Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
O Governo tem ou
não tem legitimidade para avançar com medidas que contrariam tudo o que, em
matérias nucleares, disse e prometeu antes das eleições? Esta é uma das
questões chave do momento, e vai sê-lo cada vez mais nos próximos meses.
E a esta questão, a
que uma maioria crescente de portugueses responde espontaneamente pela
negativa, são muitos os que respondem pela positiva, lembrando os resultados
eleitorais e a maioria existente no Parlamento.
Quem tem razão?
Quem invoca os resultados eleitorais e a maioria parlamentar refere dados de
peso, que são efetivamente incontornáveis. Acontece, contudo, que a evolução da
democracia nas últimas décadas mostra também que eles são cada vez mais frágeis
e insuficientes, que há cada vez mais outros elementos de peso a ter em conta
na definição da legitimidade política.
É que, ganhas as
eleições, há nas democracias contemporâneas de hoje dois outros parâmetros que
acompanham - reforçando-a ou diminuindo-a - a legitimidade de um governo. Esses
parâmetros são os da avaliação, por um lado, da sua anunciada capacidade para
resolver os problemas do País e, por outro lado, da sua fidelidade face às
promessas e aos compromissos que assumiu com os cidadãos.
São inúmeros os
trabalhos de "ciência" política, de sociologia e de filosofia, que
apontam neste sentido. E foi respaldado neles que Pierre Rosanvallon defendeu,
em meados da década passada, que a democracia do nosso tempo se tornou
indissociável do que ele designou como a "contrademocracia", num
processo que conduziu ao aparecimento de novas formas de legitimidade.
E porquê? Porque,
com a crise da democracia resultante da erosão da confiança popular nos
eleitos, se multiplicaram comportamentos de desconfiança, de sanção e de
avaliação por parte dos cidadãos, que assim procuram compensar as fragilidades
da democracia. Ou seja, a contrademocracia é um conjunto de contrapesos interno
à própria democracia, que tem como objectivo contrariar a sua desvitalização.
É nesta perspetiva
que se devem compreender fenómenos como o reforço de todos os tipos de
escrutínio público, a diversificação de movimentos populares e sociais ou,
ainda, a institucionalização dos tribunais constitucionais. Eles consagram, ao
lado do tradicional povo-eleitor, novas figuras da vontade popular: o povo-vigilante,
o povo-veto, o povo-juiz.
São estes dados que
hoje é preciso ter em conta para responder à questão da legitimidade que, de um
modo cada vez mais intenso, tem enfrentado o Governo de Pedro Passos Coelho.
Não vale a pena
fechar os olhos à realidade e invocar a legitimidade eleitoral, como se
vivêssemos ainda nos primórdios das experiências democráticas: sem sondagens
permanentes, sem uma informação e pressão mediáticas constantes, sem a exigente
avaliação dos cidadãos.
Mas atenção: isso
não significa que se conteste a legitimidade eleitoral, ou o seu carácter
imprescindível na vida democrática. Significa é a sua insuficiência para
contrariar o sentimento coletivo de esvaziamento da democracia. E revela que
vivemos hoje no que se tem designado como o "descentramento" das
democracias, isto é, a crescente desvalorização do voto no conjunto dos
comportamentos e dos valores que caracterizam a vida democrática.
E, nesta
constelação de comportamentos e de valores, é ainda preciso ter em devida conta
mais duas coisas. Por um lado, o enfraquecimento da tradicional identificação
da maioria com a vontade geral e o simultâneo robustecimento do significado e
do papel das minorias, num complexo processo que tem levado a que a maioria
apareça, cada vez mais frequentemente, como uma espécie de "plural de
minoria".
O que, note-se, tem
alterado significativamente o significado político do voto e das eleições, que
são cada vez mais vistas, e vividas, pelos cidadãos como um modo de escolha de
um governo, e menos como a legitimação definitiva de um qualquer programa. O
que, por sua vez, leva a que o mandato político resultante das eleições deixe
de ser um cheque em branco, transformando-se cada vez mais num contrato sob
escrutínio permanente.
Por outro lado,
tudo isto abre para uma multiplicação das legitimidades que definem e enquadram
a democracia do século XXI. P. Rosanvallon, neste ponto, destaca três formas de
legitimidade que vieram juntar-se à legitimidade eleitoral: a imparcialidade,
que remete para o recurso a autoridades independentes; a reflexividade, que se
ancora nos tribunais constitucionais; e a proximidade, que aponta para uma
relação de confiança que agora os cidadãos avaliam em cada momento.
É neste contexto, e
não no quadro de uma formalidade cada vez mais desacreditada, que decorre o
debate sobre a legitimidade do Governo do PSD/CDS . Este debate não é sobre a
sua legitimidade eleitoral, mas sobra a sua legitimidade política global.
É por isso que ele
não lhe é favorável - porque o Governo tem falhado, tanto na capacidade
revelada para resolver os problemas, como na fidelidade aos seus compro-
missos, dimensões a que os cidadãos dão hoje tanta importância como ao voto. É
aqui que se encontra, neste momento, a razão da legitimidade perdida do Governo
de Pedro Passos Coelho.
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