quarta-feira, 16 de novembro de 2011

UM GRUPO QUE FEZ UMA REDAÇÃO SOBRE A RTP




DANIEL OLIVEIRA – EXPRESSO, opinião - em Blogues

Espera-se que um grupo de estudo seja constituído por especialistas. No caso do serviço público de comunicação social há, em Portugal e em todo o Mundo, obra imensa publicada. Estudos, teses, ensaios. Está longe de ser matéria por desbravar. O relatório do grupo de estudo para a RTP e Lusa, fora algumas boas intenções preliminares sem qualquer tradução em propostas práticas, é um insulto. Um insulto à inteligência e à competência, tal a vacuidade e a falta de rigor deste documento. Diz-se, por exemplo, que os EUA "não possuem 'serviço público' de comunicação social com relevância mínima". O rede radiofónica pública (NPR) tem 34 milhões de ouvintes por semana. Tem uma relevância máxima. É só um dos muitos disparates que ali se escrevem, em que os dados históricos sobre a televisão pública na Europa são talvez os mais confrangedores, arriscando-se mesmo a fazer repetidas ligações entre regimes ditatoriais e a ideia de serviço público de televisão. Esperemos que os senhores da melhor cadeia televisiva e radiofónica do Mundo, a BBC, leiam esta péssima redação de secundário para se rirem um pouco.

Mas não espanta. Naquele grupo de pessoas, as únicas que sabiam alguma coisa sobre o assunto demitiram-se. Ficou uma: Eduardo Contra Torres. Que, como sabe quem está envolvido no meio, demasiadas vezes subalterniza os seus conhecimentos em favor de vinganças mesquinhas e ajustes de contas políticos. E que defendeu, numa entrevista recente, um serviço público de televisão sem informação, uma originalidade mundial. De resto, o que ali havia era uma agenda ideológica sem qualquer sustentação técnica. A começar pelo presidente da Comissão, o gestor teórico João Duque, que sabe tanto de comunicação social e audiovisual como eu sei de agropecuária. Ao aceitar dirigir um grupo de trabalho que iria estudar um assunto que não domina deu um péssimo exemplo aos seus alunos.

Antes de mais, seria importante responder a esta pergunta: para que precisamos nós de um serviço público de televisão? Não faltam diferentes posições nesta matéria. Só que este grupo padecia, logo à partida, de um grave problema: a maioria dos seus membros acha, na realidade, que não precisamos de serviço público de televisão. Tem feito disso um combate político. Foram convidados para propor mudanças num serviço em que não acreditam. O que, convenhamos, faz pouco sentido. Se é essa a sua posição, não é necessário estudo nenhum.

Deixo aqui a minha opinião. Que é isso apenas: uma opinião. Nunca chegaria para fazer um relatório. O serviço público de televisão deve ser, antes de mais, um garante do pluralismo. As televisões comerciais dependem exclusivamente do lucro. E é esse o primeiro e único critério que têm. Reparem que eu não escrevi que dependem das audiências. Não é exatamente a mesma coisa. Nem sempre as telenovelas, os concursos mais idiotas ou os enlatados são o que tem mais audiência. Têm é uma relação custo/audiência mais favorável. Porque são, regra geral, dentro dos programas mais populares, os mais baratos de produzir. Assim como um noticiário feito de pequenos crimes locais é mais barato de fazer do que ter jornalistas a fazer uma investigação de meses ao caso BPN ou enviados aos grandes acontecimentos internacionais.

Ou seja, quando se diz que não há serviço público sem público não se está a criar uma dicotomia irresolúvel. Está a dizer-se que o serviço público está no ponto de equilíbrio entre a ideia de prestar um serviço à comunidade e essa comunidade consumir esse serviço. Um exemplo, para facilitar: o programa "Conta-me como foi", tendo sido resultado de uma adaptação de um modelo espanhol, cumpria plenamente a sua função. Era entretenimento, tinha excelentes audiências e dava a novas e velhas gerações um retrato do que foi a sociedade portuguesa. Só que cada episódio sai mais caro do que os dos "Morangos com Açúcar". O que fazia aquele programa? Concorrência aos privados. Nivelando por cima. E ao fazer isso ajudava a melhorar a oferta geral. Ou seja, no panorama geral de estupidificação dos públicos, em que os concorrentes oferecem quase todos o mesmo, abria uma outra possibilidade, permitindo o pluralismo da oferta. Isto não se faz contratando "serviço público" aos privados, que eles atiram para horas mortas.

A televisão pública também deve garantir o pluralismo político. E ele não se resume, como parece defender a ERC, a medir o tempo dado a cada partido político. Nem a televisão é um guichet burocrático de tempos de antena, nem a política se esgota nos partidos. A obrigação de uma televisão pública é dar aos cidadãos o conjunto de pontos de vista mais significativos sobre um qualquer problema, não permitindo que o debate se estreite e a democracia empobreça. O melhor exemplo é o do tratamento dado à crise económica atual. Com honrosas exceções - de que o "Prós e Contras", com todos os seus defeitos e limitações, até tem sido um bom exemplo e de que o programa "Plano Inclinado" foi, talvez, o pior dos exemplo -, ouvimos sempre e apenas uma mesma versão dos factos. E nada é mais discutível dos que os factos. O problema dos privados não é não darem voz às minorias. É darem voz a quem entendem. Por vezes, apenas às minorias. Esperando que elas se tornem maiorias. Porque respondem apenas aos seus proprietários, sem qualquer obrigação para com a comunidade.

Por outro lado, a televisão pública deve ser um garante de independência. Não é uma posição fácil, tendo em conta a sua dependência política e financeira perante o governo. Tem, no entanto, a vantagem de, sendo de todos e pago por todos, ter de corresponder às exigências de todos. Repararão que somos quase sempre mais exigentes com a televisão pública, o mais escrutinado de todos os órgãos de comunicação social. E, apesar da sua má fama, o telejornal da RTP tem sido, não apenas o mais plural, como aquele que, cedendo menos (mas ainda demais) à facilidade, consegue, de longe, as melhores audiências. E quando acontece alguma coisa relevante - desastres naturais ou eleições, por exemplo - os seus shares são ainda mais esmagadores.

Uma das mais extraordinárias tónicas do relatório prende-se exatamente com a suposta falta de independência da RTP. A lógica é esta: com base em pressupostos que nem se preocupa em comprovar, propõe a redução ao mínimo da informação. Antes de mais, seria preciso provar que o "pluralismo é garantido pelo próprio funcionamento do mundo da comunicação social em democracia". Poderia ficar aqui horas a mostrar como isso é, para dizer o mínimo, discutível.

Houve quem apresentasse propostas para reforçar a independência da RTP. A principal é esta: mudar radicalmente o processo de nomeação da sua administração. Fico por uma proposta que já fiz, com a certeza de que haverá outras melhores: nomeação por dois terços do parlamento do presidente do conselho de administração - que só posteriormente escolheria a sua equipa, para evitar as costumeiras partilhas de poder pelo PS e PSD -, com um mandato único e diferenciado do dos deputados, sem possibilidade de demissão (excluindo casos extremos). Essa nomeação deveria estar vinculada a um contrato-programa com objectivos claros e um orçamento plurianual, dado logo à cabeça, para evitar o uso do financiamento público como forma de pressão. Tutela da RTP pelo Ministério da Cultura (que este governo encerrou, mas quando voltar a sanidade política será reativado) e não na alçada do mais partidário dos ministérios - o da Presidência. Não é uma solução perfeita, mas é uma tentativa.

O grupo nem se deu ao trabalho de tanto. Propõe que o "Estado promova um debate alargado", que "a empresa concessionária seja profundamente remodelada" e que "o Estado deve estudar as virtualidades de subsistir o atual modelo institucional do operador público de capitais públicos para o modelo de uma instituição sem fins lucrativos nem concorrenciais". Generalidades vazias. E quando vão ao pormenor, socorrem-se de expressões como a "sociedade civil", que quer sempre dizer tudo e coisa nenhuma. No caso do relatório, quer dizer "fundações privadas". Pois!

A proposta, que consta no relatório, de reduzir a informação não é necessariamente má. No sentido em que telejornais mais curtos têm de selecionar e o jornalismo é isso mesmo: seleção. Telejornais de hora e meia são entretenimento. Nem podem ser outra coisa. Mas o relatório diz outra coisa: que os conteúdos informativos devem ser "libertos da crescente dimensão subjetiva e opinativa no jornalismo". Esta frase sobre a "dimensão subjetiva" do jornalismo seria reduzida a pó por qualquer estudante de comunicação social do primeiro ano e, desculpável num leigo, é inadmissível num grupo de estudo. Mas, partindo do princípio que ela quer dizer alguma coisa, supõe-se que se quer acabar com o espaço de opinião (ou transformar toda a teoria sobre o jornalismo e sua subjetividade intrínseca). Pelo contrário, é no espaço de opinião que a falta de pluralismo mais se faz sentir. Telejornais curtos, sem opinião, acho excelente. Mais debates e mais opinião, fora desse espaço, também. O problema é que Duque e Companhia sabem que as suas opiniões - objetivas, está bem de ver - vivem com menos contraditório se essa função ficar exclusivamente no sector privado (o privado já garante o pluralismo, dizem eles). Sobretudo com o novo canal - tipo Fox News - de que se anda a falar.

Outra proposta é o fim da publicidade na televisão pública. Mais uma vez, o grupo não fez o trabalho de casa e limita-se a mandar postas de pescada, propondo que se mude o modelo de financiamento sem nada propor realmente. Porque para acabar com a publicidade na RTP - o que, em princípio, não me repugnaria -, tem de haver formas alternativas de financiamento. Falar do princípio do "utilizador/pagador", em canais abertos, e na "aplicação de uma taxa aos diferentes operadores de infraestruturas de transmissão e distribuição de conteúdos audiovisuais e multimédia" (panaceia para todos os imbróglios financeiros de quem quer cortar sem saber como) é a típica solução de quem se pôs num beco sem saída. É que, recorde-se, a RTP foi espoliada de algumas das possíveis fontes de receita, como os retransmissores, pagos pelo erário público e alienados por uma ninharia. É um clássico: tira-se às empresas públicas as suas fontes de sustentabilidade e depois diz-se que não são sustentáveis. Este grupo de estudo quer fazer o mesmo. A coisa é simples: com a RTP roubada de fontes de financiamento que agora poderia aproveitar, o dinheiro ou vem dos contribuintes ou da publicidade. Dói mas não tem saída. Se acabarem com a publicidade, ou aumentam as despesas do Estado ou fecham a RTP. Cheira-me que, se a sua proposta fosse para a frente, era isto que estariam a defender daqui a uns anos. Porque, sem receitas próprias, a RTP é incomportável, dirão então eles.

Quanto aos canais temáticos no cabo, tenho opiniões (apenas isso e com a vantagem de não estar a elaborar um relatório para o Estado) sobre a RTP Memória, a RTP Informação, a RTP Internacional e a RTP África. Mas precisaria de mais estudos e números para saber o que deve fechar, o que deve ficar, o que se deve fundir, o que deve mudar e até o que de novo pode abrir. Mas o grupo de bitaites sobre a RTP não precisou. Gosta, não gosta, é bom, é mau, fecha, fica, junta. Tanto diletantismo chega a ser doloroso. Fica uma nota positiva: a defesa de uma aposta maior na programação infanto-juvenil, onde a oferta dos privados está a deixar um rasto de estupidificação das novas gerações.

E sobre a ERC nada direi. Não tem nada a ver com o tema nem estava no mandato desta comissão. Nada que a tivesse impedido de, no texto de opinião a que chamaram relatório, dizerem de sua justiça. Para, mais uma vez, escreverem disparates.

A parte mais importante deste relatório seria a avaliação do impacto económico da privatização de um dos canais públicos no mercado audiovisual e do conjunto da comunicação social. Está em cima da mesa e não é uma questão menor. Mais um canal privado, com o fim da publicidade na RTP (se a publicidade se mantiver no canal público os números são ainda piores), corresponderia a mais cerca de 438 horas de publicidade por ano - o público pode pôr seis minutos por hora, o privado 12, e podemos considerar apenas 12 horas por dia. Este aumento de cerca de 20% da publicidade televisiva disponível canibalizará anunciantes e baixará o preço geral da publicidade. Os efeitos não se vão sentir apenas (nem principalmente) nos canais privados. Terão imediata repercussão nas rádios e na imprensa, que com eles concorrem no mercado publicitário. Com encerramentos e falências. E com uma significativa redução da oferta informativa e do pluralismo. Ou seja, com sérios riscos para a nossa democracia. Se assim seria sempre, num tempo de crise, quando já há uma séria retração do mercado publicitário e vários órgãos de comunicação social estão com a corda na garganta, os efeitos serão ainda mais rápidos e avassaladores.

Disse que seria uma das partes mais importantes deste relatório. Seria mas não foi. Os "achistas" de serviço limitam-se a registar o problema, a pedir atenção ao "timing" e a seguir em frente sem tomar um posição clara ou apresentar dados relevantes sobre a mais importante das medidas que o governo quer tomar neste sector. Porque fazer mais do que isto - e explicar o óbvio: que a privatização de um canal público é calamitosa - contraria a sua ideias feita de que mais oferta televisiva garantirá mais pluralismo. Quando, na realidade, tudo indica que acontecerá exatamente o oposto: mais oferta televisiva significará menos oferta no conjunto da comunicação social.

Ou seja, aquilo que nos foi dado a conhecer prova que Miguel Relvas escolheu um grupo de estudo que não estudou (não se cita um único estudo e, fora os números do Orçamento de Estado e uns números genéricos e mal trabalhados - sem estratificação social - sobre audiências dos canais generalistas e por cabo, não há uma única estatística ou dado objetivo neste relatório), escreveu sobre assuntos para os quais não foi mandatado, ignorou o essencial e guiou-se, acima de tudo, por preconceitos ideológicos. Os poucos que tivessem, naquele grupo, alguma credibilidade a defender perderam-na para sempre.

Com este texto muito maior do que aconselha este meio, deixei de fora as propostas do Grupo de Trabalho para a Lusa e para as rádios públicas, que seguem a mesma linha disparatada das que fazem para a televisão pública. Ficará para outra oportunidade.

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