Crise
econômica aprofunda-se, mas saiu das manchetes dos jornais. Foi usada para
derrubar governo e promover retrocessos sociais. Agora, pode voltar a ser bela,
recatada e do lar
Laura
Carvalho – Outras Palavras
Aos
que vivem dentro das muralhas que protegem o Norte, pode parecer que nos
tornamos de vez um país de selvagens. Anátemas no governo Dilma, agora há
grande tolerância com o deficit elevado, o índice inflacionário do mês passado,
os reajustes no salário de magistrados e mesmo com as pedaladas fiscais, hoje
consideradas uma forma legítima de redução da dívida. A ausência de qualquer
proposta para a retomada do crescimento não desafina o coro dos contentes.
O
livro A Nova Razão do Mundo, dos franceses Christian Laval e Pierre
Dardot, recém-lançado pela Boitempo, nos ajuda a entender o fenômeno. O
neoliberalismo não seria uma doutrina econômica, e sim um instrumento de
desativação do jogo democrático. Já dizia Margaret Thatcher – referência da
presidente interina do BNDES: “A economia é o método. O objetivo é mudar a
alma”.
A
teoria econômica vem se mostrando bem-sucedida em evitar as consequências de
uma radicalização da democracia pela conquista de direitos e cidadania. A
solução, sob o véu da técnica, é criar outra forma de sujeição. A liberdade
menor é travestida de liberdade maior. Vende-se a ideia de que a falta de
liberdade deriva da submissão a um sujeito para o qual a sociedade não deve
nada: o Estado. Uma doutrina que promete a liberdade de escolha, mas é vendida
sempre sob o slogan da falta de alternativas.
E
aquele Estado, potencial garantidor das demandas dessa mesma sociedade por mais
proteção social, melhores serviços e maior igualdade de tratamento, torna-se um
inimigo. Não só no discurso mas também na prática, pois a tal doutrina
econômica encarrega-se de mantê-lo sob o controle das oligarquias.
Friedrich
Hayek, em sua visita ao Chile de Pinochet, não hesitou em deixar clara a sua
preferência por “uma ditadura liberal, em vez de um governo democrático
desprovido de liberalismo”. Hayek, aliás, esteve presente – com Ludwig Von
Mises – na reunião de 1938 em Paris que cunhou o termo “neoliberalismo”, em uma
reação ao que ambos enxergavam como uma ameaça quase tão perigosa quanto o
nazismo e o comunismo: o surgimento da social-democracia, aquela do New
Dealde Roosevelt e do incipiente Estado de Bem-Estar Social britânico.
Mas
foi nas crises que a agenda ganhou mais terreno. Afinal, seus teóricos costumam
aproveitar-se da distração da população para impor políticas impopulares, como
documentou Naomi Klein em seu livro “A Doutrina do Choque”. Tendo aprendido bem
com o golpe chileno, Milton Friedman chega a descrever o furacão Katrina como
uma “oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional de Nova
Orleans”. A maior parte do sistema de ensino público da cidade foi privatizada
em 19 meses.
A
crise econômica brasileira também se mostrou uma oportunidade de ouro para
bloquear agendas democráticas crescentes – das mulheres, dos movimentos
sociais, das minorias e da juventude – e viabilizar uma agenda ideológica de
redução do tamanho do Estado.
A
economia então sai de cena, estúpido, com o dever cumprido. Já pode descansar
nestas últimas páginas de jornal, onde continuará a receber com pompa seus
amigos de longa data. Sai das ruas para voltar a ser bela, recatada e do lar.
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