Rui Peralta, Luanda
I - Sempre que se
fala de democracia, a imagem que nos vem á cabeça é a de uma longa fila de
cidadãos eleitores, que aguardam pacientemente a sua vez para depositar o voto
na urna eleitoral. O direito a exercer e o dever a cumprir, neste ritual que é
o momento eleitoral, é o de eleger os representantes (não o de decidir, mas o
de eleger quem vai decidir).
Alguns teóricos
actuais, como Hans Kelsen (ver Kelsen, Hans) consideram as eleições como um método
de selecção de líderes. Nada mais incorrecto. Os líderes são seleccionados
entre as elites e apresentados á aceitação popular. As eleições servem, quanto
muito, não para os seleccionar mas para medir a sua aceitação.
Se analisarmos os
processos de democratização ocorridos no século XIX, nos países que hoje se
consideram democráticos, concluiremos que estamos na presença de progressivas
ampliações do direito de eleger os representantes, ou então observamos
processos em que os direitos de eleição foram ampliados a outros sectores da
população (caso das ditas Câmaras Altas, por exemplo, cujos membros eram
nomeados ou eleitos por um pequeno e restrito colégio eleitoral, representando
o processo de democratização uma transição da nomeação para a eleições e nos
casos em que já eram eleitos, assistimos á ampliação do universo de eleitores).
II - Para os
antigos o conceito era outro. Quando se falava de democracia a imagem que
passava-lhes na cabeça consistia em uma assembleia ou uma praça onde os
cidadãos eram chamados a tomar decisões. A democracia era vista como o poder do
demos e não, como na democracia dos modernos, o poder dos representantes do
demos. Se o demos é a comunidade dos cidadãos, fosse genericamente entendida
como povo, massa, pobres, poder dos muitos, era sempre a comunidades dos
cidadãos que tomava a decisão, nas assembleias. Estava fora de questão a
eleição de representantes para tomarem decisões. As decisões e a tomada das
mesmas eram dos próprios cidadãos.
Na sociedade
ateniense antiga, os gregos dividiam a vida comum em três esferas: a esfera
privada, a oikos, a esfera publica-privada, a agora (o mercado) e a esfera
pública, a eglesia, a esfera da politica e dos assuntos públicos. Entre estas
esferas existiam relações, pois elas eram interdependentes, mas gozavam de
considerável autonomia. No entanto os assuntos públicos tinham de ser assumidos
por todos os cidadãos, sendo os trânsfugas, asperamente criticados, conforme
nos demonstra a oração fúnebre de Péricles, onde são louvados todos os que
participam nos assuntos públicos e considerados inúteis os que não o fazem.
Durante séculos nunca
existiu um conceito unitário de democracia e eleições, como hoje, sendo que a
democracia, para os antigos, não se resumia ao processo eleitoral (embora não o
excluísse) e as eleições eram perfeitamente compatíveis com a monarquia e a
aristocracia, as outras duas formas clássicas de governo. Durante séculos, por
exemplo, foi discutida a questão sobre se o rei deveria assumir o cargo de
forma hereditária ou através de eleições entre os seus pares.
Sendo as
democracias do presente, representativas, às vezes complementadas por formas de
participação popular directa, a democracia dos antigos era directa, às vezes
complementada ou corrigida pela eleição de magistraturas. Exactamente porque a
democracia sempre foi concebida como governo directo do povo e não mediante
representantes do povo, o juízo generalizado sobre esta forma de governo era
negativo. No debate tradicional sobre a melhor forma de governo, a democracia
vinha sempre em último lugar. Hoje é exactamente o contrário. Não existe regime
que não se considere democrático. Se julgarmos pelo modo como os regimes
actuais se autodefinem, concluiríamos (erroneamente) que não existem no mundo
regimes não-democráticos. Quando um golpe militar ou palaciano (como os que
ocorreram recentemente nas Honduras e no Paraguai) depõe um governo eleito, o
objectivo não é o de instalar uma ditadura, mas o de implementar um regime
democrático melhor que o anterior.
III - A prática da
democracia directa é hoje considerada uma Utopia, inaplicável aos grandes
espaços geográficos regionais, nacionais e internacionais, sendo a
representação o único processo considerado razoável de aplicação da democracia.
Não obstante (e contrariando esta tese irreflectida e anti-democrática) existem
diversos mecanismos de participação vigentes nas actuais democracias
representativas. Nos cantões de Glaris, Appenzell e Unterwald, na Suíça a
participação política directa é institucionalizada, o mesmo acontecendo em
alguns estados dos USA. No
continente americano, Equador, Bolívia e Venezuela, deram passos significativos
na participação política directa.
Nas últimas décadas
estabeleceram-se mecanismos de participação política directa, essencialmente a
nível local, como o referendo vinculativo, a iniciativa legislativa popular e a
convocatória para revogação de mandato. Também as novas tecnologias trouxeram a
esta questão novos paradigmas, fazendo cair por terra as teses liberais sobre a
impossibilidade da democracia directa nos grandes espaços geográficos.
Existiram, no
século XX, duas grandes experiências de democracia directa, na Europa: os
Sovietes, durante o período imediato anterior á Revolução Soviética até ao
final do período revolucionário e entrada do processo de estatização
estalinista, pós-bolchevique (entre os sovietes e os bolcheviques existiram
grandes polémicas sobre a forma como o aparelho bolchevique pretendia controlar
a democracia soviética) e os Conselhos Operários, nas décadas de vinte e
primeira metade da década de trinta em grande parte da Europa industrializada.
Estas duas
experiencias proletárias de democracia, não devem ser esquecidas, pois
comportam todo um manancial de conhecimento adquirido e de experiência vivida,
que podem ser de grande utilidade na actualidade e no contexto global do
presente. Os novos ideólogos da democracia directa têm uma tendência algo
suspeita para a amnésia histórica, que se caracteriza por falar do passado
distante, esquecendo o passado recente. Talvez porque se preocupam mais com a
questão do regime do que com a questão do procedimento.
Se observarmos os
mecanismos de participação directa em vigor actualmente nas democracias
representativas, eles são sempre procedimentos participativos, autónomos em
relação ao regime. É esta autonomia que permite á participação política directa
a sua afirmação para além da questão democrática e para lá do regime
democrático e este é, obviamente um ponto em que a repulsa dos teóricos
democráticos se torna evidente, juntando no mesmo alguidar os defensores da
democracia representativa e os da democracia directa. Comungam do mesmo
pressuposto em relação ao regime: a democracia como final da História, o que é,
no mínimo, uma incongruência, que roça, em alguns teóricos mais acérrimos da
democracia directa, a aberração.
A democracia como
regime é o oposto da democracia como procedimento. O regime democrático é o
regime do capital, aquele onde a negociação é norma e onde o capitalismo
encontra o seu habitat ideal para se desenvolver. O procedimento democrático é
o comportamento proletário por excelência, aquele que envolve discussão
exaustiva e frontalidade na abordagem dos problemas. Nele não existem
meias-palavras, nem sublimes retóricas, mas apenas a necessidade de ir ao fundo
das questões, á raiz dos problemas, partindo depois para as soluções possíveis.
São duas culturas políticas opostas, reflexos de dois mundos antagónicos.
IV - Um dos
mecanismos de participação política directa mais utilizados é o referendo. Existem
duas vertentes principais no acto de referendar: o referendo consultivo, que
não oferece nenhum tipo de garantia da aplicação da decisão, é apenas uma
orientação e o referendo vinculativo, que tem capacidade de decisão e que
obriga á aplicação do que for decidido.
O referendo
encontra os seus antecedentes na Republica Romana, com o Plebiscitum, forma de
legitimidade política pontual do Senado Romano, para evitar revoltas plebeias e
permitir que a plebe melhorasse a sua condição, face ao domínio dos Patrícios.
Mais tarde o Plebiscitum estabeleceu-se, também de forma pontual, nas práticas
legislativas de algumas tribos germânicas e também na Nova Inglaterra. Na
França do século XVIII. Napoleão utilizou-o para legitimar constituições e para
anexar Niza e Sabóia, por exemplo.
A excessiva
implementação deste mecanismo na Suíça originou nos últimos tempos algum
descontentamento. Muitos cidadãos suíços criticam o facto de este instrumento
ter sido banalizado e ser utilizado em consultas pouco relevantes e de nulo
interesse público, o que originou uma diminuição do nível de participação, por
cansaço e saturação.
V - A iniciativa
legislativa popular é uma proposta cidadã que recolhe, para sua apresentação,
um número variável de assinaturas – numero estipulado por lei, variável de país
para país – dirigido ao parlamento, para ser incluída na agenda de discussões
parlamentares. O campo de aplicação deste mecanismo é vasto, podendo ser apresentadas
desde reformas de leis até emendas constitucionais.
Um outro mecanismo
é a convocatória para a revogação de mandato, que consiste num plebiscito ou
referendo, pelo qual os cidadãos podem destituir um dirigente político, perante
o incumprimento da agenda política, má gestão pública, corrupção e outros
desvios. Trata-se de uma convocatória, onde são utilizados procedimentos como
os da iniciativa legislativa popular, com recolha de assinaturas para
convocação de um referendo. O único país europeu onde este mecanismo está
institucionalizado é na Suécia. Nos restantes países da Europa a revogação é um
assunto parlamentar, aplicado apenas pelos deputados nas Moções de Censura ou
nas Moções de Confiança.
Na América Latina
este instrumento de política directa é utilizado a nível regional ou local, á
excepção do Equador, que pela Constituição de 1998, institucionaliza este
mecanismo á escala nacional e da Venezuela, onde este mecanismo foi utilizado
em 2004 pela oposição ao governo bolivariano, para destituição de Hugo Chavez,
mas sem sucesso, pois a maioria votou conta a revogação. Nos restantes países
da América Latina, este mecanismo, a nível nacional, é substituído por
petições, como já aconteceu no Brasil com Collor de Melo, que levou a que o
Parlamento Federal e o Supremo Tribunal Constitucional destituíssem o
Presidente.
VI - Existam
bastantes mais mecanismos de participação política directa, mas estes são
exemplos de mecanismos já institucionalizados. É evidente que os bloqueios a
estas práticas são de diversa ordem e se observarmos com atenção, a
institucionalização destes mecanismos são localizados no espaço europeu e no
continente americano (de norte a sul). Nos restantes continentes a
institucionalização destes mecanismo é muito variável.
Na Ásia, a Índia,
por exemplo, tem alguns mecanismos institucionalizados a nível estadual e
local, mas não a nível nacional e é capaz de ser o único pais deste continente
onde estes mecanismos são utilizados com bastante frequência. O Japão e a
Coreia do Sul ensaiam mecanismos relacionados com as convocatórias de revogação
e as iniciativas legislativas populares e em Singapura o referendo pode ser
usado.
Na Oceânia, as
únicas excepções são a Austrália e a Nova Zelândia, que utilizam com frequência
estes mecanismos a nível local, regional e mesmo nacional. Nos restantes países
deste continente estes mecanismos, embora não institucionalizados, são usados a
nível local, remanescentes de um passado pré-colonial.
No continente
africano, estes são mecanismos não utilizados e na maioria dos países não se
prevê a sua institucionalização, até porque nem são previstos nas maiorias das
constituições dos estados africanos. Existem excepções no Norte de África e na
África do Sul, para além de práticas tradicionais das autoridades locais e
comunidades rurais, que em relação a assuntos de âmbito estritamente local
utilizam mecanismos muito específicos, também eles remanescentes das sociedades
pré-coloniais.
VII - Um exemplo de
falência da representatividade é Itália. A manifesta vontade popular de mudança
de política, apresentada nas últimas eleições, não é minimamente correspondida
pelos seus representantes.
Com um Presidente
Quixotesco (o presidente Napolitano apresenta sérios sintomas de esquizofrenia
associada a neuroses diversas, mas todas elas graves e que originam prolongadas
alucinações, que levam o pobre presidente Napolitano a pensar que é presidente
num regime presidencialista e que o Quirinal é o centro de Roma), uma direita
arrogante e que pensa estar acima da lei (Berlusconi com as suas palhaçadas,
próprias dos presidentes dos conselhos de administração, é cada vez mais
arrogante e exigente, pressionando constantemente o neuro-esquizofrénico
Napolitano) e uma esquerda envergonhada que se senta á direita de si própria e
que ambiciona por se sentar sempre á direita num Hemiciclo apenas com cadeiras
do lado direito.
Para além deste
panorama estão os deputados grillistas, uma bancada de circo (a Armata
Brancaleone, como lhes chama Rossana Rossanda, aludindo a uma comédia cinematográfica
dos anos sessenta, de Mário Monicelli) que engloba trapezistas, ilusionistas e
palhaços, que sentam-se em qualquer lado do hemiciclo, nem que seja no chão.
Para o fim ficam os tradicionais agitadores neo-fascistas, mais a direita
extrema da Liga Norte e outros querubins menos extremistas, como os radicais e
outras traças.
O jogo destes representantes
do povo coloca em causa o regime democrático e abala profundamente os seus
alicerces. A falência da democracia representativa não é um momento de alegria,
pois quando os regimes chegam a estas situações pantanosas, a demagogia
prevalece e a cura apresentada pelos curandeiros faz o mal parecer um remédio.
Não é um momento de alegria porque não existem mecanismos de afirmação da
decisão popular e o Estado cai na mão do primeiro que o apanhar, como acontece
com as pombinhas, numa canção tradicional portuguesa.
Por enquanto os
representantes da vontade popular entretêm-se em jogos para débeis mentais e os
tecnocratas são apresentados como os salvattori, que estão muito acima, pelo
seu saber, das decisões dos eleitores. Muitos destes tecnocratas tem
comportamento de condottieri (é para isso que os seus patrões, os monopólios
generalizados, lhes pagam) e aguardam pacientemente pela altura de prescindir
do papel do eleitorado, tal como acontece nas empresas de onde provêm, em que
os trabalhadores são dispensados aos milhares, porque já não fazem falta, assim
decidiram os novos iluminatti do mundo empresarial e os feiticeiros do sistema
financeiro.
VIII - Da Bolívia
chegam ecos de uma situação inversa. Neste país, que atravessa um profundo
processo de transformação, os mecanismos de participação directa são efectivos
e dinâmicos. É evidente que muito há a fazer neste sentido, mas a autonomia das
organizações populares augura um processo firme de institucionalização a médio
prazo. Um exemplo elucidativo da importância da participação directa no
processo de transformação em curso no país, foi o recente anteprojecto de lei
do novo Código Niña, Niño, Adolescente, apresentado pela Ministra da Justiça do
Estado Plurinacional da Bolívia, ao Presidente Evo Morales.
Este Código está a
ser elaborado desde 2008 e contou com a participação de trabalhadores
adolescentes, a nível nacional, através de organizações como a UNATSCO (Union
de Niñas, Niños y Adolescentes Trabajadores de Cochabamba), num processo
exaustivo de consulta, que levou os sujeitos objecto da lei, a apresentarem
propostas e a discutir passo a passo o documento. O Código garante os direitos
dos menores e estabelece a responsabilidade penal da juventude.
Segundo o
Ministério do Trabalho, cerca de 850 mil menores (28% da população de menor
idade), entre os 5 e os 17 anos, trabalham, apesar de protegidos pela
legislação sobre o trabalho infantil. Muitas destas crianças abandonam a
escola, pois não têm condições para estudar. O novo Código, após profunda
discussão e depois de ser enriquecido com as propostas dos próprios, é um
instrumento indispensável na resolução deste grave problema social.
No passado dia 12
de Abril, na sessão plenária da Câmara de Deputados da Assembleia Legislativa
Plurinacional da Bolívia, menores vindos de todos os departamentos do país,
delegados pelas suas organizações, aprovaram por unanimidade uma Minuta de
Comunicação que recomenda ao órgão legislativo e ao órgão executivo a prioridade
das políticas públicas em defesa dos direitos dos menores.
Este
estabelecimento de relações entre os representantes e os cidadãos, os
mecanismos que introduzem a participação nos órgãos legislativos, são sinais
dos ventos que sopram naquelas regiões. Ventos refrescantes e tonificantes, ao
contrário dos bafos bolorentos que nos empestam a vida nos Estados de Direito,
cada vez mais transformados em coutadas dos senhores que se acham acima da lei,
os proprietários que nos desprezam, a nós, os proletários, porque nada temos a
não ser a nossa dignidade e inteligência.
Fontes
Font, Nuria. Democracia
y Participación Ciudadana; Mediterránea, 1998
Bobbio, Norberto Teoria
Generale della Politica; Giulio Einaudi Editore, Torino, 1999.
Sartori, G. The Theory of Democracy Revisited; Chatam
House Publishers, 1987.
Kelsen, Hans La
democracia; il Mulino, Bollogna, 1984
Finley, Moses
Democracy Ancient and Modern; Rutgers University Press, New Brunswick, 1972
Aguilera, Celia Castellano
¿Utopía?; http://www.rebelion.org
Rossanda, Rossana http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=5850#
Morsolin,Cristiano http://www.opinion.com.bo/opinion/informe_especial/2012/0617/suplementos.php
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