Fernanda Câncio – Diário de Notícias, opinião
Nas imagens que
foram captadas pelas TV no decorrer da carga policial de 14 de novembro, há um
interlúdio cómico: no meio da confusão, três polícias pontapeiam vigorosamente
umas bicicletas no passeio. "Malandras das bicicletas", escreveu
alguém no Twitter.
Que levará adultos
treinados (espera-se) para lidar, sem perder a cabeça, com situações de
confronto, insultos e perigo iminente a agredir bicicletas? Não é grave
pontapear bicicletas, dir-se-á. Pois, é muito menos grave que perseguir e
espancar pessoas que nada fizeram a não ser estar ou passar no sítio errado à
hora errada. Pessoas que, de acordo com imagens e relatos e denúncias que na
última semana se acumulam no espaço público (e na Amnistia Internacional, que
terá recebido relatos chocantes), foram alvo de agressões injustificadas,
detenção sem motivo e denegação de direitos básicos, como acesso a advogado ou
a um telefonema.
Mas se é possível
alegar-se - como tantos alegam - que todos os agredidos e detidos estavam a
cometer um ilícito (há quem sustente que o simples facto de estar na rua já
seria caso para apanhar), que dizer das bicicletas? "É exigir o impossível
exigir-se que os polícias tenham a capacidade de discernimento no âmbito de uma
carga policial", diz Paulo Flor, responsável pelas Relações Públicas da
PSP. Que, supõe-se, julga apresentar uma defesa - quando afinal o que daí
resulta é que se em vez de homens os "polícias de choque" fossem
chimpanzés com cacetes treinados para bater em tudo o que mexe (e não mexe) ou
rottweilers não faria diferença. "Defesas" como esta, e que chegam ao
desespero de equiparar a crítica à polícia com a apologia dos que a
apedrejaram, demonstram como a responsabilidade de deter o monopólio do uso da
força é comummente confundida, nas polícias e fora delas, com uma licença.
Não: não há
qualquer contradição em repudiar as agressões à polícia e ao mesmo tempo
considerar que esta, tendo mais que motivo para agir, agiu mal. Exigir à
polícia discernimento é um dever de todos os cidadãos de um Estado democrático,
a começar pelos seus representantes, como é dever de quem tem a tutela das
polícias instaurar inquéritos sempre que situações destas, com suspeita
(evidência?) de má prática, ocorrem. Tal não enfraquece a polícia: reforça-a e enobrece-a.
Inquérito - aliás,
dois, um na RTP e outro na PSP, "ordenado pelo ministro com caráter de
urgência" - já temos. Até temos demissões. Mas a propósito das imagens da
carga, não da carga em si.
Vai-se inquirir sobre se na RTP alguém permitiu à PSP visionar
imagens não públicas do ocorrido (sobre o ocorrido, nada). É um assunto
importante? É. E merece um inquérito - até dois -, merece. Algo vai mal, porém,
no discernimento de um País, a começar pelo dos media, quando nos interessamos
mais pelo possível prejuízo de valores abstratos e por prováveis jogadas
políticas que pelos direitos de pessoas concretas. Kafka, parece, escreveu
sobre isso.
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