Pedro Bacelar de
Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
Na segunda metade
do século passado o campo da social-democracia e do socialismo democrático,
onde gostosamente me inscrevo, estava claramente demarcado nas democracias
europeias por referenciais relativamente simples: a liberdade individual e o
pluralismo político, a economia de mercado e a solidariedade social. No quadro
do "estado de bem-estar" e sob o impulso da reconstrução de uma
Europa destruída pela guerra mundial e envergonhada pela denúncia do
holocausto, a recuperação económica iria gerar recursos financeiros sempre
crescentes até aos anos oitenta, o que facilitava entendimentos comuns sobre as
questões básicas do Estado e a contraposição clara das orientações
programáticas que regulavam o funcionamento da alternância democrática entre
Direita e Esquerda. Na Alemanha de Willy Brandt e Helmut Kohl, governaram
democratas cristãos, liberais e sociais-democratas, estes, mais tarde, aliados
ao partido ecologista, "Os Verdes", herdeiro das revoltas estudantis
de Maio de 1968, com Daniel Cohn-Bendit, hoje deputado ativo no Parlamento
Europeu, ou Joschka Fisher, que imprimiu a sua marca na condução da política
externa germânica, em governos de coligação.
Claro que em
Portugal esse quadro se encontrava brutalmente simplificado pela ditadura
salazarista que condenava até os democratas mais moderados a uma relativa
clandestinidade: o próprio Francisco Sá Carneiro teve que admitir o seu
fracasso, abandonando a Assembleia Nacional do Estado Novo onde entrara pelas
listas da Ação Nacional Popular, único "partido" autorizado pela
ditadura, com base num compromisso de que resultou a chamada "Ala
Liberal", de curta vida. As farsas eleitorais eram tão bem controladas
pela censura, a repressão policial e a falsificação do sufrágio, que nunca a
Oposição, no breve período de campanha eleitoral em que a sua existência era
tolerada, conseguiu fazer eleger um único deputado! Enfim, toda a dissidência
estava condenada à clandestinidade, dos liberais e conservadores mais contidos
até à extrema-esquerda fogosa e irreverente, onde gostosamente combati.
Pelos anos oitenta
a importância que se reivindicava para os "programas eleitorais" era
tanta que havia até jovens aspirantes a constitucionalistas na Faculdade de
Direito da Universidade de Münster, cujo entusiasmo, em vão, tentei arrefecer,
que reclamavam a sanção judicial do seu incumprimento pelas maiorias
governantes. Repudiando tais exageros, reconhece-se que a letra dos programas,
as promessas feitas e a avaliação do seu cumprimento são condição da
indispensável transparência exigida para que a prestação de contas e a
responsabilidade política perante os eleitores se possam efetivar.
O Governo celebrou
"o regresso aos mercados" - uma façanha secretamente preparada com os
irlandeses e supervisionada pelo "diretório europeu" ansioso por
qualquer evento capaz de camuflar a inépcia com que tem gerido a crise do euro.
O feliz episódio não foi apenas um sucesso simbólico, o mero interlúdio num
pesadelo que regressa dentro de momentos. Foi a demonstração flagrante de uma
forma perversa de governar que sistematicamente esconde a substância da própria
governação. Agora, quando a transparência parece desenhar o único caminho por
onde se pode recuperar a confiança dos cidadãos e o seu ativo empenhamento, é a
própria governação que "passa à clandestinidade"! O Governo inventou
uma artimanha para granjear uma reputação de astúcia onde lhe falha a coragem
de assumir a sua agenda e o seu verdadeiro programa: o "Estado
mínimo" - conforme a proposta original de revisão constitucional que há
muito retirou mas tenta agora viabilizar pelo simulacro de uma "reforma do
Estado" apressadamente inventada a pretexto de alguns milhões de euros - e
o reajustamento das finanças, custe os sacrifícios que custar aos depauperados
rendimentos dos cidadãos e às empresas asfixiadas. É urgente construir a
alternativa, com propostas concretas de reforma do Estado, de reabilitação do
sistema político, de estímulo à economia, mas também pela prática de uma
cultura de transparência que reconcilie os eleitores com a política e
justifique a confiança na democracia.
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