sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O OLHO DO PIRATA



Rui Peralta

A colonização dos países do sul, essa parte do mundo que foi conhecida durante décadas por terceiro mundo, foi caracterizada pelo uso da violência em todas as esferas da vida humana. O capitalismo dos colonizadores não foi permitido ao colonizado. A submissão colonial, ao contrário do que muitos afirmam não introduziu o capitalismo nas economias colonizadas (foram muito raras as excepçöes em que o capitalismo brotou nas colónias). Não só não era esse o seu papel como, também, não é dessa forma que o capitalismo se estabelece como sistema. O capitalismo foi e é o papel das independências, ainda a ser cumprido no continente africano e já cumprido na chamada América Latina e na Ásia.

O colonialismo foi um acto puro de rapina de recursos, humanos e naturais, essencial para as diversas fases de implementação e desenvolvimento do capitalismo nas potências colonizadoras. As potências ibéricas nos finais do século XV e parte do século XVI não eram capitalistas, quanto muito estariam numa fase embrionária (que tardou séculos a sair da sua forma de feto) de algumas relações proto-capitalistas, quando lançaram-se no projecto de rapina dos recursos do Sul. Já as potencias que lhes sucederam, França, Holanda e Inglaterra estavam numa fase muito mais avançada, de capitalismo nascente, dando os primeiros passos, quando iniciaram o seu processo de rapina. Foi o colonialismo inglês que, aliás, iniciou a única experiencia de introdução de um sistema capitalista numa colonia – a África do Sul – por necessidade de desenvolvimento da sua burguesia industrial (a mais avançada elite económica da época) e porque a burguesia financeira britânica retirou desse processo as vantagens do ouro.

A acçao de rapina colonial, para além de se manifestar na apropriação dos recursos naturais e humanos, caracterizou-se também pelo genocídio cultural dos povos colonizados, que foram forçados a assumir a cultura alienígena (hábitos alimentares, religião, língua, estrutura familiar, cultura de trabalho, etc). Näo é por isso de estranhar que as elites económicas dos países do sul (Africa e América Latina, principalmente, pois na Ásia a existência de em algumas regiões colonizados de uma classe mercantil poderosa, por um lado e a existência daquilo a que Marx chamou o “modo de produção asiático” e “ economias hidráulicas” desenvolvidas em torno dos recursos fluviais, foram factores que levaram a um quadro diferente) tenham adoptado e reproduzido mecanismos de pilhagem idênticos aos utilizados na colonização.

Assim, após as independências, as elites adoptaram a língua da antiga potência colonial, os métodos de administração pública, mantiveram os mesmos conceitos produtivos, os mesmos hábitos de consumo, etc, pelos mais variados motivos (estratégicos, económicos, políticos, de conjuntura e outros), é certo, mas permaneceram comodamente instaladas nessa lógica, ou seja as independências nacionais não realizaram a independência cultural (razão pela qual são permeáveis ao neocolonialismo).

Os processos de independência cultural não são mais do que processos de aculturação, mas encetadas a partir da enculturação, ou seja, do seu núcleo. A enculturação é o processo educativo pelo qual os membros de uma cultura assumem consciência, participam e comparticipam da própria cultura. A enculturação acompanha e sobrepõe-se á aculturação, é uma força dinâmica interna de uma cultura. Por sua vez a aculturação é uma força dinâmica que nasce das relações com outras culturas. Estas relações ocasionam uma multiplicidade de fenómenos e transformam a cultura numa estrutura pluridimensional.

Um dos fenómenos gerados pela metamorfose pluridimensional é a simbiose cultural, processo de coexistência e / ou convivência de duas ou mais culturas. Neste processo as culturas mantém as suas características apesar das relações de proximidade e interacçäo com as outras culturas que partilharem do mesmo processo. Outro dos fenómenos é a osmose cultural, em que os elementos de cada cultura entrelaçam-se. A compenetração dos elementos entre duas ou mais culturas pode tornar-se de tal forma íntima e total que geram o processo da fusão cultural. Todos estes fenómenos e outros gerados pelas relações entre culturas podem ser gerados a partir do seu interior, por via da enculturação, tornando-se autónomos, ou gerados a partir do exterior, tornando-se colonizados.

Um dos fenómenos desta ultima espécie – gerados na esfera exterior – é a actividade missionária, que actua directamente sobre os indivíduos e sobre as instituições. Os missionários operam numa determinada região por um longo período de tempo, com a intenção específica de gerarem transformações, criando assim uma acçäo programada de aculturação. Outros agentes de aculturação similar são os comerciantes nas colónias. O comércio é um veículo constante na história dos contactos culturais. O Islão, por exemplo, difundiu-se em grande parte pela Africa e Ásia, pela acçäo dos mercadores e para o Ocidente as grandes companhias mercantis foram a peça fundamental da penetração colonial.

O colapso dos impérios coloniais e a independência política das antigas colonias deslocou o problema cultural para a esfera do desenvolvimento económico. Uma vez mais as culturas colonizadas sofrem o efeito da aculturação pelo exterior e não a partir das suas dinâmicas internas. Grande parte das experiencias e transformações acumuladas durante as lutas armadas de libertação nacional – onde as próprias dinâmicas culturais atingem pontos elevados de aculturação, mas provocadas no seu núcleo interno e realizadas através do domínio da enculturação - são transpostos para o mito e afastados do campo do possível. Poucos anos depois esses profundos processos culturais não passam de mitos fundacionais.

Os mitos fundacionais são vitais para o capitalismo. Mais ainda se o conceito de nação foi pré-fabricado pelo colonialismo como aconteceu com a América Latina e África. O capitalismo necessita da figura do estado-nação e essa era inexistente nestes dois continentes, cujas fronteiras foram traçadas pelos interesses das potências imperiais, no caso de África, ou pelas circunstâncias das políticas internas das potências coloniais, como no caso latino-americano. Nestes casos só existia estado. As nações indígenas foram extintas pela dinâmica colonial, numa fase em que o capitalismo só podia desenvolver-se com a expansão do estado-nação para além do seu espaço territorial. Na ausência de nação as independências contavam apenas com o conceito de estado e com a máquina administrativa colonial, agora nas suas mãos, para gerirem o território de que tomaram posse. O processo de mitificação legitimava a herança cultural e acelerava o processo de identidade. Assim os territórios coloniais, sob o qual jaziam as nações indígenas, foram transformados em nação, criando-se as condições necessárias ao embrião do capitalismo.

A América Latina passou por este processo no seculos passado e entrou no seculo XX com estados-nação estruturados, embora com instituições ainda fragilizadas. Mas em Africa este processo só foi conseguido 1 século depois. Hoje o estado-nação é uma realidade em África e o reforço das instituições é um processo em curso, tornando-se também visível o modelo de desenvolvimento (o capitalismo). E este modelo implica que o crescimento económico não se manifeste, pelo menos na fase inicial, no desenvolvimento social (esse só será realizado ou pela via da necessidade funcional dos mercados, ou pela via da reivindicação).

Ignorar esta realidade (e não é aqui o lugar para falar sobre as diferenças deste percurso entre a América e Africa, ou do papel das vias de desenvolvimento não-capitalistas) é cair num discurso oco, cheio de boas intenções e emocional, mas absurdo. Utilizar termos como «maldição da abundancia» para retratar o ocorrido nos países ricos em recursos naturais, mas considerados «pobres» pelo seu estágio de desenvolvimento, é uma redundância própria de quem não quer ver o que é mas o que gostaria que fosse. Não são as promessas de abundancia, resultante das riquezas potenciais, que condicionam o padrão de desenvolvimento. A apropriação dos recursos, seja por via da privatização, da parceria ou estatal, tem o mesmo fim. A via capitalista de desenvolvimento implica crescimento do PIB. Esse é o factor primordial. Todas as outras vertentes do desenvolvimento são secundárias, melhor, são funcionais.

Esta opção pelo desenvolvimento capitalista implica a democratização politica. A democracia é o grande balão de oxigénio do capitalismo, mas também o espaço politico onde ele encontra meios para se desenvolver e legitimar-se. E os processos democráticos, os processos de abertura, que caracterizam o continente africano e a América Latina, são originados, em maior ou menor grau, pela ampliação dos factores de mercado e pelo predomínio da figura da mercadoria, em todas as fases do processo. A fase da acumulação já passou por estes continentes e já produziu os seus efeitos brutais. Ela manifestou-se pelas mais diversas formas políticas e ideológicas, que caracterizaram os modelos de desenvolvimento levados a cabo pelas oligarquias, pelas burguesias diversas ou pelas elites administrativas e estado. Isso foi o passado. A acumulação está feita agora o presente é outro.

Mas o que a esquerda burguesa ocidental não consegue entender (presa que está das suas visões festivas e das suas alucinações ideológicas) é que o motor do desenvolvimento do capitalismo no sul é exactamente aquilo a que denominam de “orgia dos recursos” e de “maldição da abundancia”. E todo esse processo vai iniciar consigo uma profunda transformação, principalmente no continente africano que vai reproduzir as dinâmicas das lutas de libertação nacional e constituir-se em segunda independência. Porque, por muito que isso custe aos paternalistas e sensíveis da esquerda radical burguesa, este vasto conjunto de processos é a revolução industrial que o sul nunca teve.

Existe por parte da esquerda burguesa, profundamente intelectualizada, com forte ramificações académicas, representativa dos interesses dos sectores mais esclarecidos da pequena e media burguesia, em riscos de proletarização, devido às novas dinâmicas capitalistas ocidentais, uma ignorância inata sobre o capitalismo e respectivos mecanismos de reprodução. Tendencialmente voltados para a especulação politica, com um verbo cuidado e palavroso, olham horrorizados para a miséria e para a pobreza, não por humanismo mas por medo de classe, por instinto de sobrevivência de classe. Com visões profundamente eurocêntricas, o seu “anti-imperialismo” é de vistas estreitas e o seu “empenho na luta” é perfumado (possivelmente para as suas sensíveis narinas não sentirem o odor dos excluídos). Vivem da sopa ideológica criada pela verborreia dos seus vozeiros e enredam-se nas confusas teias dos movimentos e dos “fóruns sociais” e a sua ignorância total acerca dos mecanismos básicos do capitalismo levam-na a viver num mundo alucinatório, onde as soluções surgem numa viagem da mesa de salão até á casa de banho e percurso inverso.

Também no “sul” a mais fragilizada classe média sofre do mesmo mal. Aqui a situação é mais confusa ainda e muitas dessas cabecitas ficam completamente baralhadas em termos geográficos, falando e agindo, geralmente, como se vivessem nas metrópoles, numa autêntica angústia existencial criada pela indefinição do espaço, como se maldissessem o destino que as levou a nascer e a viver nessas latitudes onde existe a “maldição da abundancia” de que tanto falam os seus compadres do ocidente. São vítimas fáceis dos jogos de poder e dos jogos neocoloniais e são olhados como uma certa complacência porque, muitas das vezes, ninguém sabe ao certo do que estão a falar.

Não valeria a pena falar destas luminárias, não fosse o papel que elas têm desempenhado em recentes conturbações no norte de África e no Médio-Oriente, principalmente na Líbia e na Síria, onde a ingerência imperialista foi e é evidente. Os estrategas do imperialismo aperceberam-se e muto bem, do papel que estes sectores podem desempenhar nas campanhas de intoxicação e na criação de realidades virtuais. Alem do mais são facilmente descartáveis, como os copos de plástico e não têm importância nos orçamentos de guerra. Geralmente utilizados nos observatórios, onde o seu falatório e a sua escrita podem vingar, os teóricos da esquerda de salão descobriram a sua vocação: agentes de terceira. É uma posição cómoda, rentável e evita o seu maior temor sem terem de servir as pouco esclarecidas elites indígenas: o de tornarem-se proletários pobres e mal cheirosos.

Fontes
Bernardo Bernardi; Introdução aos Estudos Etno-Antropologicos; Edições 70, 2007
Arturo D. Villanueva Imaña; Colonialismo interno y tareas de liberación nacional; http://www.rebelion.org

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