quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Portugal: A LEGITIMIDADE PERDIDA DO GOVERNO




Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião

O Governo tem ou não tem legitimidade para avançar com medidas que contrariam tudo o que, em matérias nucleares, disse e prometeu antes das eleições? Esta é uma das questões chave do momento, e vai sê-lo cada vez mais nos próximos meses.

E a esta questão, a que uma maioria crescente de portugueses responde espontaneamente pela negativa, são muitos os que respondem pela positiva, lembrando os resultados eleitorais e a maioria existente no Parlamento.

Quem tem razão? Quem invoca os resultados eleitorais e a maioria parlamentar refere dados de peso, que são efetivamente incontornáveis. Acontece, contudo, que a evolução da democracia nas últimas décadas mostra também que eles são cada vez mais frágeis e insuficientes, que há cada vez mais outros elementos de peso a ter em conta na definição da legitimidade política.

É que, ganhas as eleições, há nas democracias contemporâneas de hoje dois outros parâmetros que acompanham - reforçando-a ou diminuindo-a - a legitimidade de um governo. Esses parâmetros são os da avaliação, por um lado, da sua anunciada capacidade para resolver os problemas do País e, por outro lado, da sua fidelidade face às promessas e aos compromissos que assumiu com os cidadãos.

São inúmeros os trabalhos de "ciência" política, de sociologia e de filosofia, que apontam neste sentido. E foi respaldado neles que Pierre Rosanvallon defendeu, em meados da década passada, que a democracia do nosso tempo se tornou indissociável do que ele designou como a "contrademocracia", num processo que conduziu ao aparecimento de novas formas de legitimidade.

E porquê? Porque, com a crise da democracia resultante da erosão da confiança popular nos eleitos, se multiplicaram comportamentos de desconfiança, de sanção e de avaliação por parte dos cidadãos, que assim procuram compensar as fragilidades da democracia. Ou seja, a contrademocracia é um conjunto de contrapesos interno à própria democracia, que tem como objectivo contrariar a sua desvitalização.

É nesta perspetiva que se devem compreender fenómenos como o reforço de todos os tipos de escrutínio público, a diversificação de movimentos populares e sociais ou, ainda, a institucionalização dos tribunais constitucionais. Eles consagram, ao lado do tradicional povo-eleitor, novas figuras da vontade popular: o povo-vigilante, o povo-veto, o povo-juiz.

São estes dados que hoje é preciso ter em conta para responder à questão da legitimidade que, de um modo cada vez mais intenso, tem enfrentado o Governo de Pedro Passos Coelho.

Não vale a pena fechar os olhos à realidade e invocar a legitimidade eleitoral, como se vivêssemos ainda nos primórdios das experiências democráticas: sem sondagens permanentes, sem uma informação e pressão mediáticas constantes, sem a exigente avaliação dos cidadãos.

Mas atenção: isso não significa que se conteste a legitimidade eleitoral, ou o seu carácter imprescindível na vida democrática. Significa é a sua insuficiência para contrariar o sentimento coletivo de esvaziamento da democracia. E revela que vivemos hoje no que se tem designado como o "descentramento" das democracias, isto é, a crescente desvalorização do voto no conjunto dos comportamentos e dos valores que caracterizam a vida democrática.

E, nesta constelação de comportamentos e de valores, é ainda preciso ter em devida conta mais duas coisas. Por um lado, o enfraquecimento da tradicional identificação da maioria com a vontade geral e o simultâneo robustecimento do significado e do papel das minorias, num complexo processo que tem levado a que a maioria apareça, cada vez mais frequentemente, como uma espécie de "plural de minoria".

O que, note-se, tem alterado significativamente o significado político do voto e das eleições, que são cada vez mais vistas, e vividas, pelos cidadãos como um modo de escolha de um governo, e menos como a legitimação definitiva de um qualquer programa. O que, por sua vez, leva a que o mandato político resultante das eleições deixe de ser um cheque em branco, transformando-se cada vez mais num contrato sob escrutínio permanente.

Por outro lado, tudo isto abre para uma multiplicação das legitimidades que definem e enquadram a democracia do século XXI. P. Rosanvallon, neste ponto, destaca três formas de legitimidade que vieram juntar-se à legitimidade eleitoral: a imparcialidade, que remete para o recurso a autoridades independentes; a reflexividade, que se ancora nos tribunais constitucionais; e a proximidade, que aponta para uma relação de confiança que agora os cidadãos avaliam em cada momento.

É neste contexto, e não no quadro de uma formalidade cada vez mais desacreditada, que decorre o debate sobre a legitimidade do Governo do PSD/CDS . Este debate não é sobre a sua legitimidade eleitoral, mas sobra a sua legitimidade política global.

É por isso que ele não lhe é favorável - porque o Governo tem falhado, tanto na capacidade revelada para resolver os problemas, como na fidelidade aos seus compro- missos, dimensões a que os cidadãos dão hoje tanta importância como ao voto. É aqui que se encontra, neste momento, a razão da legitimidade perdida do Governo de Pedro Passos Coelho.

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