Como nos anos 1930,
estamos diante de bifurcação histórica. Ela pode levar ou a ordem mais justa,
ou a pesadelos ultra-autoritários
Felipe Amin
Filomeno* - Imagem: Diego Rivera, O Homem e a Encruzilhada (detalhe), em OutrasPalavras
Em 1944, foi
publicado A Grande Transformação, livro em que Karl Polanyi argumentava que a
crescente subordinação da ordem social às forças do mercado tinha efeitos
disruptivos, os quais, afinal, despertavam na sociedade uma reação de
auto-proteção na forma de regulação do mercado. Para Polanyi, a Grande
Depressão dos anos 1930 representou o fracasso do projeto de mercado mundial
auto-regulável centrado na Grã-Bretanha, o qual despertou reações progressistas
(como o New Deal, nos EUA), mas também reações perversas (como o nazi-fascismo
na Europa).
Em 2003, Giovanni
Arrighi e Beverly Silver estenderam a análise de Polanyi, mostrando que o
“movimento pendular” entre livre-mercado e regulação não era historicamente
restrito ao período que vai do século XIX a meados do século XX. Em meados de
1970, como parte de seus processos cíclicos, o sistema-mundo capitalista entrou
em uma nova fase de liberalização de mercados. Associada, desta vez, ao
declínio da hegemonia norte-americana, esta onda foi orientada ideologicamente
pelo neoliberalismo de Hayek e Friedman.
Assim como na
primeira metade do século XX, a liberalização da economia pós-1970 despertou
reações de auto-proteção na sociedade. Na América Latina, onde esta onda foi
vivenciada na forma de programas de ajuste estrutural patrocinados pelo FMI, a reação
tomou força após o ano 2000. As políticas neoliberais haviam contribuído para
estabilizar a economia (especialmente a inflação), mas seus efeitos negativos
sobre o crescimento econômico e a distribuição de renda reduziram sua
legitimidade, levando a população a eleger governantes com programas
anti-neoliberais. Neste caso, a “auto-proteção” da sociedade assumiu a forma de
“social-democracia globalizada” (no Brasil, no Chile e no Uruguai) e de
“socialismo bolivariano” (na Venezuela, Equador e Bolívia). A promoção do
livre-mercado (que, nos anos 1990, conviveu com oligopólios no setor financeiro
e em indústrias privatizadas) foi substituída, democraticamente, por uma maior
intervenção do Estado na economia e uma recuperação das redes de proteção social
para garantir crescimento com inclusão. Esta auto-proteção progressista não
precisa (e nem deve) anular o mercado, mas sim, seguindo os preceitos de Adam
Smith, usá-lo como instrumento de governo, para fazer os capitalistas
competirem, reduzindo seus lucros ao mínimo necessário para compensá-los pelos
riscos do empreendedorismo.
Na Europa, ao
contrário, quando a crise mundial manifestou-se agudamente a partir de 2010, os
governos — liderados pela Alemanha — responderam com medidas de austeridade
fiscal e monetária. Na Espanha, França, Grécia, Irlanda e Portugal, tais
medidas desencadearam protestos em massa pelas ruas de suas capitais. A
insistência das elites na austeridade como solução única (salvo iniciativas na
França de Hollande para fazer com que os mais ricos assumam parte maior do ônus
da crise) criou um impasse que arrisca o processo de integração regional da
Europa e prolonga a recessão.
Esta situação é
solo fértil para a emergência de formas perversas de “auto-proteção” social
contra o mercado. Nas eleições presidenciais francesas de abril, o partido de
extrema-direita Frente Nacional, representado por Marine Le Pen, obteve seu
maior número de votos até então (6,4 milhões, comparados a 5,5 milhões em
2002). Na Grécia, justamente o país mais afetado pela crise, o partido
neo-nazista Aurora Dourada conquistou em maio seus primeiros assentos no
Parlamento desde o fim do regime militar no país em 1974 (21 das 300 cadeiras).
Para Immanuel
Wallerstein, o sistema-mundo capitalista vive uma conjuntura histórica de
bifurcação, em que a ação coletiva da humanidade determinará que tipo de ordem
mundial teremos no futuro, para o bem ou para o mal. Quando as elites estão
dispostas a fazer concessões e movimentos anti-sistêmicos progressistas se
tornam os porta-vozes da “auto-proteção” da sociedade, a probabilidade de uma
ordem social mais justa e estável aumenta. Por outro lado, quando as elites são
reacionárias e movimentos de fascistas, xenofóbicos e intolerantes encarnam a
“auto-proteção” contra o mercado, o resultado pode ser desastroso. Se, na
primeira metade dos anos 2000, os governantes argentinos tivessem insistido na
austeridade econômica e reprimido duramente os cacerolazos e piqueteros, talvez
nossa vizinha Argentina teria hoje um governo fascista.
–
* Felipe Amin Filomeno é doutor em Sociologia pela Johns Hopkins University e Professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Mantém um blog.
* Felipe Amin Filomeno é doutor em Sociologia pela Johns Hopkins University e Professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Mantém um blog.
Seus textos publicados em Outras Palavras podem ser lidos aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário