sexta-feira, 22 de março de 2013

Portugal - Maria de Lurdes Rodrigues. “NÃO HÁ PROFESSORES A MAIS” - entrevista




Kátia Catulo e Liliana Valente – Jornal i, ontem

Ao contrário de Crato, a ex-ministra diz que não é preciso dispensar professores, tendo em conta o abandono escolar e a qualificação de adultos

Numa altura em que o país fala de cortes na despesa, a ex-ministra da Educação do governo de José Sócrates diz que não é possível cortar tanto e tão depressa sem ser através de medidas cegas. Maria de Lurdes Rodrigues aceitou falar com o ino dia do seu aniversário, enquanto preparava o discurso para ler na abertura do Fórum de Políticas Públicas no ISCTE. A ex-governante defende que é preciso diálogo para que haja estabilidade nas políticas em Portugal, além de estabilidade no governo. E até fala do tempo em que foi ministra.

Caminhamos para um Estado mínimo?

O debate sobre a reforma do Estado foi lançado em simultâneo com o anúncio do corte de 4 mil milhões. É legítimo levantarmos a dúvida: estamos perante uma reforma ou só perante uma diminuição da presença do Estado? Houve algumas iniciativas que são preocupantes porque apontam mais para a diminuição do Estado que para a sua reforma. Um dos exemplos foi o relatório do FMI e a sua análise permite verificar que muitas das medidas não são passíveis de reformar o Estado, só diminuem a despesa.

É só a redução da despesa que está a acontecer?

Reformar o Estado por vezes exigiria um aumento circunstancial da despesa para a seguir se poder tornar mais sustentável, às vezes é preciso um investimento inicial.

As rescisões com funcionários públicos são um desses casos…

É um exemplo. Quando numa determinada orientação ou num quadro de decisões é preciso uma redução do número de funcionários públicos, aquilo que se exige é um investimento inicial. Decidir pela diminuição de funcionários públicos é uma medida passível de ser considerada para reformar o Estado, é daquelas em que podemos ter dúvidas.

O primeiro-ministro argumentou que isso incrementará a qualificação, uma vez que começa pelos menos qualificados.

Isso não faz sentido. É necessário conhecer os estudos em que se baseia para dizer que há funcionários a mais. Quando se anuncia um corte drástico de funcionários, as comparações internacionais não permitem essa conclusão. Não temos um número de funcionários superior a outros países da Europa e muito menos com as reduções dos últimos anos. Pelo contrário, há países europeus que têm uma administração pública muito superior. Depois também nos podemos perguntar se os que estão a mais são os qualificados ou os menos qualificados. Na função pública, em geral, as qualificações são muito superiores às do mercado.

Esta reforma está a começar mal?

Não sei se é reforma. Sei que era necessária mais informação. Apresentar soluções como únicas e inevitáveis é um mau princípio no debate. Era essencial que o debate abrisse perspectivas, fosse muito mais plural do que tem sido. A política é a arte de escolher, de decidir em função de diferentes alternativas. É muito difícil aceitar uma decisão de estudos que não se conhecem. Dizer que se dispensam os menos qualificados significa o quê? As organizações precisam de uma grande diversidade de pessoal, mesmo de algum não qualificado. Podemos e devemos ter a ambição de qualificar mais a população activa, mas isso é uma coisa, outra é dispensar os menos qualificados.

Passos Coelho garantiu que estes serão reencaminhados para programas de formação…

É pôr portugueses contra portugueses. No passado foi pôr os jovens contra os mais velhos, agora são os menos qualificados contra os mais qualificados. É um caminho perigoso este, de sublinhar as oposições.

Voltando aos cortes. É possível cortar 4 mil milhões sem mexer no essencial do Estado social?

Cortar de um Orçamento para o outro 4 mil milhões é tecnicamente impossível a não ser por medidas cegas e transversais, que já foram tomadas, como cortar dois salários a todos os funcionários públicos. Isso nunca seria uma medida associada a uma reforma do Estado…

E em três anos, como Portugal vai ter?

Em três anos, apesar de tudo é diferente. Ainda assim, em muitos casos as reformas exigem investimento, o corte não é imediato. Mas quando se olha para grandes números do orçamento da saúde, da educação e se pensa que 4 mil milhões são metade desses orçamentos...

Ou seja, o corte tem de passar por essas áreas: saúde, educação e prestações sociais?

Sem mexer nesses sectores não é possível. Mas a despesa do Estado não é só isso, há todas as despesas relativas às responsabilidades de soberania, o apoio à competitividade, à ciência e tecnologia, e há também – e neste momento tem uma influência muito grande no Orçamento –, a questão da dívida, que representa tanto como o Serviço Nacional de Saúde. Aquilo que devemos questionar é quais são as possibilidades de negociação das condições de pagamento.

Redução dos juros?

O que não é sustentável não é o Estado social, é termos encargos com a dívida desta ordem. Não há país no mundo que tenha suportado tantos anos encargos com a dívida desta grandeza. O que se devia fazer é olhar para o conjunto da despesa do Estado. A questão que devemos levantar é o sentido de dar prioridade ao pagamento destes encargos em vez da saúde e da educação.

O governo argumenta com a estratégia de ganhar confiança, porque senão teríamos juros mais altos.

Não é apenas um problema de confiança, é também de funcionamento das instituições europeias. Um problema que se resolve a nível europeu, não é só do país ou da capacidade negocial do governo. Mas o governo tem de demonstrar que tem essa capacidade. Temos de olhar para a despesa, mas também para receita. Tem-se tratado a reforma do Estado só pelo lado da despesa, dizendo que é necessário reduzir para tornar sustentável.

Há margem para mexer na receita? Grande parte do esforço foi feito pelo lado da receita, com o aumento de impostos...

Não se pode reduzir a receita aos impostos. Há também os fundos estruturais e outras fontes de financiamento. Há um preconceito que se generalizou contra o investimento público e contra a possibilidade de qualquer crédito, mesmo que muito bonificado. Diz-se que é impossível ter crédito, mas é possível.

Está a falar dos empréstimos do Banco Europeu de Investimento?

Sim, mas há outras fontes, como os fundos estruturais.

Não estão a ser aproveitados?

Não é isso que estou a dizer. O que digo é que são um instrumento muito importante para o investimento público e para o desenvolvimento do país. Nem sempre teremos feito bem no passado, mas fizemos muitas coisas com os fundos estruturais. É necessário avaliar aquilo que foi feito e tomar decisões em que prevaleça o interesse público e não os interesses imediatos. Não podemos afirmar que não há crédito, que não o queremos. Não é verdade: há bom e mau crédito, como há boa e má dívida. É preciso ultrapassar esse preconceito.

Essa não é a postura em relação ao anterior governo?

Não sei se é só isso.

O primeiro-ministro repetiu várias vezes que não vai voltar à mesma política…

Há uma mudança de paradigma, de facto. A questão do crédito teve um papel importante no desenvolvimento das sociedades democráticas no pós-guerra, com sobressaltos, com diferentes crises, mas não há dúvida que se instituiu o crédito como um instrumento importante e não está provado que seja um mau instrumento e que temos de o dispensar. Não estou a ver, com sinceridade, e passados estes dois anos com o efeito recessivo que as medidas de austeridade tiveram na nossa economia, que seja possível ultrapassar esta situação sem duas condições. Em primeiro lugar, terminar a arquitectura europeia, fazer com que as instituições assumam as suas responsabilidades e ultrapassem as suas hesitações e dificuldades em tomar decisões. O caso de Chipre é paradigmático da precipitação na tomada de decisões.

Concorda com o Presidente quando diz que o bom senso abandonou os líderes europeus?

Parece. Houve uma falta de preparação. Em apenas um dia a mudança naquilo que foi anunciado é reveladora da impreparação. Além desta frente europeia, é preciso, em segundo lugar, acabar com o preconceito em relação ao investimento público. Tarde ou cedo voltaremos ao dossiê da alta velocidade e da qualificação dos recursos humanos, que exige a mão do Estado. A tal “mão invisível” não existe para estas matérias e portanto para a defesa do bem comum é necessário que seja o Estado a resolver estes problemas.

A última avaliação da troika mostrou um cenário negro. Concorda com Daniel Bessa, que diz que andamos a adiar a bancarrota? Que é inevitável que Portugal renegoceie o Memorando?

A bancarrota em Portugal terá um efeito na zona monetária, que não é menor, é estrutural. São formas de pôr o problema que insistem na responsabilização dos agentes em Portugal e do país de forma isolada, que não existe. Há uma interdependência, efeitos sistémicos.

O preço a pagar por essa permanência no euro…

Tem sido duro, por isso insisto que é necessária uma alteração nas instituições europeias, nomeadamente do BCE.

E a nível interno, o governo aguenta até ao final do mandato?

O governo tem legitimidade para governar, espero que consiga dar-nos um quadro de estabilidade política, que é muito importante. Agora a estabilidade política não é só isso, implica também estabilidade nas medidas. Isso é importante porque estamos a viver um quadro de estabilidade política, mas ao nível das medidas a instabilidade é total e a incerteza é total.

A nível social também? Por um lado há cada vez mais manifestações e por outro o PS distancia-se cada vez mais.

São duas coisas distintas. Quando se olha para os números do desemprego e para a quebra de rendimentos das famílias é muito fácil compreender que as pessoas têm muitos motivos para protestar. Por isso digo que o quadro de manifestação nem é excessivo para os problemas que temos. Não me surpreende. As manifestações são normais, passam-se num quadro de grande civilidade. Quem governa tem de estar preparado para isso, tem de se ter atenção, mas não é impedindo as manifestações, é resolvendo os problemas.

 O outro lado é a questão política. António José Seguro já pede mobilização em torno do PS. É cedo para esta sensação de clima pré-eleitoral?

Acho que tem faltado espaço de diálogo e é pena. Para a estabilidade de medidas aquilo de que necessitamos é por um lado de política de qualidade, baseada em conhecimento com soluções pensadas e não com soluções totalmente destituídas de preparação do ponto de vista técnico. Por outro, precisamos de concertar essas soluções. Quando o horizonte é de longo prazo, atendendo à alternância democrática, é muito natural que não seja o mesmo governo a conceber e a concretizar.

O PS fez mal em sair deste debate?

Não consigo avaliar. O PS também foi muito hostilizado, pouco envolvido em debates muito importantes. Todos temos de procurar os pontos de diálogo e convergência. Sem diálogo não é possível ter soluções de médio prazo, em que prevaleça o sentido público, porque este vai além do tacticismo político-partidário, dos prazos das eleições.

É isso que estamos a viver? O PS radicalizou o discurso, não estamos já nesse campo de tacticismo político a pensar nas eleições?

Quando acontecem grandes divergências, por norma não é culpa apenas de um lado, exige-se um envolvimento dos dois lados. É como se estivéssemos a viver num clima em que parece que as regras são assim, e isso é errado. As regras da negociação para manter a democracia e o pluralismo não podem ser estas. Tem de haver espaços de concertação política, social, que não se passem nos meios de comunicação. A negociação não pode ser feita sempre de portas escancaradas.

Por outro lado, não há uma tradição de decisões suportadas por estudos.

A esse propósito fala-se muito dos países nórdicos como exemplos de progresso.

Até por oposição ao nosso país.

É verdade que não temos essa tradição. Mas a política tem de ter na base soluções apoiadas num conhecimento profundo da realidade e ser igualmente um resultado de opções políticas. Um dos ingredientes mais importantes na política é a capacidade de diálogo. Para garantir a continuidade é preciso ter consciência de que não temos sempre razão. Isso é essencial, porque a seguir virá outro que pode ser aquele que tinha uma proposta que não foi considerada na decisão. Se quero ter uma solução com continuidade, tenho de prever a possibilidade de outros virem a seguir. Caso contrário, entra-se num desfazer permanente. Estamos rodeados de hesitações, de indecisões e acaba-se depois por recomeçar tudo do início. Disse muitas vezes, por exemplo, que não precisamos de reformas na educação. Do que precisamos é, após uma decisão tomada – por exemplo, a escolaridade obrigatória até aos 18 anos, que obteve o consenso dos partidos da oposição – definir o que há a fazer.

E como se concretiza esse objectivo em tempos de contenção?

O desafio é enfrentar esses tempos de crise sem nunca perder de vista esses objectivos. No debate público actual perdeu-se a referência aos grandes objectivos. Na minha opinião, os desafios na educação são simples. Por um lado, garantir que os jovens estudem todos até aos 18 anos e que a grande maioria conclua o secundário e uma parte substancial continue os estudos. Temos de fazer tudo para isso. Se é com mais ou com menos professores, isso é instrumental, não é um objectivo em si. O outro grande objectivo é a formação de adultos. Continuamos a precisar disso. Podemos até levar a dívida para limites aceitáveis, mas o país não se desenvolverá sem subir a qualificação dos portugueses. Diria que é um objectivo estratégico na reforma do Estado.

Esses objectivos, nomeadamente na educação, estão comprometidos?

Não sei se estão comprometidos, mas podemos vir a comprometê-los. Quando estes objectivos saem da agenda, quando os temas da educação são questões de mais professores, menos professores, mais escola, menos escola, mais disciplina, menos disciplina e não há uma palavra sobre os jovens concluírem o percurso escolar com êxito, podemos estar a comprometer esse objectivo.

Defende a racionalização como forma de ultrapassar os cortes na despesa pública. Na educação, onde é que ainda se pode ter ganhos na eficiência?

Estando agora afastada da pasta não sei responder. Quando digo que é preciso competência técnica, isso implica um conhecimento rigoroso dos factos, dos números e das situações que neste momento não tenho. Aquilo que, todavia, observo é que não é eficiência o que temos conseguido. É uma mera redução da despesa à custa da redução de serviço público. Diminui-_-se o número de disciplinas, as crianças estão menos tempo na escola, precisamos de menos professores, logo está reduzida a despesa. Mas interrogo-me sobre o sentido desses cortes. O movimento que estávamos a fazer antes era o contrário – era ter os nossos jovens mais tempo na escola. Dado o défice de qualificação da população adulta, precisávamos que os jovens permanecessem mais tempo em contacto com os professores, mais tempo de estudo para superarem as dificuldades. Hoje o paradigma é o oposto. Quando se acaba com a escola a tempo inteiro, quando se acaba com uma série de disciplinas, o que se está a fazer é diminuir o serviço público. Quando se acaba com o programa Novas Oportunidades sem a ponderação do que é preciso corrigir é porque o país deixou de precisar desse esforço do Estado? E quando se anuncia a diminuição do número de professores, isso, em abstracto, não é uma medida de racionalização, mas uma medida de corte na despesa. Se o país continua a precisar de diminuir o abandono escolar precoce e continua a necessitar de programas de formação de adultos, não podemos estar a falar de professores a mais.

E onde fica então a racionalização?

Não digo que a educação não tenha de fazer um esforço de racionalização no uso de recursos públicos. Defendi e continuo a defender que estamos todos obrigados a usar os dinheiros públicos da forma mais rigorosa e transparente possível. Enquanto estive à frente do Ministério da Educação a despesa nunca subiu e todavia o serviço público de educação aumentou. Temos centenas de escolas renovadas, reconstruiu-se o parque escolar do 1.o ciclo.

Parque Escolar é um tema controverso. Polémicas à parte, hoje há escolas com tudo e outras à espera de tudo.

As escolas só estão à espera de tudo porque o programa foi descontinuado, porque se dispensou o empréstimo do Banco Europeu do Investimento, porque se considerou não ser um programa indispensável, que era luxo a mais para as nossas escolas. E portanto a responsabilidade é agora de quem o suspendeu. É evidente que não se podiam fazer mil escolas ao mesmo tempo. O calendário previa que as escolas mais urgentes tivessem prioridade e acabaram por ser intervencionadas. Posso dizer em consciência que foi um grande projecto e a história vai dar razão a quem tinha razão e a quem teve visão. Mas é cedo ainda.

A percepção pública é que houve luxo e má gestão. Tem essa consciência?

Havia um programa para intervencionar as escolas e havia recursos financeiros para cumprir esse programa que foram negociados a preços que nada têm a ver com a dívida pública. É um pagamento a 30 anos com juros praticamente inexistentes. Bem sei que se criou um manto muito negativo sobre o trabalho da Parque Escolar. Estou bem consciente da dificuldade que é contrariar essa percepção. Acho que quem está na escola e beneficia desse trabalho reconhece a sua qualidade, quem não está tem mais dificuldade.

Disse que não há professores a mais, o que pode surpreender boa parte da classe, tendo em conta que enfrentou um recorde de manifestações. Hoje teria feito as coisas de outra forma?

O tempo não volta atrás, não vale a pena perder tempo a pensar nisso. O que não significa não estarmos disponíveis para reflectir sobre as nossas experiências e retirarmos todas as aprendizagens. Enquanto estive à frente do ministério nunca considerei que os professores fossem a mais, mesmo que fossem. Tínhamos alunos a menos e precisávamos de garantir que se mantinham nas escolas e tinham percursos de êxito. Eram precisos programas para as necessidades de qualificação de jovens e de adultos, tirando o melhor partido dos professores que existiam. Nesse sentido, os professores não eram de mais.

Estavam mal organizados?

Tinham de ser mobilizados. Há margem para racionalizar nos recursos humanos mas é diferente de dizer que há professores a mais. Diminuir o número de professores é baixar uns pontos na fasquia. Se não existe reestruturação, está-se apenas a atirar a despesa para o futuro. Na minha opinião o que havia a fazer era ao nível das carreiras e das condições de trabalho, para permitir um maior centramento nos grandes objectivos.

Deixou a pasta com “sentimento de dever cumprido”. Fechou a porta à política?

Todas as pessoas têm o direito de entrar e sair da vida política sem qualquer tipo de condicionamento. A partir do momento em que assumo um projecto estou nesse projecto. Não estou nem no futuro nem no passado. Estou no presente. E o presente é o ISCTE, onde dou aulas, e é a FLAD. Tenho os meus alunos e o meu curso sobre Políticas Públicas. É um curso pioneiro em Portugal no âmbito da formação em políticas públicas. Precisamos de formar uma nova geração para fazer melhor do que nós fizemos. Este é o meu presente. Só posso ter a ambição de fazer bem aquilo que estou a fazer no presente porque do ponto de vista da carreira não cheguei ao topo nem vou chegar, mas isso não me incomoda nada. As pessoas sabem que não sou professora catedrática. Fui para a política e perdi certas oportunidades. Do ponto de vista da notoriedade científica também não vou ser uma socióloga destacada. Não vou ser, mas dei e vou dando o meu contributo. Estou conformada com isso há muito tempo. O que me resta é empenhar-me a fundo naquilo que estou a fazer agora e esperar que a minha neta nasça em Julho.

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