A assunção
presidencial, no dia de Martin Luther King, acontece no aniversário de outros
eventos essenciais para os direitos civis norte-americanos: a Proclamação de
Emancipação e da Marcha a Washington. Muitos aniversários. É só uma
coincidência curiosa? As conexões podem ser mais profundas.
Laura Flanders*,
The Guardian - Carta Maior
Emancipação? Soa
muito bem.
Chega o dia 21 e nós já nos familiarizamos com o fato de que 2013 começa com o
segundo empossamento de Barack Obama no dia de Martin Luther King, que também
coincide com o 50º aniversário da Marcha a Washington e o 150º aniversário da
Proclamação da Emancipação. Muitos aniversários. É só uma coincidência curiosa?
As conexões podem ser mais profundas.
Por começar com a Emancipação. A declaração, efetivada em 1 de janeiro de 1863,
proclamava a liberdade de todos os escravos que viviam nos Estados Confederados
- mas já houvera emancipações anteriores. Na guerra revolucionária, foi
prometida emancipação aos africanos escravizados que lutassem contra os
britânicos. Posteriormente, outros garantiram sua liberdade por trabalho duro
ou fuga, ou ambos.
A Emancipação não foi tão boa quanto diziam que seria. Por uma coisa, a
declaração de 1863 não referia-se aos escravos da União. Em Delaware e
Kentucky, 40 mil pessoas tiveram que esperar dois anos pela 13º emenda. Mesmo
nos anos revolucionários havia um problema: a liberdade legal não
necessariamente chegava com os meios para se viver livremente.
Eleanor Eldridge, filha de um combatente na guerra revolucionária, oferece um
relato sobre seu pai e seu irmão, escravos que lutaram bravamente apesar das
determinações sob a promessa de terra e liberdade no que à época era território
de Mohawk. Ela escreveu:
"o que eram as privações, a fadiga, os perigos, as angústias? Eles não
haviam vislumbrado a estrela d'alva da liberdade cintilando no leste? Eles não
sairiam em breve das listas de bens para tornarem-se homens?"
Ao fim da guerra, os irmãos Eldridge ficaram chocados. Inflação massiva e o
crash financeiro tornaram o dinheiro da recompensa desprezível. Para citar
Eleanor Eldridge novamente:
"ao fim da guerra eles foram ditos livres, mas seus serviços foram pagos
com dinheiro velho. A depreciação e a ruina final deixaram a eles nenhuma
riqueza além da inestimável liberdade... Eles estavam livres. Sem fundos, eles
não podiam tomar posse de suas terras em Mohawk. E até o presente dia seus
filhos não puderam recuperá-las."
Eleanor continua por descrever como ela e seu marido trabalharam para comprar
um lar e como ela perdeu o que conseguira num cambalacho hipotecário na década
de 1800 - não soa familiar?
Harriet Tubman, escrava fugitiva que conduziu muitos à liberdade, descreveu sua
escapada da seguinte maneira:
"eu olho para minhas mãos para saber se eu sou a mesma agora que sou
livre. Havia tanta glória em tudo aquilo... Eu fiz a travessia que há muito
sonhava fazer. Eu estava livre, mas não havia alguém que pudesse me dar as
boas-vindas à terra da liberdade. Eu era uma estrangeira numa terra
estranha".
Tampouco houve boas-vindas para as mulheres e homens libertos nos anos 1860.
Como contam Angela Davis e Michelle Alexander (autora de The New Jim Crow), no
tempo exato em que ex-escravos estavam criando as próprias comunidades e
plantando o que colheriam para si próprios, as velhas elites escravocratas
aprovaram leis "antivadiagem" que, essencialmente, tornou crime ser
um empregado autônomo ou não ter um patrão (branco). Facilmente presos e
condenados sob nova legislação, "prisioneiros negros eram forçados a
trabalhar por pouco ou nenhum pagamento", escreve Alexander. As provisões
antiescravidão da 13º emenda são uma exceção conveniente para o trabalho
prisional.
Sem o compromisso federal para mudar a estrutura de poder no sul, antigos
senhores de escravos puderam usar sua influência política para legislar, e seu
poderio econômico para armar a população e a Ku Klux Klan. Entre 1868 e 1876, a
maior parte dos anos teve de 50 a 100 afro-americanos linchados.
Nosso período tem muito em comum com aquele, chamado de Era Dourada. Naqueles
tempos, como agora, ricos e pobres estavam extremamente divididos; industriais
e grandes banqueiros estavam em pé de guerra contra reformistas, operários,
mulheres, negros libertos e imigrantes. Naquela época, como agora, a natureza
do trabalho, da vida, da política e da demografia na nação eram incertas.
Muitos brancos temiam pelo futuro da sua "raça".
O quanto estamos emancipados atualmente? A resposta depende das pessoas com
quem se fala e das perguntas que são feitas. Tendo como parâmetro a escravidão,
a sociedade atual é relativamente livre - mas que comparação! Evocando Eldridge
e Tubman, os recursos de que as pessoas precisam para viver livremente ainda
são estratificados, e seguem velhos princípios. Educação de qualidade, moradia,
trabalho, saúde; livramo-nos juridicamente das placas de "apenas para
brancos", mas vejam os níveis de prosperidade econômica, o indicador mais
decisivo para o acesso a todas essas coisas.
O cenário é revelador. No ano passado, pesquisadores do Insight Center for
Community Economic Development (Centro de Estudos para o Desenvolvimento
Econômico Comunitário), com sede em Oakland, divulgaram que o rendimento
familiar médio de uma mulher afro-americana economicamente ativa era de US$
100, em comparação com US$ 42.100 de uma mulher caucasiana equivalente (ou 40%
além disso para um homem caucasiano). É espantosa as diferenças causadas por
séculos de escravidão.
Martin Luther King e seus companheiros sabiam que mudanças não viriam a partir
de presidentes, mas de movimentos. Presidentes podem agir, mas são os
movimentos que os fazem agir. Só os movimentos sociais têm o poder emancipatório
para se fortalecer a partir de números, até mesmo os números dos
desfavorecidos.
A marcha em Washington conjugou a demanda por liberdade com a demanda por
empregos. Notem como a mídia endinheirada poucas vezes chamou a marcha por seu
nome completo: Marcha em Washington por Liberdade e Emprego.
Nós precisamos de outra marcha, mas, mais importante, precisamos de outro
movimento social com a mesma força. As pessoam gostam de sair que liberdade não
é de graça. Mas o mesmo ocorre com a emancipação: ela custa o status quo. Para
emancipar um antigo estado escravocrata como o nosso, é precismo muito mais que
uma declaração. Nós ainda não chegamos lá.
Tradução de Caio Hornstein e André Cristi
Fotos: Página da Casa Branca na internet
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