Rodolpho Motta Lima*
- Direto da Redação
A morte de cerca de
mais de 230 jovens em uma boate de Santa Maria provocou uma enxurrada de
declarações. É evidente que são corretas as causas imediatas arroladas
pelos especialistas e pessoas de bom senso e também as providências sugeridas/prometidas
para a não repetição de fato tão inaceitável quanto vergonhoso . Uma
sucessão de irregularidades, que envolveram desde os donos da boate e
passaram por setores responsáveis pela fiscalização, não deve mesmo passar
impune e vai servir – como já se percebe – para medidas de alcance nacional,
ainda que típicas da prática da “casa arrombada” . Nada contra: melhor do que
deixar tudo como está... O problema é o temor do “arquivamento geral” quando
passar a comoção. Há muitos precedentes nesse sentido...
Essa ocorrência
suscita, além das óbvias teses em curso, um debruçar-se sobre algo, tão velho
quanto o homem, que antecede e sustenta a irresponsabilidade de
indivíduos que se envolvem em episódios do tipo e, depois, frequentemente, têm
garantida a impunidade. Trata-se do culto ao dinheiro, elevado à
categoria de bem maior, gerando corruptores e corruptos que povoam
o noticiário nacional (e internacional) com suas ações de ganho imoral
e lucro desonesto. Talvez nunca tenha sido tão clara essa marca de um tempo
como o é agora, em que um mundo fundado no capital e no mercado transformou
cidadãos em “consumidores” que, vagarosamente, vão afastando de si
valores essenciais ao ser humano. Somos ou estamos sendo todos fantoches
do espírito do ter, do prazer através da riqueza material.
Convivemos com
uma cadeia de “negligentes conscientes”, ativos e passivos, nesse círculo
vicioso que envolve o predomínio dos mesquinhos interesses particulares,
seja pela ganância de uma expressiva quantidade de empresários que
espertamente enriquecem com total falta de escrúpulos , seja pela avidez de
representantes públicos que, em troca de propinas, omitem-se na defesa dos
interesses do povo. São individualidades representativas da esfera
pública compradas por outras que configuram a esfera privada.
O dinheiro é o
móvel que sustenta um tempo de predominância de valores egocêntricos, unindo
corruptores e corruptos diante da perspectiva dos ganhos fáceis e imorais,
fruto das ações irregulares, dos descumprimentos legais, do “jeitinho”
oportunista que muitos chamam de “esperteza”. Tudo em nome do lucro maior,
como, por exemplo, no episódio em foco, o que também levou os
integrantes da banda a, mesmo alertados, optarem por usar elementos
pirotécnicos mais baratos – mesmo que mais perigosos – no ambiente fechado da
boate.
A exploração
comercial dos desejos do público “consumidor” conta com uma inocente
cumplicidade motivada pela busca hedonista do prazer – outra marca dos nossos
tempos, que acaba alimentando esse ambiente de descompromisso e impunidade. Um
dos jovens que estava na boate quando do incêndio, tendo escapado, disse que,
em sua opinião, dificilmente passaria a haver uma preocupação maior com a
superlotação de outras casas do tipo, porque “quanto mais cheio melhor”.
Empresários inescrupulosos do ramo das diversões – no momento calados, como
convém aos seus negócios – devem estar esfregando as mãos de satisfação com
esse posicionamento pouco consciente.
Para opor-se a
esses indignos representantes das esferas privada e pública, é preciso que se
revigore o único poder capaz de enfrentá-los: o poder social, aquele em
que se recupere o cidadão e se sepulte o consumidor, aquele que volte a
preocupar-se com valores gregários que envolvam o bem comum, o espírito
público , o respeito ao próximo. É preciso que deixemos de lado esse permanente
convite midiático de exaltação do ter e retomemos o significado etimológico que
nos faz componentes de uma sociedade.
Não pode o dinheiro
ser sempre o móvel maior. Há poucos dias, assisti a um debate na
“Globo News” que, a propósito da tragédia, teve como tema as
eventuais indenizações pelas mortes, ou seja, quem deveria pagar o que a
quem. Isso dois dias após o ocorrido. Ressalte-se que não eram as famílias que
estavam falando disso, mas era a mídia que procurava esse foco. Sobre a mídia
,aliás, o que se percebe é que, além do sempre presente e perverso
sensacionalismo com que cobre as desgraças em busca de maior audiência (e
faturamento), não disfarça a preocupação de politizar os fatos, no mau
sentido, apontando suas baterias para o Estado, sempre eleito como o principal
culpado por ocorrências desse tipo. Não se pode confundir, como o quer o neoliberalismo
, uma instituição que é indispensável a toda verdadeira democracia, com
os indivíduos que, em nome dela, se deixam corromper pelo “poder particular”.
Defensores da iniciativa privada, adeptos do mercado como deus único, certos
órgãos midiáticos têm profunda dificuldade em reconhecer que muitos segmentos
do nosso empresariado “criativo e empreendedor” fazem do dinheiro desonesto o
único objeto de suas ações.
É preciso que o
poder social recoloque a cidadania nos trilhos. Porque, por mais que acreditem
nisso os fetichistas do dinheiro e do lucro, assim como não será nunca o PIB ,
maior ou menor, que medirá a felicidade de uma nação, também não serão a
ganância, a acumulação, a cobiça e o ganho fácil que trarão a felicidade de
seus cidadãos. Essa virá, se vier, quando se inverter a polaridade que
privilegia o individual, recuperando o bem comum, realmente, como o mais
importante dos bens. Se essa nova organização social é utópica, é
uma outra questão. Perseguir utopias é um dos desígnios do Homem.
*Advogado formado
pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa
do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições
do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura,
particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do
Brasil.
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