e destruturada, acabando entregue a bandos armados. Milhares de trabalhadores da Africa subsaariana e do Magreb que emigraram para a Líbia perdem os seus empregos, juntando-se aos milhares de desempregados dos seus países de origem, dispostos a emigrarem a qualquer preço.

A luta contra a austeridade, pela igualdade, pela justiça económica e social são consignas dos povos de todo o mundo, porque a austeridade, a precaridade e a profunda desigualdade são males que atravessam a economia-mundo, o mundo das fronteiras e dos amos, dos Senhores da Guerra e dos Estados, dos funcionários alfandegários e dos capatazes, dos policias fardados e dos bufos à civil, com óculos escuros e fato barato.

Na Europa gregos e portugueses emigram em massa, em África as emigrações em massa originadas na Africa subsaariana e no Magreb atingiram uma escala catastrófica, na América Central e do Sul a caminhada para Norte prossegue, na Asia as vagas migratórias provindas dos grandes nichos de 4° mundo que prevalecem no continente asiático abatem-se sobre regiões onde a vida é mais digna e o trabalho é possível. A grande maioria destas vagas migratórias não existiriam se as políticas económicas gerassem riqueza para toda a sociedade. Mas essa é uma realidade que as oligarquias não querem admitir.

Quando em 2001 a agricultura africana foi lançada na estrutura convencional dos mercados globais sem qualquer preparação prévia iniciou-se uma catástrofe de grande amplitude para os camponeses, comunidades rurais e famílias africanas dependentes da actividade agrícola. O domínio das transnacionais agroindustriais e o agro-negócio geram milhões de desempregados no campo, sem qualquer hipótese de serem absorvidos pela indústria ou serviços, mesmo que o crescimento económico seja de dois dígitos. Para agravar a situação a instabilidade alastra no continente. Nas regiões em conflito a insegurança impede a actividade económica. Camponeses, pequenos e médios agricultores pastores, criadores de gado, pescadores, artesãos e comerciantes ficam impossibilitados de trabalhar. Ora os emigrantes provêm destes sectores, que são afectados pelos Acordos de Cooperação Económica (APE) impostos (nuns casos) aos Estados africanos ou cegamente aceites por estes (em muitos casos) e pelo Tratado Transatlântico de Livre Comércio (TTIP).

O derrube das barreiras alfandegárias e o Livre Comercio são bem-vindos a África, mas as Boas Vindas apenas podem ser dadas por todos os africanos quando existir uma igualdade de oportunidades e de facto entre os produtores africanos e os seus congéneres ocidentais. Estes programas para serem benéficos para o conjunto das debilitadas e dilaceradas economias africanas terão de ser revistos e a sua execução a longo-prazo, de forma faseada, sob supervisão cidadã, ou seja, sob a alçada da soberania popular, das instituições e organizações cidadãs e não apenas sob o olhar dos Estados ou das agências privadas.

IV - Os filhos de África

A grande quantidade de homens, mulheres e crianças que se afogam nas águas mediterrânicas e do Atlântico Sul ou que desaparecem nas areias do deserto é uma imagem pouco divulgada e uma noticia raramente difundida e sempre de forma fugidia. A morte, aos milhares, de pais, mães e filhos é uma realidade ocultada, porque demonstrativa da violência e depredação do capitalismo. Cada emigrante engolido pelo Mediterrâneo ou pelas areias do deserto é filho de África e o seu grito permanecerá gravado na memória ancestral do continente-mãe.

A mamã Africa è, também terra de mães, de viúvas e de órfãos. Mães que vêm os seus filhos transformados em emigrantes "clandestinos", narcotraficantes ou em "combatentes islâmicos" ao serviço dos bandos fascistas islâmicos. São mães que choram a morte dos filhos ou sofrem pelo destino daqueles que geraram nos seus ventres. Foi um grupo de mães e viúvas de emigrantes engolidos pelo mar que reuniu-se em Thiaroye, Senegal, encabeçadas pela indomável Yahy Bayam Diouf. Rumaram para Bamaco, Mali, onde reuniram-se com mães e viúvas de emigrantes engolidos pelas águas mediterrânicas e em conjunto regressaram ao  Senegal, mães e viúvas africanas, do Mali e do Senegal que rezaram, numa embarcação, pelos seus entes queridos, mortos nas águas do mar e pelos sobreviventes deportados, os mortos-vivos que vegetam no desemprego, já sem sonhos (quem disse que os Homens não perdem os sonhos? E já viram um Homem sem sonhos, um Homem a quem extraíram os sonhos? Nada mais horripilante que o olhar vazio de um Homem sem sonhos...).

E África é como estas mães inquietas e pensantes, cujos filhos foram sacrificados nos aromatizados altares dos mercados...

V - Da aldeia global ao presidio global

A quem pertencem os recursos mineiros, energéticos, agrícolas, florestais, pesqueiros e outros que a economia-mundo necessita? Aos filhos de África que morrem às portas da Europa. Os pilares do crescimento europeu encontram-se nas terras de origem dos emigrantes "clandestinos". As terras do Sahel e do Magreb, onde repousam estas riquezas foram paulatinamente convertidas em campos de batalha. Por isso todos somos perdedores. O Ocidente pensa mesmo que defende os seus interesses manipulando e instrumentalizando o Conselho de Segurança e violando acordos como fez com a Líbia? Pensa mesmo o Ocidente que defende os interesses das suas empresas, levando a guerra aos pontos onde se situam os pilares da sua riqueza? Julga o Ocidente defender a liberdade de circulação quando cada vez existem mais e maiores zonas de risco, para onde não podem deslocar-se? Somos todos perdedores e somos todos confinados a espaços concentracionários. A aldeia global já não é mais aldeia...é um presidio.

E como derrubar os muros do presidio? Através da convergência das lutas em África, na Europa, na América e na Ásia, de forma a constituir uma rede global de trincheiras firmes. E porquê? Porque não são apenas as embarcações que transportam os emigrantes africanos que se afundam...é a dignidade inerente a todos os homens e mulheres que constituem a humanidade que se afoga nas aguas revoltas dos "mercados” da economia-mundo...é a sua condição humana que se afunda nos leitos lamacentos do Capital...e porque é na continuidade da luta que se adquire a certeza da vitoria!

(continua)

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