quinta-feira, 21 de março de 2013

GÉNERO E POBREZA EM KERALA




Rui Peralta, Luanda

I - Em Kerala, India, o movimento das mulheres reflecte o sistema de valores, as reivindicações e os métodos mobilizadores das diversas correntes feministas. A corrente socialista, longe de ser maioritária, tem em Kerala um grande número de militantes e simpatizantes. A organização das mulheres do Partido Comunista da India – Marxista (CPI-M) é a única organização feminina em Kerala que de forma persistente, se implementou, contando com um longo historial de luta.

O capitalismo BRICS na India é caracterizado pela emergência das normas patriarcais e tradicionais, com formas modernas. Em Kerala são estas as normas que dominam as relações politicas, económicas e sociais. Apesar disso as mulheres aumentaram o seu grau de participação na vida politica e económica de Kerala. A decisão do anterior governo da Frente Democrática das Esquerdas (LDF) - uma coligação que englobava o PCI (M) e vários partidos de esquerda e que governou em Kerala no período de 2006 a 2011- de aumentar a participação das mulheres nos órgãos locais foi correspondida com um movimento entusiasta de mulheres, que candidataram-se aos mais diversos cargos da administração local, o que é hoje uma nova realidade em Kerala.

Ao retomar o poder, a direita em Kerala – a Frente Democrática Unida (UDF) - reverteu o processo de descentralização e burocratizou os programas de desenvolvimento, revendo, em baixa, as verbas atribuídas ao Plano para a Missão Estatal de Erradicação da Pobreza (Kudumbashree). Estas medidas provocaram uma reacção das organizações femininas que iniciaram uma campanha - dirigida pela Associação das Mulheres Democráticas da Índia (AIDWA), próxima ao PCI (M) – de protesto, contra esta decisão governamental. A campanha durou toda a primeira semana de Outubro de 2012 e desenrolou-se em Thiruyananthapuram, capital do Estado de Kerala.

As activistas sitiaram sedes distritais do governo estadual e o governo cedeu, assinando um acordo com as organizações femininas, atendendo as reivindicações femininas (restabelecer o Kudumbashree, que em malabar – a língua da região – significa prosperidade da família, não realizar cortes nos programas de assistência e aumentar as verbas destinadas aos programas de erradicação da pobreza em Kerala). Esta vitória coloca em primeiro plano a especificidade das lutas das mulheres em Kerala e a articulação entre as reivindicações do género e de classe.

II - A Kudumbashree iniciou as suas actividades em 1998, como uma rede comunitária que trabalharia em coordenação com os governos locais descentralizados do Estado de Kerala, para a erradicação da pobreza e aumento da capacidade interventiva das mulheres. É um programa conjunto do Governo de Kerala e do Banco Nacional para a Agricultura e Desenvolvimento Rural (NABARD). O conselho de administração é presidido pelo ministro de Estado de Kerala para as administrações locais descentralizadas, assistido por um Director-geral e pelas representantes coordenadoras de cada distrito.

Os grupos de autoajuda da Kudumbashree nas localidades e município organizam-se em grupos de vizinhas (NHG) que enviam as suas representantes às sociedades de desenvolvimento a nível de bairro (ADS) que por sua vez enviam representantes á Sociedade de Desenvolvimento Comunitário (CDS). Actualmente existem cerca de duzentas mil NHG, vinte mil ADS e mil CDS. O número total de mulheres participantes nesta rede é de cerca de 4 milhões. As CDS têm um importante papel nas actividades de desenvolvimento que vão desde os estúdios socioeconómicos até á gestão comunitária e á auditoria social. Todas as aldeias e municípios têm várias unidades Kudumbashree, que é hoje, indubitavelmente, em Kerala, um modelo integral de desenvolvimento económico e social e um mecanismo participativo das mulheres. A rede engloba ainda um observatório sobre a opressão da mulher, o Jagratha Samithi.

A rede Kudumbashree tornou-se o mais forte grupo institucional e o melhor organizado, entre os diversos colectivos de âmbito local, surgidos durante o processo de descentralização administrativa estadual. O seu vínculo às estruturas administrativas do Estado de Kerala, a forma participativa como as decisões são tomadas e qualidades como o trabalho voluntário e a automobilizarão, levaram a que se convertesse na instituição mais desenvolvida do governo estadual de Kerala, baseada na mobilização a nível comunal. A sua eficácia na mobilização das mulheres pobres e a forma de actuação junto a estas, criando espaços comunais compartindo os pátios das suas casas é um factor digno de menção.

III - A participação como eixo da descentralização foi contribuição do governo LDF de 1996 – 2001, ao lançar o Plano de Campanha do Povo. O governo anterior (1991 – 1996), da UDF, desempenhou um papel relevante nas emendas constitucionais que permitiram a descentralização administrativa em Kerala, mas o governo LDF introduziu reformas institucionais de grande envergadura e assegurou a engenharia financeira necessária ao prosseguimento do plano e esboçou a estrutura do Kudumbashree, baseado no equilíbrio entre a iniciativa comunitária e o papel do Estado.

O governo seguinte (2001-2006) foi da UDF e reverteu o processo de descentralização, em nome do combate á guerrilha maoista. Realizou acentuados cortes financeiros e bloqueou o projecto de desenvolvimento. O Kudumbashree prosseguiu, no entanto, como um fórum para o corporativismo e os microcréditos. Em virtude do conceito de autoajuda ser um dos clichés do discurso neoliberal, o governo UDF, dirigido pelo Partido do Congresso, não desmantelou a rede e considerou que esta poderia ser utilizada para diminuir os custos dos programas sociais e das investigações a efectuar. De forma irónica o governo permitiu o prosseguimento do projecto, apresentando-o como um exemplo de “sucesso” e de “desenvolvimento selectivo.”

O LDF, liderado pelo CPI (M) sabia a importância da rede nos grupos de autoajuda das mulheres e do papel que desempenhava na formação da cidadania politica. Assim, o governo LDF de 2006 – 2011, tomou medidas para ampliar e fortalecer os grupos de autoajuda de mulheres através da descentralização financeira e criando novos estatutos. Esta medida aumentou o financiamento público ao projecto, quer de forma directa, quer através da banca pública, permitindo que o sistema de microcrédito prosseguisse incólume e livre das armadilhas e vigarices da especulação.

O então ministro de estado das finanças do governo de Kerala, Thomas Isaac, descreveu, durante a apresentação, o orçamento geral de estado como um “orçamento do género”. Esta foi uma medida fundamental para que o Kudumbashree conseguisse resultados sem precedentes, aproveitando favoravelmente o apoio administrativo, político e financeiro. O governo LDF fixou, inicialmente, o orçamento do Kudumbashree em 500 milhões de rupias, com juros de 4%, mais tarde reforçado para mil milhões de rupias. Por sua vez os novos estatutos elegeram o Kudumbashree como o organismo central de execução da Missão Nacional de Meios da Vida Rural (NRLM) enquanto os membros do Kudumbashree representavam o autogoverno local, sendo apenas superados pelos representantes eleitos pelo povo.

IV - O actual governo direitista da UDF debilitou a capacidade institucional e cortou substancialmente os recursos financeiros do Kudumbashree. Aumentou a taxa de juro de 4% para 12% e emitiu um decreto que permite aos membros do Kudumbashree a afiliar-se á ONG patrocinada pelo Partido do Congresso (o partido maioritário da coligação) a Missão para o Desenvolvimento Sustentável Janasree, formada por este Partido em 2008, como alternativa ao Kudumbashree. A derrota da LDF nas eleições comunais de 2010 e nas eleições legislativas do Estado de Kerala em 2011, permitiu ao Partido do Congresso consolidar esta rede, embora a Janasree não mobilize mais de 1 milhão de afiliados, mesmo depois da autorização governamental que permite a dupla filiação.

Os parlamentares estatais do Partido do Congresso, baseados num memorando assinado pelos presidentes dos concelhos comunais da UDF, fizeram um apelo ao governo central para substituir o Kudumbashree pelo Janasree, como o organismo executor da NRLM, o que foi recusado pelo governo central, que alegou não ter o Janasree o mesmo historial, nem capacidade de mobilização do Kudumbashree. Fracassados que foram os intentos da UDF, o governo de Kerala aumentou o orçamento destinado ao Janasree. Aprovou um financiamento de 149 milhões de rupias para o Programa de Desenvolvimento Nacional Agrícola (RKVY) e criou a Janasree Microfin, um novo sector da Janasree dedicado aos microcréditos, elegendo para sua directora uma antiga implicada em escândalos financeiros relacionados com o microcrédito.

V - O desenvolvimento descentralizado e participativo protege, mobiliza e insere os sectores proletários da sociedade. A campanha Kudumbashree é um bom exemplo disto. A AIDWA em Kerala jogou um papel decisivo nesta campanha ao mobilizar as mulheres e inseri-las no processo de desenvolvimento.

Kudumbashree é também um exemplo para aqueles que confundem desenvolvimento descentralizado com despolitização. Este foi um projecto que permitiu as reivindicações do género e de classe e foi uma luta política afirmada por um modelo participativo. E foram também outras coisas a outros níveis.

Foi também a primeira vez que milhares de mulheres de Kerala tiveram uma conta bancária e foi a primeira vez que milhares delas tiveram lugar em assembleias. E foi pelo Kudumbashree que adquiriram coragem para a luta que se impõe: a luta por um mundo melhor.

Fontes
The Times of India, September, 29. 2012.
Indian Journal of Gender Studies
Kudumbashree (2011): Annual Administration Report - 2009-2010, State Poverty Eradication
Mission, Thiruvananthapuram.
Hyderabad University, Political Sc Dep. Annual Report, 2012.
Kerala University, Political Sc. Dep. Annual Report, 2011.
Poverty in Kudumbashree and Kerala; BL Biju y Abhilash KG Kumar; Economic & Political Weekly

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