No
norte da Síria, curdos criam região autônoma, governam por meio de conselhos e
mobilizam, contra terror do IS, exército popular com forte presença de
mulheres
Iskender
le Verink, RoarMag – Outras Palavras - Tradução João
Victor Moré Ramos
Há
semanas, a cidade curda de Kobanê, em Rojava (curdistão sírio), tem sofrido
severos ataques do Estado Islâmico (IS). Os ataques começaram no dia 15 de
setembro, quando milhares de combatentes do IS, apoiados por dezenas de
tanques e artilharia pesada, se dirigiram em três frentes a Kobanê. Até agora,
o IS obrigou milhares de curdos sírios a se retirar de suas casas nas
aldeias vizinhas e buscar refúgio em Kobanê ou do outro lado da fronteira, na
Turquia.
Graças
à corajosa resistência dos curda Forças de Defesa do Povo e das Mulheres (YPGe
YPJ), o IS foi incapaz de entrar na cidade. O presidente do Partido da União
Democrática (PYD), Salih Muslim, afirmou com muita confiança: “Eu conheço o
povo de Kobanê muito bem. Algumas aldeias podem ter sido derrotadas, e
retiradas em massa podem acontecer. Eles podem até fechar a cidade. Mas Kobanê
nunca vai cair. Para Kobanê cair, todo mundo tem que ser morto”.
Por
mais terrível que pareça, pode ser isso, exatamente, o que o IS planeja. Até
porque foram justamente as forças do YPG e YPJ, juntamente com guerrilheiros
experientes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que quebraram o
cerco de Sinjar no Iraque, onde milhares de Yezidis sofreram um massacre nas
mãos do IS. Agora os jihadistas podem considerar o momento ideal para a
vingança.
Mais
preocupantes, ainda, são os relatos de possível apoio turco aos combatentes
islâmicos. Mesmo que a Turquia negue categoricamente todos os vínculos com IS,
coincidentemente dias antes da liberação de 49 reféns turcos, moradores turcos
da região observaram a movimentação de trens, tanques e munições em áreas
controladas pela IS — o que despertou a atenção dos observadores críticos da
situação.
Kobanê
sob ataque
Esta
não é a primeira vez Kobanê sofre ataque do IS. No início de julho, depois de o
IS capturar Mosul, os jihadistas usaram armas pesadas, que tomaram do exército
iraquiano, para sitiar Kobanê. Depois de vários dias de combates, e centenas de
baixas entre as fileiras do IS, o grupo terrorista aceitou a derrota diante das
forças de defesa curdas.
De
todo modo, a cidade de Kobanê é importante para ambos os lados, tanto em termos
estratégicos quanto simbólicos. Situada perto da fronteira com a Turquia, a
menos de duas horas de carro ao norte de Raqqa, capital do Estado Islâmico,
Kobanê esteve na lista dos objetivos islâmicos por um longo tempo. Conquistar a
cidade significaria dividir em duas a Rojava — região no norte da Síria
predominantemente povoada pelos curdos, também conhecida como “Ocidente
Curdistão” – e assegurar, em favor do IS, o importante controle sobre um trecho
da fronteira com a Turquia, tornando ainda mais fácil receber suprimentos do
exterior e adesão de jihadistas estrangeiros.
Além
disso, a derrota anterior do IS pelas forças curdas da Síria em ambos locais,
Kobanê e Sinjar, foi interpretada como um tapa na cara dos jihadistas.
Especialmente, o fato de que quase um terço das milícias curdas serem
constituídas por mulheres tem servido para envergonhar os islamitas radicais —
que preferem ver mulheres cobertas de túnicas pretas da cabeça aos pés, ao
invés de despidas de véu, independentes e empoderadas por um fuzil AK-47 em
suas mãos.
O
último fato importante que coloca Kobanê no topo da agenda do Estado Islâmico é
o fato de que foi neste lugar que começou a Revolução
Rojava em 19 de julho de 2012. Então, a cidade foi libertada das
forças de Bashar Assad e tornou-se o lar de Revolução Democrática Popular.
Nessa luta, os curdos da Síria declararam sua autonomia em relação ao Estado e
estão em continuo trabalho de desenvolver assembleias democráticas e populares
em prol do confederalismo como um meio para se governar.
O
papel da Turquia
Apesar
da urgente situação em Kobanê, outra questão tem dominado as manchetes dos
meios de comunicação controlados pelo Estado na vizinha Turquia. Em 20 de
setembro, 49 funcionários do consulado turco em Mosul foram libertados, depois
de terem sido sequestrados pelo IS em 11 de junho, quando o grupo terrorista
invadiu a cidade.
Nos
meios de comunicação turcos, a Organização Nacional de Inteligência (MIT) e o
Ministério das Relações Exteriores estão cobertos de glória por seus papéis na
libertação dos reféns. Mesmo que o presidente Erdoğan pessoalmente negue
qualquer especulação sobre um acordo firmado com o IS, observadores críticos
questionaram as relações da Turquia com a organização terrorista e seu papel no
ataque a Kobanê.
Quase
não é segredo que a Turquia tem sido um defensor secreto de longa data do IS.
Contudo, como um dos principais aliados dos Estados Unidos na região, o governo
turco escondeu este apoio até quando o cenário tornou-se tenso no Iraque. Tanto
a Turquia quanto outros membros da NATO viram inicialmente a organização
islâmica como um aliado importante na guerra por procuração para derrubar o
regime sírio de Assad. Nem o fato de as ações do grupo serem orientadas por um
fundamentalismo extremo, semelhante ao da Al Qaeda foi suficiente para que a
Turquia cortasse seus laços com IS.
Pelo
contrário, parte dos milhares de combatentes estrangeiros que engrossam as
fileiras da IS entrou na Síria cruzando ilegalmente a fronteira da Turquia. Há relatos de que soldados feridos do IS foram tratados
em hospitais turcos, além de que o petróleo do território controlado pelo IS é
contrabandeado para a Turquia e vendido, com o reconhecimento das autoridades
locais, no mercado negro.
À
luz dos ataques em curso sobre Kobanê, circulam rumores persistentes sobre um
apoio mais direto da Turquia para o IS. A Firat News informou
que um dia antes do início do ataque, em 14 de setembro, milhares de membros do
IS foram levados para a fronteira em ônibus, e autorizados pelo exército turco
a entrar na Síria. Um cidadão local relata: “As milícias do IS trazem pessoas e
armas através da fronteira, sob supervisão do exército turco. Temos assistido
isso muitas vezes. Nesta ocasião, foi um dia antes de os ataques começaram.“
Autonomia
em Rojava
Por
que a Turquia se preocupa com a população curda na Síria? A explicação mais
provável é que a Turquia teme muito menos os próprios curdos sírios do que suas conquistas. A
revolução social em Rojava tem servido como luz de esperança para milhões de
curdos na região, cuja terra natal tradicional foi retalhada e dividida entre
Turquia, Síria, Iraque e Irã no Acordo Sykes-Picot, de 1916.
A Carta do Contrato Social, que funciona como uma
Constituição para os três cantões autônomos em Rojava, deixa pouco espaço para
discussão quando se trata da relação entre as pessoas e o Estado: “[A Carta]
protege os direitos humanos e liberdades fundamentais e reafirma aos povos o
“direito à autodeterminação“. Isto, obviamente, representa insulto e injúria
para o Estado turco, que trava há décadas uma guerra de décadas contra o
Partido Comunista do Curdistão (PKK). Anteriormente separatista, esta
organização abandonou recentemente a luta armada e já não exige a independência
para o Curdistão — mas alto grau de autonomia para os curdos que vivem dentro
das fronteiras do Estado turco.
As
ligações estreitas entre o PKK e o povo do Curdistão sírio vêm de longa data.
Foi aqui que o fundador e atual líder do PKK, Abdullah Ocalan, procurou
refúgio, no final de 1990; e foram remanescentes do PKK na Síria que fundaram o
Partido de União Democrática (PYD) em 2003. Aos olhos da Turquia, o PYD nada
mais é que um ramo sírio do PKK, tratado como tal.
No
ano passado, quando o governo da Síria tirou suas forças de Rojava, para
reforçar as tropas que sitiavam Aleppo, o PYD declarou que estava pronto para
governar a região. Então, o primeiro-ministro turco Erdogan (agora presidente
do país) declarou que não aceitaria a criação de uma “estrutura terrorista” na
região. Ao afirmar que um enclave curdo separatista seria uma ameaça direta aos
interesses e segurança da Turquia, ele acrescentou: “É nosso direito natural
para intervir (no norte da Síria), pois essas formações terroristas irão
perturbar nossa paz nacional”.
A
estreita relação entre os curdos na Síria e na Turquia, não existe apenas na
imaginação de Erdoğan: é parte muito importante das realidades cotidianas das
populações que vivem na região. As fronteiras arbitrárias desenhadas nos
primeiros anos do século 20 dividiram tribos e famílias, que de repente
viram-se vivendo em lados diferentes das fronteiras nacionais recém-criadas. No
entanto, devido ao difícil acesso às regiões montanhosas da fronteira, os
curdos locais, com conhecimento íntimo das vias secretas para além da
fronteira, continuaram a viver suas vidas onde enxergavam o Curdistão.
Por
estas razões, os curdos do sudoeste da Turquia ainda sentem-se intimamente
ligados a seus parentes no norte da Síria. A solidariedade entre os dois grupos
já era evidente, quando centenas de homens e mulheres jovens cruzaram a
fronteira para a Síria, há dois meses, durante o primeiro ataque do IS em Kobanê. O mesmo processo
repetiu-se nos últimos dias.
Para
auxiliar a resistência, Öcalan apelou ao povo curdo para iniciar uma mobilização em
massa contra o IS: “Em relação aos ataques do IS, todos os nossos povos devem
moldar sua vidas de acordo com a guerra que se intensificou no Curdistão, neste
exato momento. Não só a população de Rojava mas também os moradores do Norte e
de outras partes do Curdistão devem agir em conformidade”, disse ele.
Ativistas
curdos que protestaram na fronteira, contra a suspeita de envolvimento turco
com os eventos em Kobanê, foram
atacados por forças de segurança com canhões de água e gás lacrimogêneo.
Apoiar
os curdos
Embora o
avanço do IS tenha sido refreado, ou mesmo interrompido em várias frentes pelas forças do YPG /
YPJ, Kobanê e o resto de Rojava ainda estão sob ameaça iminente de serem
massacrados pelos combatentes islâmicos radicais. Os recentes bombardeios praticados
pelos EUA e seus aliados posicionados na Síria pode oferecer algum alívio
àqueles que defendem a cidade, especialmente após os ataques aéreos durante a
noite, aparentemente realizados pelo IS nas proximidades do território de
Kobanê. Mas o que realmente os curdos precisam agora é o reconhecimento
internacional de sua posição única como uma entidade autônoma, bem como fontes
de financiamento e armas em seu apoio.
Enquanto
a comunidade internacional permanecer em silêncio sobre o suspeito apoio da
Turquia ao IS, só aumentará sua cumplicidade com crimes cometidos contra o povo
curdo. O avanço do IS não pode ser interrompido por meio de ataques aéreos e
condenações diplomáticas. Pelo contrário, faz-se necessário cortar seus
vínculos fundamentais de articulação (isto é o afluxo de novos recrutas e apoio
financeiro de material a partir de países da região), e derrotá-lo
militarmente. Em ambos os casos, a Turquia e os curdos terão um papel
fundamental a desempenhar. A Turquia precisa encerrar qualquer tipo de apoio
velado ao IS. Os curdos precisam estar armados e apoiados, pois só assim
conseguirão enfrentar as as forças extremistas que espalham o terror no Oriente
Médio.
*Iskender le Verink é um escritor freelance que vive em Istambul, e um dos editores da ROAR Magazine. Você pode segui-lo no Twitter via @Le_Verink.
A resistência dos curdos contra o IS pode ser acompanhada, quase diariamente, numa página especial da Wikipedia (em inglês).
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