A Semana (cv)
Cabo Verde
necessita de uma autoridade independente para supervisionar e coordenar
práticas e políticas de prevenção à corrupção, tal como recomenda a Convenção
de 2003 das Nações Unidas Contra a Corrupção (CNUCC) que a Cidade da Praia
ratificou em 2008. O alerta é do Procurador-Geral da República, Júlio Martins
no rescaldo de vários casos de desvio de fundos públicos que ultimamente
abalaram país. O ministro da Justiça, José Carlos Correia, informa que o
governo está a reforçar o MP enquanto entidade nacional de prevenção e combate
ao fenómeno, ao mesmo tempo que trabalha na revisão do Código Penal para
absorver as estatuições e recomendações constantes do mesmo convénio.
Cabo Verde tem
sido, nos últimos dias, abalado por uma série de casos de corrupção, envolvendo
funcionários de vários serviços públicos. O país, recorde-se, continuava até
finais do ano passado, a ser, conforme o ranking de 176 países do mundo
publicado em 2012 pela organização não-governamental Transparência
Internacional, o PALOP com menos problemas de corrupção: melhorou três posições
e vem cotado em 39º lugar – o segundo melhor em África só superado pelo Botswana,
que ficou em 33ª posição.
Estudiosos das
ciências sociais alertam, porém, que o governo necessita, neste momento, de
tomar medidas institucionais e políticas de fundo para travar e prevenir esse
fenómeno de carácter transversal, que tende a alastrar-se principalmente no
funcionalismo público. Isto diante do índice da percepção de tal prática e os
sinais exteriores de riqueza que hoje são exibidos por empregados dos sectores
público e privado em todas as ilhas.
Para alguns
analistas, o recente "rombo" de mais de 35 mil contos registado nos
cofres do Ministério das Finanças veio pôr a nú a fragilidade da nossa
contabilidade pública, ao mesmo tempo que mostra que as instituições públicas
precisam de ter mais controlo e transparência enquanto os funcionários devem
ser mais responsáveis na prestação do serviço público e na defesa dos
interesses do Estado.
Este jornal apura,
também, que o estatuto do funcionalismo público é vago em termos de normas
específicas que previnam e penalizem a corrupção. Questionado sobre este
particular, o Secretário de Estado da Administração Pública lembra tão-somente
que os servidores do Estado são, conforme estabelece a Lei de Base da Função
Pública, obrigados a respeitar os princípios éticos e deontológicos da
profissão, que proíbem tal prática.
"Os funcionários
devem sobretudo respeitar os princípios da justiça, responsabilidade,
imparcialidade, prestação de serviço e defesa da função pública no desempenho
da sua profissão. O funcionário está, portanto, proibido de tirar vantagem do
cargo ou função que exerce em benefício próprio ou de terceiros", enfatiza
Romeu Modesto, sem deixar de avisar que aqueles que violam essas normas gerais
não só serão alvos de processo disciplinar como também conduzidos ao tribunal
para o apuramento de responsabilidades criminais.
Leis duras
Leitura mais
crítica e global do fenómeno tem o Procurador-Geral da República, para quem
cabe ao Estado tomar um conjunto de medidas legislativas e institucionais que
previnam e combatam a corupção.
Júlio Martins
adverte para a necessidade de se adequar o Código Penal cabo-verdiano, aprovado
em 2003, às exigências da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, que
foi ratificada pela resolução nº31/VII/2007 da Assembleia Nacional. É que, de
acordo com a mesma fonte, uma análise atenta das disposições da CNUCC permite
concluir que, no ordenamento jurídico cabo-verdiano as leis que a concretizem
são profusas.
Referindo-se aos
pontos convergentes, o PGR destaca que, em conformidade com a recomendação
contida no artigo 14º – medidas para prevenir a lavagem de dinheiro – da CNUCC,
a lei que define os crimes de lavagem de capitais eliminou o elenco taxativo
dos crimes antecedentes, que constava da legislação anterior (Lei nº
17/VI/2002, de 16 de Dezembro). O PGR cita ainda o Código Penal aprovado pelo
Decreto-Legislativo nº 4/2003 que admite, no seu artigo 9º, a responsabilização
criminal das pessoas colectivas, o que vai ao encontro do estipulado no artigo
26º – responsabilidade de pessoas jurídicas – da CNUCC.
Exceptuando os
casos referidos, Júlio Martins salienta que existem no Código Penal várias
disposições que divergem da CNUCC, pelo que Cabo Verde tem de proceder a
alterações legislativas importantes sobre a corrupção, endurecendo as penas
relativas a esse flagelo. Um desiderato que, na óptica de Martins, poderá ser
conseguido seja com a revisão do Código Penal seja com a publicação de leis
avulsas.
Órgão independente
para prevenir a corrupção
Uma das
preocupações do Procurador-Geral da República tem a ver com a necessidade de se
criar um órgão independente incumbido de prevenir a corrupção e coordenar
políticas para essa área (ver caixa). Isto em conformidade com o disposto nos
artigos 5º (políticas e práticas de prevenção da corrupção) e 6º (órgão de
prevenção à corrupção) da CNUCC.
Júlio Martins
esclarece que essas não são atribuições do Ministério Público, que é um órgão
essencialmente repressivo. "Constitucionalmente, não é função do
Ministério Público coordenar e supervisionar políticas e práticas que previnam
a corrupção", faz questão de realçar o PGR.
Tipificação de
novos crimes
Face ao disposto no
artigo 16º (suborno de funcionários públicos estrangeiros) da CNUCC, Júlio
Martins defende que também se deve considerar a possibilidade de tipificar o
crime de corrupção passiva praticado por funcionário público estrangeiro ou por
funcionário de organização internacional pública que labora em Cabo Verde.
O magistrado
lembra, por outro lado, que não estão tipificados no ordenamento jurídico
nacional os crimes mencionados nos artigos 19º (abuso de funções ou cargo), 20º
(enriquecimento ilícito) e 21º (suborno no sector privado) da CNUCC.
Tendo em conta o
disposto no artigo 29º (prescrição) da CNUCC, o PGR entende que o artigo 111º
do Código Penal deve ser revisto no sentido de estabelecer como causa de
interrupção da prescrição a fuga, quando um presumível delinquente se tenha
evadido à administração da justiça. Será uma medida para pôr termo à prática
actual que dribla a justiça: acontece que pessoas suspeitas de crime de
corrupção fogem para o estrangeiro e voltam ao país anos depois sem qualquer
penalização. Tudo porque, recorda Martins, o actual prazo de prescrição dos
crimes de corrupção previstos nos artigos 363º a 370º do Código Penal é de 15
anos, isto por imposição do nº 4 do artigo 108º do mesmo Código.
Mas as propostas
para mudanças no ordenamento jurídico nacional não ficam por aí. O PGR propõe
que, em cumprimento do disposto no artigo 40º (sigilo bancário) da CNUCC, deve
ser alterada a legislação processual penal no sentido de o Estado eliminar o
sigilo bancário, no âmbito da investigação criminal relativa aos crimes de
corrupção.
Isso à semelhança
do que já acontece com a lei de lavagem de capitais de 2009 (Lei nº
38/VII/2009, de 27 de Abril), que eliminou, em conformidade com este dispositivo
da Convenção, a possibilidade de o sigilo bancário não se aplicar ao MP.
Uma ideia
inovadora, expendida por Júlio Martins para combater a corrupção, é a que
sugere mecanismos especiais de investigação, como a isenção ou dispensa de pena
ao corruptor activo, quando este colaborar com a justiça, permitindo a
identificação do corruptor passivo ou a descoberta de provas do crime de
corrupção.
Feitos os
correctivos na legislação cabo-verdiana e criada uma autoridade independente
para essa área, o Procurador-Geral da República assegura que o Estado reforçará
a sua acção de combate e prevenção a esse fenómeno que tende a alastrar-se em
Cabo Verde.
A convenção da ONU
Cabo Verde
ratificou, em 2008, a
Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (CNUCC) de 2003, mas tem ainda
por implementar partes importantes desse tratado. Em causa estão sobretudo a
ausência de uma autoridade independente e várias outras medidas preventivas
contra esse fenómeno de carácter transversal, que tende a ganhar corpo no país.
A cidade da Praia
deve implementar com urgência o artigo 5º da Convenção da ONU, que incide sobre
políticas e práticas que previnem a corrupção. É que o nº1 dessa cláusula
estabelece que cada Estado subscritor do documento deverá, em conformidade com
os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico, formular, aplicar ou
manter em vigor políticas coordenadas e eficazes contra a corrupção. Essas
medidas devem promover a participação da sociedade e reflectir os princípios de
um Estado de Direito Democrático. No fundo esta lei tem várias frentes:
assegurar uma gestão dos assuntos e bens públicos, a integridade, a
transparência e a obrigação de prestar contas.
O segundo item do
mesmo artigo preconiza que o Estado subscritor da CNUCC procurará estabelecer e
fomentar práticas eficazes de prevenir a corrupção. Já o ponto três deixa claro
que cada Estado aderente do referido tratado deve avaliar periodicamente os
instrumentos jurídicos e as medidas administrativas pertinentes. Tudo para
adaptar tais normas às novas e cada vez mais sofisticadas caras da corrupção.
Cabo Verde tem
ainda por criar uma autoridade independente que irá dedicar-se em exclusivo a
prevenir a corrupção e o enriquecimento ilícito. O seu alvo é não só a classe
política mas também os próprios funcionários públicos, do topo à base. Esta é
uma das grandes exigências que consta do artigo 6º da convenção de 2003.
"1. Cada Estado-Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de
seu ordenamento jurídico, garantirá a existência de um ou mais órgãos, encarregues
de prevenir a corrupção com medidas, tais como: a) A aplicação das políticas,
às quais se faz alusão no artigo 5º da presente Convenção, e a supervisão e
coordenação da prática dessas políticas; b) O aumento e a difusão dos
conhecimentos em matéria de prevenção da corrupção", lê-se nesse tratado
internacional que vimos referindo.
O nº 2 do mesmo
artigo estabelece que, montada que está tal autoridade, esta deverá ser dotada
de independência e recursos necessários, para que possa desempenhar, em articulação
com as instituições internacionais da área, as suas funções de maneira eficaz e
sem nenhuma influência indevida.
Ou seja, além dos
aspectos relevantes referidos, o nosso país ainda tem muito que fazer para
implementar os 71 artigos que enformam esse convénio da ONU contra a corrupção.
Cabo Verde precisa ainda, conforme recomendou o Procurador-Geral da República,
de agilizar o cumprimento dos artigos 19º (abuso do poder), 20º (enriquecimento
ilícito), 21º (suborno no sector privado), entre outros aspectos desse acordo
internacional contra a corrupção. Cabo Verde deve, por outro lado, respeitar
vários outros acordos e normas internacionais sobre a matéria que já
subscreveu. A nível da Lusofonia, destaca-se o Guião de Boas Práticas para a
Prevenção e Combate à Corrupção na Administração Pública, aprovado em Novembro
2011 pelos Organismos Estratégicos de Controlo da CPLP.
MJ intensifica luta
contra a corrupção e anuncia: Reforço do MP e revisão do Código Penal
O Ministro da
Justiça garante que o sistema jurídico cabo-verdiano reforçou os poderes do
Ministério Público, enquanto autoridade nacional de combate à corrupção, e está
a rever o Código Penal (CP) para absorver as estatuições e recomendações da
Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. José Carlos Correia faz ainda
questão de lembrar que o actual executivo tem adoptado uma política de
tolerância zero a esse mal, cujo combate exige mudança cultural e de atitude.
O titular da pasta
da Justiça assevera que Cabo Verde já tomou um conjunto de medidas para
implementar os termos da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção.
"Entre estas medidas consta o reforço do Ministério Público, nomeadamente
quanto à sua orgânica, de modo a estar dotado de serviços dedicados à prevenção
e combate à corrupção", focaliza o ministro. Quanto à necessidade de haver
uma autoridade independente para prevenir a corrupção, José Carlos Correia
defende que, no nosso contexto, o Ministério Público é a autoridade nacional de
combate a esse fenómeno. Isto sem prejuízo de serem tomadas medidas
transversais em toda a Administração Pública no sentido de reforçar a
transparência e a integridade dos servidores públicos. O governante destaca que
a tolerância zero à corrupção, medida política que vem sendo seguida pelo
actual Governo, deve reflectir uma disponibilidade também do público em geral
para denunciar casos e ajudar a esclarecer situações suspeitas.
Referindo-se ao
Código Penal em vigor, o ministro da Justiça informa que o CP está a ser
revisto para absorver as estatuições e recomendações da Convenção das Nações
Unidas Contra a Corrupção. "Aliás, a própria Conferência dos ministros da
Justiça da CPLP tem recomendado uma harmonização entre a legislação
dos países-membros, e destes com os padrões estabelecidos pelo direito
internacional. Contamos, por isso, poder finalizar a revisão do Código Penal
durante o ano de 2013", assegura José Carlos Correia.
Instado a analisar
a experiência da extinta Autoridade Contra a Corrupção, que foi criada no
governo do MpD, o ministro da Justiça recorda que na altura Cabo Verde seguiu a
perspectiva, modelo e meios em voga nas duas últimas décadas. Mas José Carlos
Correia é de opinião que a experiência não surtiu os efeitos positivos
esperados, seja porque esse modelo levou à sobreposição de instituições e/ou
afectação de recursos, seja pelos defeitos na abordagem então assumida pela
designada alta autoridade.
"Afigura-se
que é hora de investir nas instituições. E no caso cabo-verdiano, o que deve
ser feito é o reforço da cultura institucional que perdura no tempo, para além
dos titulares dos cargos e dos mandatos políticos", propõe o responsável
da pasta da Justiça.
O MJ fundamenta que
prevenir a corrupção pode até ser confiada a uma instituição especialmente
criada para o efeito, mas o essencial é que se deve cultivar a
transparência, a legalidade e o hábito de prestação de contas em todos os
sectores e a todos os níveis. "Isso quer dizer que a prevenção à corrupção
deve e pode ser feita de forma transversal, ou seja, é uma questão de cultura e
atitude", conclui o ministro da Justiça de Cabo Verde.
ADP
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