A pobreza escondida
nas estatísticas, mas à vista nas ruas
Andreia Sanches – Público – foto Paulo
Pimenta
Algumas horas a
caminhar em Lisboa bastam para encontrar um número equivalente a 10% dos
sem-abrigo que o INE contabilizou no país todo. Como Eduardo, o pára-quedista,
ou o transmontano que conduzia máquinas nas obras.
Um, dois, três,
seis, 10, 20, 40, 60... caminhe-se algumas horas numa noite fria de Novembro,
em Lisboa, e percebe-se mais facilmente por que razão algumas organizações não
governamentais dizem que os números apurados pelo Instituto Nacional de
Estatística (INE) sobre pessoas sem-abrigo estão muito aquém da realidade.
Conhecidos esta semana, os dados definitivos do último Censos falam de 696
homens e mulheres nessa situação em todo o país. Na quinta-feira, só passando
por meia dúzia de ruas da Baixa da capital e na Gare do Oriente, o PÚBLICO
contabilizou mais de 60 a dormir ao relento.
"Há tanta
gente... é ir por aí acima, Marquês de Pombal, Saldanha...", comentava um
transmontano de 49 anos, cabelo grisalho, camisola verde de malha, impecável,
por cima de uma camisa branca de flanela. Podia estar vestido para ir
trabalhar. Mas era assim vestido que se preparava para dormir aninhado numa
caixa de cartão desengonçada num passeio da Avenida da Liberdade - a avenida
das lojas de marca de renome, dos hotéis, das esplanadas e dos sem-abrigo.
Nem sempre é fácil
saber quantos corpos estão por debaixo dos montes de cartão e mantas que se
avistam nas ruas e nas ombreiras das portas. Nem é possível garantir que nesta
noite fria e húmida quem dorme ao relento o faz mesmo porque não têm como pagar
um tecto. "Acha que se tivesse onde dormir estava aqui?", pergunta
indignado o transmontano, os olhos muito brilhantes, enquanto, de joelhos no
chão, endireita os cartões que lhe vão servir de cama.
O percurso
escolhido cobre apenas uma pequena parte da rota dos sem-abrigo.
Praça da
Figueira: uma mulher dorme sentada, num banco, curvada sobre si mesma, com uma
manta colorida sobre a cabeça, rodeada de sacos de supermercado.
Rua 1.º de
Dezembro: à entrada de um prédio, num recanto escuro, junto a uma pizzaria
frequentada por turistas, alguém dorme em cima de cartões e mantas.
Largo de São
Domingos: três corpos enrolados, um corpo por cada uma das três montras de um
"pronto-a-vestir de senhora, criança e homem".
Praça dos
Restauradores: três pessoas dormem junto à porta da antiga Loja do Cidadão. Um
homem tem uma garrafa de vinho tinto ao lado. Outro dorme por debaixo do banco
de uma paragem de autocarro iluminada por um reclamo que anuncia bilhetes de
avião para Bordéus, Paris e Lyon a 29 euros e promete "umas férias bem
regadas" com vinho francês.
"Quando
fechamos os olhos, não se sabe o que pode acontecer, se se vai ser agredido, se
se vai ser queimado", diz Eduardo, 27 anos, alguma experiência de rua
onde, em geral, explica, "ninguém quer pensar no amanhã". Eduardo é
um homem de pele morena, olhos claros, sorriso largo. Tem uma frase tatuada no
braço: "Só vence quem acredita na vitória." É um lema dos
pára-quedistas. Ele já foi pára-quedista.
Rua Augusta: um
homem dorme enfiado à entrada de uma loja de óculos de sol.
Avenida da
Liberdade: três homens dormem junto à montra de uma perfumaria, outros dois
junto a uma loja de roupa - entre os quais o transmontano que conta, quase a
sussurrar, que trabalhava nas obras "a conduzir máquinas" e que
sempre teve trabalho, mas sempre sem fazer descontos, até que há uns meses nem
trabalho, nem dinheiro, nem casa, nem quarto na pensão. "Estou à espera de
uma vaga num abrigo do Exército de Salvação."
Gare do Oriente:
num corredor, umas a seguir às outras, dormem mais de 40 pessoas. Há um homem
de barbas brancas, deitado de barriga para cima, que tosse convulsivamente, mas
que nunca abre os olhos. Outro que ressona muito alto, as meias de fora da
manta que o cobre, brancas, muito sujas. Há um casal embrulhando num saco-cama
- ela de cabeça de fora, a falar com um outro homem, e o homem que está com ela
a puxá-la para debaixo do agasalho. Mas há, sobretudo, muitos corpos com os
rostos tapados com lenços, trapos, sacos-cama, impossível de adivinhar sexo,
idade, etnia. Uma rapariga de saltos altos, passo apressado, pára bruscamente
junto a um dos corpos, tira da mala uma manta azul, tapa-o e segue caminho.
Tudo muito rápido. É meia-noite.
Nas escadarias de
acesso aos pisos superiores, há mais pessoas a dormir ou a preparar-se para
dormir - 1, 2, 3, 4... Um sem-abrigo embrulhado em cartão fuma um cigarro. Os
que o rodeiam estão imóveis. Nascem amizades nestas "situações
extremas", como lhes chama Eduardo? E inimizades? "Em ambientes de
necessidade as relações são de conveniência. Mas inimizades não há. Há
inimizades quando há inveja e aqui ninguém tem nada para invejar." E
continua: "Na rua o que é que se tem? Outras pessoas que não têm nada como
nós. Que estão à mercê como nós. O que é que fazemos com isso? Consome-se
(álcool, drogas) e não se tem paciência para nada. O que é que acontece quando
não há paciência para nada? As pessoas discutem, zangam-se. Mas não se tornam
inimigos. Não se tornam nada."
O problema dos
conceitos
Uma das novidades dos Censos de 2011 era que as pessoas sem-abrigo iam ser contabilizadas à parte, o que poderia vir a permitir caracterizar o fenómeno. Quando esta semana esses resultados foram conhecidos, Sérgio Aires, coordenador da Rede Europeia Anti-Pobreza, disse que a operação se revelou uma "oportunidade perdida". Por causa do conceito de sem-abrigo usado pelo INE, mas não só - mesmo se se tivesse em conta estritamente as pessoas que dormem na rua, disse, a realidade é bem pior do que a que as estatísticas mostram.
A Assistência Médica
Internacional (AMI) informou que, só este ano, atendeu cerca de 1209
sem-abrigo, mais 6% do que no ano passado. E dados divulgados há dois anos pelo
Instituto de Segurança Social contabilizaram 2200 pessoas sem tecto.
A definição de
sem-abrigo está longe de ser consensual. E está longe de ser uma questão apenas
portuguesa. Em Outubro, a Comissão Europeia estimou que "em 2009/2010
havia 4,1 milhões de sem-abrigo na Europa". A situação, acrescenta-se,
ter-se-á "agravado recentemente". Mas este é um "fenómeno cuja
extensão é difícil de quantificar".
Num outro
documento, também com a chancela da Comissão, intitulado Os sem-abrigo na
crise, lamenta-se que a União Europeia ainda não tenha adoptado uma definição
de sem-abrigo que permita fazer um retrato fiel da situação. Diz-se que há
"sem-abrigos "escondidos"" porque ninguém os contabiliza. E
defende-se que passe a ser usado o conceito da Fédération Européenne des
Associations Nationales Travaillant avec les Sans-Abri (FEANTSA), que considera
que sem-abrigo são todas as pessoas que vivem na rua, mas também as que não têm
habitação digna. Tal como as que vivem com familiares ou amigos, de forma
precária, porque não têm alternativa. E as que habitam em instituições.
Em Portugal, o INE
começa por explicar que o conceito que usou nos Censos "está em linha com
as definições internacionais", nomeadamente com "a categoria
conceptual "sem tecto" da tipologia da FEANTSA". Para a
federação os sem-tecto são, contudo, apenas uma das categorias de sem-abrigo.
O INE considera
sem-abrigo "toda a pessoa que, no momento censitário, se encontra a viver
na rua ou noutro espaço público como jardins, estações de metro, paragens de
autocarro, pontes e viadutos, arcadas de edifícios entre outros, ou aquela que,
apesar de pernoitar num centro de acolhimento nocturno (abrigo nocturno) é
forçada a passar várias horas do dia num local público".
De fora ficam
"as pessoas a viverem em edifícios abandonados; as que, não tendo um
alojamento que possa ser classificado de residência habitual, no momento
censitário estavam presentes em alojamentos colectivos como hospitais, centros
de acolhimento, casas abrigo", as que estão a viver com amigos ou
familiares por não terem casa e as que vivem em abrigos naturais, como grutas.
Temporariamente
abrigados
À luz desta definição, os 25 homens que têm lugar no Abrigo Nocturno da Graça, gerido pela AMI, já contam para a estatística.
Aqui, só pode
entrar quem estiver disposto a assinar um acordo que vise a sua inserção. A
ideia é que num lapso relativamente curto de tempo (alguns meses) saia, mas nem
sempre isso acontece. Neste momento, por exemplo, há um jovem que está a acabar
o 12.º ano e Hugo Dias, o psicólogo responsável pelo Abrigo, entende que não
faz sentido mandá-lo embora, quando a prioridade é que ele acabe os estudos.
Cada caso é um caso, sublinha.
No Abrigo, os
utentes podem jantar, dormir, tomar o pequeno-almoço, mas não podem passar o
dia. Aqui têm acesso a apoio psicológico e a ajuda dos técnicos de serviço
social. Mas muitos dos que saem acabam por voltar às ruas - "As pessoas
reorganizam-se, mas não é, muitas vezes, uma reorganização muito
consistente", diz Hugo Dias.
Dois utentes
aceitam falar com os jornalistas sobre aquela que será a realidade de alguns
dos que o PÚBLICO encontrará nesta mesma noite nas ruas da Baixa de Lisboa: um
homem de cabelos grisalhos, que todos os dias lê os jornais na Internet, com
formação em Gestão
Financeira , a que chamaremos António; outro, Eduardo, o
ex-pára-quedista que também já foi segurança privado.
Um e outro não
podem contar com a família, por diferentes razões, sobre as quais não se
alongam - Eduardo diz que quando as coisas se complicaram pediu ajuda aos
familiares, mas estes disseram que simplesmente não podiam ajudar. Ambos têm
filhos. Ambos são extraordinariamente bem-falantes e têm muita fé de que vão
dar a volta - Eduardo está num curso de Inglês; António já arranjou trabalho,
num projecto social chamado CAISBuy@Work, que permite que funcionários de
grandes empresas possam delegar tarefas em pessoas como ele, tarefas que vão
desde fazer compras no supermercado a entregar roupa na lavandaria. Em breve,
poderá até assumir funções de coordenador, conta orgulhoso.
Os pontos em comum
entre António e Eduardo terminam, contudo, aqui.
Eduardo já viveu na
rua em diferentes cidades (na verdade, nunca diz "Vivi na rua"; diz,
por exemplo, "Fui para a Póvoa do Varzim" e, quando se lhe pergunta
"Mas foi para lá e ficou a dormir na rua?", ele responde:
"Quando eu, ao longo desta conversa, não especificar o local onde dormia,
é porque estou a falar da rua").
Já António é
recém-chegado. Depois de "uma vida óptima, que tomara que todos os
portugueses tivessem", foi "desviado por pessoas menos boas para
fazer negócios" que o fizeram perder tudo. Durante alguns anos manteve-se
com diferentes trabalhos, sobretudo vendas, que depois foram deixando de
surgir. E em Junho já não lhe restava dinheiro. "Corri quase todas as
paróquias de Lisboa, cheguei a oferecer-me para trabalhar em troca de um lugar
no chão para dormir. Nada." Deu entrada no Abrigo ainda o Verão não tinha
começado.
Da vida nas ruas,
António sabe pouco, portanto. Sabe que não é tão difícil assim que as coisas
corram tão mal que se acabe por lá ir parar.
Já Eduardo,
percebe-se, sabe mais das ruas do que diz - ruas onde abundam os vícios, as
doenças mentais, o isolamento. Contudo, agora que tem "três refeições
quentes por dia" e vai receber o "cheque do rendimento social de
inserção", sente-se cheio de força e só pensa na "vitória" de
que fala a frase que tem no braço. "Na vida não devemos concentrarmo-nos
nos problemas, mas sim nas soluções. Nas saídas de emergência. As pessoas com
muito dinheiro é que têm muitos problemas. Eu estou apenas à procura da minha felicidade."
Para já, ela passa por acabar o curso de Inglês e depois emigrar. "Talvez
Brasil. Tenho que ponderar tudo muito bem. Foi por não ponderar tudo que acabei
como acabei."
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