sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Portugal – Carga Policial - RTP: O PROCESSO DAS BICICLETAS

 


Fernanda Câncio – Diário de Notícias, opinião
 
Nas imagens que foram captadas pelas TV no decorrer da carga policial de 14 de novembro, há um interlúdio cómico: no meio da confusão, três polícias pontapeiam vigorosamente umas bicicletas no passeio. "Malandras das bicicletas", escreveu alguém no Twitter.
 
Que levará adultos treinados (espera-se) para lidar, sem perder a cabeça, com situações de confronto, insultos e perigo iminente a agredir bicicletas? Não é grave pontapear bicicletas, dir-se-á. Pois, é muito menos grave que perseguir e espancar pessoas que nada fizeram a não ser estar ou passar no sítio errado à hora errada. Pessoas que, de acordo com imagens e relatos e denúncias que na última semana se acumulam no espaço público (e na Amnistia Internacional, que terá recebido relatos chocantes), foram alvo de agressões injustificadas, detenção sem motivo e denegação de direitos básicos, como acesso a advogado ou a um telefonema.
 
Mas se é possível alegar-se - como tantos alegam - que todos os agredidos e detidos estavam a cometer um ilícito (há quem sustente que o simples facto de estar na rua já seria caso para apanhar), que dizer das bicicletas? "É exigir o impossível exigir-se que os polícias tenham a capacidade de discernimento no âmbito de uma carga policial", diz Paulo Flor, responsável pelas Relações Públicas da PSP. Que, supõe-se, julga apresentar uma defesa - quando afinal o que daí resulta é que se em vez de homens os "polícias de choque" fossem chimpanzés com cacetes treinados para bater em tudo o que mexe (e não mexe) ou rottweilers não faria diferença. "Defesas" como esta, e que chegam ao desespero de equiparar a crítica à polícia com a apologia dos que a apedrejaram, demonstram como a responsabilidade de deter o monopólio do uso da força é comummente confundida, nas polícias e fora delas, com uma licença.
 
Não: não há qualquer contradição em repudiar as agressões à polícia e ao mesmo tempo considerar que esta, tendo mais que motivo para agir, agiu mal. Exigir à polícia discernimento é um dever de todos os cidadãos de um Estado democrático, a começar pelos seus representantes, como é dever de quem tem a tutela das polícias instaurar inquéritos sempre que situações destas, com suspeita (evidência?) de má prática, ocorrem. Tal não enfraquece a polícia: reforça-a e enobrece-a.
 
Inquérito - aliás, dois, um na RTP e outro na PSP, "ordenado pelo ministro com caráter de urgência" - já temos. Até temos demissões. Mas a propósito das imagens da carga, não da carga em si. Vai-se inquirir sobre se na RTP alguém permitiu à PSP visionar imagens não públicas do ocorrido (sobre o ocorrido, nada). É um assunto importante? É. E merece um inquérito - até dois -, merece. Algo vai mal, porém, no discernimento de um País, a começar pelo dos media, quando nos interessamos mais pelo possível prejuízo de valores abstratos e por prováveis jogadas políticas que pelos direitos de pessoas concretas. Kafka, parece, escreveu sobre isso.
 

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