sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Portugal: REGRESSO AOS MERCADOS?




Pedro Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião

Na segunda metade do século passado o campo da social-democracia e do socialismo democrático, onde gostosamente me inscrevo, estava claramente demarcado nas democracias europeias por referenciais relativamente simples: a liberdade individual e o pluralismo político, a economia de mercado e a solidariedade social. No quadro do "estado de bem-estar" e sob o impulso da reconstrução de uma Europa destruída pela guerra mundial e envergonhada pela denúncia do holocausto, a recuperação económica iria gerar recursos financeiros sempre crescentes até aos anos oitenta, o que facilitava entendimentos comuns sobre as questões básicas do Estado e a contraposição clara das orientações programáticas que regulavam o funcionamento da alternância democrática entre Direita e Esquerda. Na Alemanha de Willy Brandt e Helmut Kohl, governaram democratas cristãos, liberais e sociais-democratas, estes, mais tarde, aliados ao partido ecologista, "Os Verdes", herdeiro das revoltas estudantis de Maio de 1968, com Daniel Cohn-Bendit, hoje deputado ativo no Parlamento Europeu, ou Joschka Fisher, que imprimiu a sua marca na condução da política externa germânica, em governos de coligação.

Claro que em Portugal esse quadro se encontrava brutalmente simplificado pela ditadura salazarista que condenava até os democratas mais moderados a uma relativa clandestinidade: o próprio Francisco Sá Carneiro teve que admitir o seu fracasso, abandonando a Assembleia Nacional do Estado Novo onde entrara pelas listas da Ação Nacional Popular, único "partido" autorizado pela ditadura, com base num compromisso de que resultou a chamada "Ala Liberal", de curta vida. As farsas eleitorais eram tão bem controladas pela censura, a repressão policial e a falsificação do sufrágio, que nunca a Oposição, no breve período de campanha eleitoral em que a sua existência era tolerada, conseguiu fazer eleger um único deputado! Enfim, toda a dissidência estava condenada à clandestinidade, dos liberais e conservadores mais contidos até à extrema-esquerda fogosa e irreverente, onde gostosamente combati.

Pelos anos oitenta a importância que se reivindicava para os "programas eleitorais" era tanta que havia até jovens aspirantes a constitucionalistas na Faculdade de Direito da Universidade de Münster, cujo entusiasmo, em vão, tentei arrefecer, que reclamavam a sanção judicial do seu incumprimento pelas maiorias governantes. Repudiando tais exageros, reconhece-se que a letra dos programas, as promessas feitas e a avaliação do seu cumprimento são condição da indispensável transparência exigida para que a prestação de contas e a responsabilidade política perante os eleitores se possam efetivar.

O Governo celebrou "o regresso aos mercados" - uma façanha secretamente preparada com os irlandeses e supervisionada pelo "diretório europeu" ansioso por qualquer evento capaz de camuflar a inépcia com que tem gerido a crise do euro. O feliz episódio não foi apenas um sucesso simbólico, o mero interlúdio num pesadelo que regressa dentro de momentos. Foi a demonstração flagrante de uma forma perversa de governar que sistematicamente esconde a substância da própria governação. Agora, quando a transparência parece desenhar o único caminho por onde se pode recuperar a confiança dos cidadãos e o seu ativo empenhamento, é a própria governação que "passa à clandestinidade"! O Governo inventou uma artimanha para granjear uma reputação de astúcia onde lhe falha a coragem de assumir a sua agenda e o seu verdadeiro programa: o "Estado mínimo" - conforme a proposta original de revisão constitucional que há muito retirou mas tenta agora viabilizar pelo simulacro de uma "reforma do Estado" apressadamente inventada a pretexto de alguns milhões de euros - e o reajustamento das finanças, custe os sacrifícios que custar aos depauperados rendimentos dos cidadãos e às empresas asfixiadas. É urgente construir a alternativa, com propostas concretas de reforma do Estado, de reabilitação do sistema político, de estímulo à economia, mas também pela prática de uma cultura de transparência que reconcilie os eleitores com a política e justifique a confiança na democracia.

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