terça-feira, 2 de abril de 2013

A AMÉRICA LATINA E A NOVA CULTURA POLÍTICA (2)




Rui Peralta, Luanda

VII - Sendo a América Latina um manancial de novas forças autogestionárias, participativas e emancipadoras, torna-se necessária uma reflexão sobre a forma como estas autonomias sociais se relacionam com o Estado, com as instituições e partidos, como são efectuadas as relações entre o local, o nacional e o global, a relação com o mercado e com outros sectores sociais ou as suas formas de organização. Nestas reflexões e observações muitos foram os seduzidos pela ideia do anti-poder, um contra poder baseado na autonomia dos movimentos sociais e dos espaços comunitários autogeridos, as zonas autónomas. Entre os seduzidos por esta ideia estão Toni Negri, Miguel Benasayang e John Holloway, tendo este ultima analisado a experiencia zapatista.

Clamando por um transformar o mundo sem tomar o poder e a desenvolver conceitos como “poder-acção,” “poder-fazer” em vez do interesse pela tomada do poder. Holloway defende que o mundo não pode ser transformado a partir do Estado, por este ser apenas um nó na rede das relações de poder. Para Holloway o objectivo estratégico seria o de liberar o poder-acção e o poder-fazer e prevenir as experiências autogeridas do perigo representado pelas instituições e pela sua institucionalização. Holloway esquece algumas questões muito básicas, a começar pelos zapatistas, que ele observou durante anos.

As conquistas dos zapatistas são consideráveis e Holloway acompanhou-as de perto. Só que quando os comandantes zapatistas falam em mandar obedecendo referem-se a uma fórmula de poder popular, que impede a burocratização e os maus hábitos dos dirigentes, assim como é anunciador de um poder muito real (e vertical, bastando a essa verticalidade a posição de comandantes e subcomandantes), assumido pelas assembleias, mas também pelo poder institucional zapatista, representado em instituições como os conselhos de bom governo e o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). E foi esta estrutura que escapou a Holloway nas suas conclusões.

É evidente que a existência das Zonas Autónomas e a importância da autonomia social assume um papel de vanguarda nas movimentações sociais do seculo XXI, na América Latina, mas não no sentido da recusa do poder. Até porque para muitos destes movimentos (pelo facto de estarem espacialmente focados) essa é uma questão que eles nem sequer colocam. Muitas das movimentações não têm intentos revolucionários em potência, outras podem até ter um comportamento insurrecional, mas daí a serem situações revolucionárias que coloquem em causa o poder de Estado ou o relacionamento institucional vai uma grande distância. Portanto a questão do Estado, ou da tomada do poder, não é uma constante nestas movimentações. E não o é porque ainda não estão criadas as condições que levem a essa tomada de posição.

Um outro conhecido partidário dos movimentos, é um dos mais fecundos autores sobre as questões relacionadas com os movimentos, interessado na experiencia boliviana da guerra das águas e no piqueteros da Argentina e também com um especial interesse na experiencia zapatista, Raul Zibechi. Zibechi não se deixando deslumbrar, como Holloway, foca o conceito de dispersar o poder. Para Zibechi a questão é fugir do estado, sair dele. A dispersão do poder realiza-se, segundo ele, de duas formas: pela desarticulação da centralização estatal e por estruturas não burocratizadas, assumidas pelo pluralismo de estruturas organizativas.

VIII - Todas estas concepções são reveladoras de um único facto: a incompreensão do papel do Estado. Nenhum destes conceitos operacionais (anti-poder e dispersar o poder) compreende o Estado. O Estado é apenas, única e exclusivamente, um aparelho repressivo, sendo por isso o seu domínio o mecanismo principal de poder. Todas as restantes atribuições do Estado são apêndices dispensáveis, que poderão ser cortados e entregues á iniciativa privada ou aos processos autogestionários, ou às comunidades, ou às Igrejas, que qualquer uma destas identidades assume esse papel. Agora, aquele que foi o germe do Estado, o elemento preponderante da sua existência e que o faz assumir um papel central nos grandes períodos revolucionários, é o germe repressivo, que só através dele é conseguido.

Um dos grandes papéis dos movimentos e das autonomias sociais (as Zonas Autónomas) é exactamente o de criar os mecanismos de administração pública e socializada dos bens e serviços. É esta a sua grande virtude e este factor que o coloca na vanguarda. Mas isto não é, de forma alguma, uma situação que ponha em causa o poder, ou uma manifestação de anti-poder, nem uma fuga ao estado. Na Historia existiram outras situações análogas. Nos séculos XVI e XVII, as zonas autónomas piratas e as suas redes globais, por exemplo, representam uma experiencia histórica única e de projecção global, baseada em assembleias e com muitos dos pressupostos que hoje vemos nos movimentos sociais da América Latina. Mas foram facilmente esmagadas pela burguesia e pelas frotas das monarquias europeias, quando estas acharam que as utopias piratas faziam perigar o comércio e os interesses das Companhias Comerciais. E porque foram facilmente esmagadas? Porque não aproveitaram o seu posicionamento no mundo e porque não olharam para o fulcro da questão: o poder e a tomada do aparelho repressivo do estado, ou seja do Estado.

Noutra realidade espacial e temporal tivemos a experiencia dos Conselhos Operários, por exemplo. Em países como a Itália, nas zonas industriais de Milão e Turim eles foram determinantes, assim como por toda a Europa industrial. Foi um movimento de classe, de natureza operária, que fez tremer toda a Europa burguesa industrial nos anos vinte do século passado. Mas, exactamente porque a questão do poder foi protelada e porque no seu interior surgiram correntes deslumbradas com a vitalidade operária (os comunistas dos conselhos), o Estado burguês, quando chegou o momento crucial, em que a burguesia industrial já não podia suportar a pressão operária, fez varrer os conselhos, através de uma vaga repressiva de tal intensidade que muitos dos seus militantes permaneceram na cadeia (os muito poucos que sobreviveram ás condições das cadeias fascista italianas, Gramsci acabou por morrer na cadeia, por exemplo) durante 30 anos, só saindo depois do final da II Guerra Mundial.

Portanto esta é uma questão fundamental, mas que, tanto Zibechi, como Holloway, não a colocam devidamente, porque interpretam erradamente as dinâmicas sociais e não fazem a devida análise histórica comparada de processos similares, ocorridos em diferentes realidades espaciais.

IX - As alternativas só serão sólidas com a tomada do poder. Apenas a utilização do aparelho de Estado (mesmo que seja para o destruturar e extingui-lo a medio prazo) é a única forma de assegurar as autonomias e as conquistas efectuadas pelos movimentos, frente á barbárie capitalista e ao imperialismo. Até á tomada do aparelho de Estado tudo permanece em risco de ser extinto, como aconteceu em todos os períodos históricos nas mais diversas realidades espaciais.

Teorias e conceitos como os de Holloway, Negri e Zibachi são absolutamente ineficazes face ao imperialismo e á forma pouco subtil e cavalheiresca como o capitalismo age nas periferias. O capitalismo não se assusta com os importantes experimentos das mobilizações sociais e dos movimentos, quanto muito fica alerta e prepara a contraofensiva. A agenda imperialista não é alterada pelos fortes movimentos que reclamam a soberania dos recursos e proclamam uma efectiva soberania nacional e popular. Recolhe informações, analisa e processa os dados e aguarda, paciente, pela altura própria de agir.

X - Como coordenar (e federar), então, a multiplicidade de espaços alternativos e autónomos para preservá-los do rolo compressor do capitalismo? (Também aqui as realidades históricas de outras latitudes - como por exemplo os debates iniciados na Europa do século XIX entre Proudhon, Marx e Bakunine, ou os problemas que se apresentaram aos Communards de Paris - podem apontar pistas). Como tomar o poder sem ser tomado pelo poder (porque é essa a questão e não a metafisica do anti-poder e da dispersão)? Como construir formas de poder popular articuladas de forma a proceder a uma socialização da produção, para lá da estatização burocrática? Como efectuar a difícil transição que leva os poderes constituintes a tornarem-se poderes constituídos? E quais os métodos de articulação entre os espaços de deliberação e os de decisão?

Algumas destas questões são respondidas pela praxis dos movimentos, outras são questões para as quais ainda não têm resposta e outras ainda não os afectam. Todas estas questões (e outras que aqui não foram levantadas) não se referem á realização imediata do outro mundo possível, mas ao seu começo.

XI - Uma estratégia de transformação de raiz estende-se durante um macro ciclo de longo prazo. É um caminho longo…

A diversidade das experiencias demonstra a ampla riqueza das prácticas emancipadoras em curso na América Latina. Nesta diversidade os movimentos sociais explanam a questão do procedimento democrático (a democracia directa), a apropriação dos recursos e a socialização da produção. O que faz a força do panorama actual latino-americano é o facto das denúncias da alienação capitalista e os processos comunitários de emancipação estão conectados á crítica social e ambiental do capitalismo, através dos seus movimentos populares.

Há que ir além da ideologia e mergulhar na experiencia histórica. E acima de tudo, não esquecer que o importante é transformar o mundo (para que o mundo ainda não transformado não nos transforme…).

(Torino, Março de 2013)

Fontes
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