domingo, 6 de maio de 2012

HÁ GRANDES FRAUDES NO JORNALISMO CABO-VERDIANO




Jorge Montezinho – Expresso das Ilhas (cv)

Quando se aproxima a comemoração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, dia 3, o Expresso das Ilhas foi falar com um político, que também já foi jornalista, para tentar perceber as relações entre os dois mundos. Aviso à navegação, o diagnóstico feito pelo deputado do MpD Abraão Vicente não é dos melhores para os profissionais da imprensa.

Abraão Vicente não gosta de assumir-se como jornalista. Prefere dizer que apresentou o Nha Terra Nha Cretcheu e que escreveu algumas reportagens e entrevistas para o semanário A Nação. De qualquer maneira, esteve dos dois lados da barricada e faz uma análise muito negativa das relações entre jornalistas e políticos.

"Acho que não há nenhuma relação entre jornalistas e políticos, neste momento. Ao contrário do que se vê nos filmes e nas grandes democracias, os jornalistas em Cabo Verde primam por não ter nenhum tipo de relação em especial entre os políticos. Apesar de se dizer que os órgãos, principalmente os estatais, são politizados e que os privados têm também ligações políticas, eu, desde que entrei na política, não tive qualquer tipo de aproximação especial em relação aos jornalistas. Pelo contrário, até penso que os jor-nalistas evitam os políticos para não serem conotados com o partido A ou o partido B, o que eu acho estranho. Porque ninguém é fonte privilegiada se não há uma relação de confiança".

O deputado esclarece que esse estreitar de relações não quer dizer que os políticos tenham de instrumentalizar os jornalistas, "mas acho que há uma relação de medo, de desconfiança e até de competição. Há uma mentalidade deturpada, principalmente dos jornalistas dos órgãos do estado, de que dar atenção às causas de um deputado é dar-lhe protagonismo. É uma ideia errada a de que as pessoas que estão na vida pública querem protagonismo. Mas o que é protagonismo?".

Para Abraão Vicente há também um trauma "um pouco estranho" na classe jornalística cabo-verdiana que é a síndrome de construtores de realidade. "Nunca nenhum evento é simplesmente noticiado. Há sempre uma reconstrução, com a escolha selectiva dos discursos, ou das entrevistas e, principalmente no plano televisivo, pela inserção de imagens".

"É assustador como eventos absolutamente acessórios ganham relevo na comunicação social e como andam ao reboque não só dos políticos como da agenda política. Um dos grandes problemas do jornalismo cabo-verdiano é a falta de causas. E são pouquíssimos os que vejo realmente interessados nas matérias que vão cobrir. Não há grandes reportagens em Cabo Verde, não há grandes entrevistas, tirando na TCV, mas onde tentam, de todas as formas, contornar personalidades que eles acham que são incómodas. Eu sei como funciona a comunicação social em Cabo Verde. Há cerca de dois meses o jornal A Nação censurou uma entrevista que me foi feita porque disseram que eu já tenho protagonismo a mais porque tenho um blogue".

"Caberá aos profissionais dar outra dimensão às notícias"

Na leitura do deputado, a própria comunicação social lida muito mal com as novas formas de fazer comunicação social. Hoje o grande desafio da "comunicação social séria", considera, é perceber que o cidadão comum consegue reportar e criar novas notícias. Caberá aos "profissionais" dar outra dimensão às notícias, dar a substância e a credibilidade "que o cidadão comum não consegue com o seu relativismo".

O deputado democrata percebe que grande parte dos órgãos de comunicação social luta contra grandes dificuldades financeiras, mas sublinha que isso não pode desculpar tudo. "Já fiz parte de uma grande equipa, no Nha Terra Nha Cretcheu, onde os meios não abundavam. Isso não impediu trabalhos extraordinários, que a própria televisão pública de Cabo Verde não tem coragem para fazer, e continua a ser um programa de referência na RTP África e na Record. Porque havia esse interesse, havia esforço para pesquisar. Isso só mostra que quando há interesse é possível fazer um jornalismo de qualidade, com poucos recursos".

"Há grandes fraudes no jornalismo cabo-verdiano e muitos profissionais põem-se a um nível de desempenho que não têm. É a pura realidade. Os cabo-verdianos, diariamente, sentem falta da competência dos jornalistas, da sua audácia, da sua capacidade de crítica. Não é ter juízos de valor, é escolher as matérias a noticiar. Esta estadia na política serviu para aprofundar a ideia que tinha de quão incompetentes são os órgãos de comunicação públicos".

Falta auto-reflecção

"Falta auto-reflecção. São os próprios jornalistas que mutilam a classe, basta ver como age o actual director da televisão estatal, basta ver o silêncio da AJOC perante casos graves de assédio a jornalistas ou de impedimentos de acesso a fontes. Na própria plenária, basta ver como grande parte da comunicação social está cá, impávida e serena. Sentados comodamente à espera do final, que é como se dissessem ‘eu não estou interessado'."

"Os jornalistas põem-se num pedestal quando deviam ser mais invisíveis para que so-bressaísse a notícia. Em Cabo Verde, os jornalistas pedem um protagonismo que não se vê em país algum do mundo. O protagonismo deve vir das suas boas práticas".

Para Abraão Vicente, há manipulação de mensagens porque os jornalistas repetem o que vem nos comunicados, porque repetem o que lhes é dito nas entrevistas, porque não há contraditório. "Quem entrevista um autor vê-se que nunca pegou no livro nem teve a coragem de ver a contracapa. Todos os artistas que lançam um CD têm acesso à comunicação social, o que é ridículo porque se promove a mediocridade a toda a hora em Cabo Verde. E depois, só as desgraças é que têm cobertura, há a promoção da miséria, do pior, do coitadismo e não se promovem valores como a garra ou o trabalho. Há manipulação por falta de esforço intelectual e de um background que lhes garanta a imparcialidade".

Melhorar o cenário, na opinião do deputado do MpD, depende apenas dos profissionais da área.

Principalmente, ganharem interesse pelo que cobrem. "Somos muito imediatistas. O facebook serve de fonte tal como a fofoca dos comentários do Liberal. Há falta de critérios. Se calhar, têm de ser melhor pagos, para não se venderem. Mas, a cúpula dos jornais tem o rabo preso à política e enquanto não aparecer um freelancer capaz de não se importar com os salários e enquanto o jornalismo for um posto social não haverá jornalismo de qualidade em Cabo Verde", conclui.

Jorge Montezinho, Redacção, Praia

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