António Marinho
Pinto* – Jornal de Notícias, opinião
O visionamento e/ou
obtenção, por parte de agentes da PSP, na RTP, de imagens não editadas
referentes à manifestação de 14 de novembro em frente à Assembleia da República
suscita dois tipos de questões. A primeira tem a ver com a própria PSP,
nomeadamente, para se saber sob as ordens de quem atuaram os agentes que se
deslocaram à sede daquela empresa pública de Comunicação Social e,
concomitantemente, para que fins se destinavam tais imagens ou o seu
visionamento. Saber exatamente a finalidade de tal ação policial é importante
para se poder avaliar da sua conformidade legal. Saber se a iniciativa dos agentes
da PSP era apenas motivada por preocupações de segurança em relação a futuras
manifestações ou se estava inserida numa investigação para apurar a
responsabilidade criminal pelos factos que as imagens documentavam não é
despiciendo ou se era, apenas, a concretização de impulsos individuais de zelo
funcional. Antes, pois, de se apreciar o comportamento de quem autorizou o
visionamento ou cedeu tais imagens, teríamos de averiguar o fim a que se
destinavam para identificarmos quem está por detrás dessa iniciativa policial.
Convém, no entanto,
frisar que, em Portugal, as polícias não atuam, na investigação criminal, pelo
seu livre arbítrio. Atuam sempre sob a direção funcional de um magistrado do
Ministério Público, que é a entidade que detém em exclusivo a titularidade da
ação penal. Em Portugal não há investigações criminais fora de um processo dirigido
por um magistrado do MP, sendo mesmo necessário para a realização de certas
diligências a autorização de um juiz e, por vezes até, que certas diligências
processuais sejam presididas pelo próprio juiz. Estranha-se, pois, que a
Procuradoria-Geral da República ainda não tenha dito nada sobre o caso,
designadamente esclarecendo se os polícias atuaram sob as ordens de um
procurador no âmbito de um inquérito criminal dirigido por esse procurador.
A segunda questão
prende-se com a ética e a deontologia jornalísticas, nomeadamente com o sigilo
profissional dos jornalistas. Contrariamente ao que muita gente pensa, o sigilo
profissional do jornalista não se esgota no dever de proteção da identidade das
suas fontes de informação, mas abrange todos os factos ou circunstâncias de que
o jornalista tem conhecimento no exercício da sua atividade e que não revistam
o interesse público suficiente para serem publicados. No exercício da sua
profissão, o jornalista goza de certas prerrogativas com vista à procura da verdade,
desde imunidades, facilidades de acesso a certos locais, etc. Tais
prerrogativas existem não como direitos laborais, mas sim como garantias da
liberdade de informação, que é em si mesma um valor superior do Estado de
Direito democrático. Sem liberdade de informação não haverá democracia e, como
tal, não haverá Estado de Direito. O Estado só será de Direito se for
democrático e só será democrático se for Estado de Direito.
Nessa medida, a
obrigação de um jornalista colaborar com a Justiça só se pode aceitar quando
não ponha em causa os deveres éticos e deontológicos do jornalismo. A liberdade
de Imprensa é, numa sociedade democrática, tão importante como a administração
da Justiça e, por isso, esta não pode colonizar ou instrumentalizar aquela. O
jornalista não pode nunca ser olhado como auxiliar ou colaborador da Polícia ou
da Justiça, sob pena de trair os princípios éticos basilares da sua atividade e
a confiança de quem com ele se relaciona. Se a Polícia queria imagens da
manifestação que as tivesse filmado ela própria e se a lei não lho permite
então não pode tornear essa proibição obtendo (para os seus fins policiais)
imagens que foram registadas unicamente para efeitos informativos. É
escandaloso como certos "jornalistas" se aliam à Polícia e a certos
magistrados, criando uma promiscuidade funcional nociva para a justiça e para a
própria liberdade de informação.
No caso das imagens
não editadas da RTP, a Direção de Informação deveria não só ter recusado o seu
visionamento e/ou obtenção, mas até opor-se com veemência a qualquer
autorização que outrem tivesse dado para esse fim.
*Bastonário da
Ordem dos Advogados
Sem comentários:
Enviar um comentário