segunda-feira, 15 de abril de 2013

REPRESENTATIVIDADE E PARTICIPAÇÃO: REGIME OU PROCEDIMENTO




Rui Peralta, Luanda

I - Sempre que se fala de democracia, a imagem que nos vem á cabeça é a de uma longa fila de cidadãos eleitores, que aguardam pacientemente a sua vez para depositar o voto na urna eleitoral. O direito a exercer e o dever a cumprir, neste ritual que é o momento eleitoral, é o de eleger os representantes (não o de decidir, mas o de eleger quem vai decidir).

Alguns teóricos actuais, como Hans Kelsen (ver Kelsen, Hans) consideram as eleições como um método de selecção de líderes. Nada mais incorrecto. Os líderes são seleccionados entre as elites e apresentados á aceitação popular. As eleições servem, quanto muito, não para os seleccionar mas para medir a sua aceitação.

Se analisarmos os processos de democratização ocorridos no século XIX, nos países que hoje se consideram democráticos, concluiremos que estamos na presença de progressivas ampliações do direito de eleger os representantes, ou então observamos processos em que os direitos de eleição foram ampliados a outros sectores da população (caso das ditas Câmaras Altas, por exemplo, cujos membros eram nomeados ou eleitos por um pequeno e restrito colégio eleitoral, representando o processo de democratização uma transição da nomeação para a eleições e nos casos em que já eram eleitos, assistimos á ampliação do universo de eleitores).

II - Para os antigos o conceito era outro. Quando se falava de democracia a imagem que passava-lhes na cabeça consistia em uma assembleia ou uma praça onde os cidadãos eram chamados a tomar decisões. A democracia era vista como o poder do demos e não, como na democracia dos modernos, o poder dos representantes do demos. Se o demos é a comunidade dos cidadãos, fosse genericamente entendida como povo, massa, pobres, poder dos muitos, era sempre a comunidades dos cidadãos que tomava a decisão, nas assembleias. Estava fora de questão a eleição de representantes para tomarem decisões. As decisões e a tomada das mesmas eram dos próprios cidadãos.

Na sociedade ateniense antiga, os gregos dividiam a vida comum em três esferas: a esfera privada, a oikos, a esfera publica-privada, a agora (o mercado) e a esfera pública, a eglesia, a esfera da politica e dos assuntos públicos. Entre estas esferas existiam relações, pois elas eram interdependentes, mas gozavam de considerável autonomia. No entanto os assuntos públicos tinham de ser assumidos por todos os cidadãos, sendo os trânsfugas, asperamente criticados, conforme nos demonstra a oração fúnebre de Péricles, onde são louvados todos os que participam nos assuntos públicos e considerados inúteis os que não o fazem.

Durante séculos nunca existiu um conceito unitário de democracia e eleições, como hoje, sendo que a democracia, para os antigos, não se resumia ao processo eleitoral (embora não o excluísse) e as eleições eram perfeitamente compatíveis com a monarquia e a aristocracia, as outras duas formas clássicas de governo. Durante séculos, por exemplo, foi discutida a questão sobre se o rei deveria assumir o cargo de forma hereditária ou através de eleições entre os seus pares.

Sendo as democracias do presente, representativas, às vezes complementadas por formas de participação popular directa, a democracia dos antigos era directa, às vezes complementada ou corrigida pela eleição de magistraturas. Exactamente porque a democracia sempre foi concebida como governo directo do povo e não mediante representantes do povo, o juízo generalizado sobre esta forma de governo era negativo. No debate tradicional sobre a melhor forma de governo, a democracia vinha sempre em último lugar. Hoje é exactamente o contrário. Não existe regime que não se considere democrático. Se julgarmos pelo modo como os regimes actuais se autodefinem, concluiríamos (erroneamente) que não existem no mundo regimes não-democráticos. Quando um golpe militar ou palaciano (como os que ocorreram recentemente nas Honduras e no Paraguai) depõe um governo eleito, o objectivo não é o de instalar uma ditadura, mas o de implementar um regime democrático melhor que o anterior.         

III - A prática da democracia directa é hoje considerada uma Utopia, inaplicável aos grandes espaços geográficos regionais, nacionais e internacionais, sendo a representação o único processo considerado razoável de aplicação da democracia. Não obstante (e contrariando esta tese irreflectida e anti-democrática) existem diversos mecanismos de participação vigentes nas actuais democracias representativas. Nos cantões de Glaris, Appenzell e Unterwald, na Suíça a participação política directa é institucionalizada, o mesmo acontecendo em alguns estados dos USA. No continente americano, Equador, Bolívia e Venezuela, deram passos significativos na participação política directa.

Nas últimas décadas estabeleceram-se mecanismos de participação política directa, essencialmente a nível local, como o referendo vinculativo, a iniciativa legislativa popular e a convocatória para revogação de mandato. Também as novas tecnologias trouxeram a esta questão novos paradigmas, fazendo cair por terra as teses liberais sobre a impossibilidade da democracia directa nos grandes espaços geográficos.

Existiram, no século XX, duas grandes experiências de democracia directa, na Europa: os Sovietes, durante o período imediato anterior á Revolução Soviética até ao final do período revolucionário e entrada do processo de estatização estalinista, pós-bolchevique (entre os sovietes e os bolcheviques existiram grandes polémicas sobre a forma como o aparelho bolchevique pretendia controlar a democracia soviética) e os Conselhos Operários, nas décadas de vinte e primeira metade da década de trinta em grande parte da Europa industrializada.

Estas duas experiencias proletárias de democracia, não devem ser esquecidas, pois comportam todo um manancial de conhecimento adquirido e de experiência vivida, que podem ser de grande utilidade na actualidade e no contexto global do presente. Os novos ideólogos da democracia directa têm uma tendência algo suspeita para a amnésia histórica, que se caracteriza por falar do passado distante, esquecendo o passado recente. Talvez porque se preocupam mais com a questão do regime do que com a questão do procedimento.

Se observarmos os mecanismos de participação directa em vigor actualmente nas democracias representativas, eles são sempre procedimentos participativos, autónomos em relação ao regime. É esta autonomia que permite á participação política directa a sua afirmação para além da questão democrática e para lá do regime democrático e este é, obviamente um ponto em que a repulsa dos teóricos democráticos se torna evidente, juntando no mesmo alguidar os defensores da democracia representativa e os da democracia directa. Comungam do mesmo pressuposto em relação ao regime: a democracia como final da História, o que é, no mínimo, uma incongruência, que roça, em alguns teóricos mais acérrimos da democracia directa, a aberração.

A democracia como regime é o oposto da democracia como procedimento. O regime democrático é o regime do capital, aquele onde a negociação é norma e onde o capitalismo encontra o seu habitat ideal para se desenvolver. O procedimento democrático é o comportamento proletário por excelência, aquele que envolve discussão exaustiva e frontalidade na abordagem dos problemas. Nele não existem meias-palavras, nem sublimes retóricas, mas apenas a necessidade de ir ao fundo das questões, á raiz dos problemas, partindo depois para as soluções possíveis. São duas culturas políticas opostas, reflexos de dois mundos antagónicos. 

IV - Um dos mecanismos de participação política directa mais utilizados é o referendo. Existem duas vertentes principais no acto de referendar: o referendo consultivo, que não oferece nenhum tipo de garantia da aplicação da decisão, é apenas uma orientação e o referendo vinculativo, que tem capacidade de decisão e que obriga á aplicação do que for decidido.

O referendo encontra os seus antecedentes na Republica Romana, com o Plebiscitum, forma de legitimidade política pontual do Senado Romano, para evitar revoltas plebeias e permitir que a plebe melhorasse a sua condição, face ao domínio dos Patrícios. Mais tarde o Plebiscitum estabeleceu-se, também de forma pontual, nas práticas legislativas de algumas tribos germânicas e também na Nova Inglaterra. Na França do século XVIII. Napoleão utilizou-o para legitimar constituições e para anexar Niza e Sabóia, por exemplo.

A excessiva implementação deste mecanismo na Suíça originou nos últimos tempos algum descontentamento. Muitos cidadãos suíços criticam o facto de este instrumento ter sido banalizado e ser utilizado em consultas pouco relevantes e de nulo interesse público, o que originou uma diminuição do nível de participação, por cansaço e saturação.

V - A iniciativa legislativa popular é uma proposta cidadã que recolhe, para sua apresentação, um número variável de assinaturas – numero estipulado por lei, variável de país para país – dirigido ao parlamento, para ser incluída na agenda de discussões parlamentares. O campo de aplicação deste mecanismo é vasto, podendo ser apresentadas desde reformas de leis até emendas constitucionais.

Um outro mecanismo é a convocatória para a revogação de mandato, que consiste num plebiscito ou referendo, pelo qual os cidadãos podem destituir um dirigente político, perante o incumprimento da agenda política, má gestão pública, corrupção e outros desvios. Trata-se de uma convocatória, onde são utilizados procedimentos como os da iniciativa legislativa popular, com recolha de assinaturas para convocação de um referendo. O único país europeu onde este mecanismo está institucionalizado é na Suécia. Nos restantes países da Europa a revogação é um assunto parlamentar, aplicado apenas pelos deputados nas Moções de Censura ou nas Moções de Confiança.

Na América Latina este instrumento de política directa é utilizado a nível regional ou local, á excepção do Equador, que pela Constituição de 1998, institucionaliza este mecanismo á escala nacional e da Venezuela, onde este mecanismo foi utilizado em 2004 pela oposição ao governo bolivariano, para destituição de Hugo Chavez, mas sem sucesso, pois a maioria votou conta a revogação. Nos restantes países da América Latina, este mecanismo, a nível nacional, é substituído por petições, como já aconteceu no Brasil com Collor de Melo, que levou a que o Parlamento Federal e o Supremo Tribunal Constitucional destituíssem o Presidente.

VI - Existam bastantes mais mecanismos de participação política directa, mas estes são exemplos de mecanismos já institucionalizados. É evidente que os bloqueios a estas práticas são de diversa ordem e se observarmos com atenção, a institucionalização destes mecanismos são localizados no espaço europeu e no continente americano (de norte a sul). Nos restantes continentes a institucionalização destes mecanismo é muito variável.

Na Ásia, a Índia, por exemplo, tem alguns mecanismos institucionalizados a nível estadual e local, mas não a nível nacional e é capaz de ser o único pais deste continente onde estes mecanismos são utilizados com bastante frequência. O Japão e a Coreia do Sul ensaiam mecanismos relacionados com as convocatórias de revogação e as iniciativas legislativas populares e em Singapura o referendo pode ser usado.

Na Oceânia, as únicas excepções são a Austrália e a Nova Zelândia, que utilizam com frequência estes mecanismos a nível local, regional e mesmo nacional. Nos restantes países deste continente estes mecanismos, embora não institucionalizados, são usados a nível local, remanescentes de um passado pré-colonial.

No continente africano, estes são mecanismos não utilizados e na maioria dos países não se prevê a sua institucionalização, até porque nem são previstos nas maiorias das constituições dos estados africanos. Existem excepções no Norte de África e na África do Sul, para além de práticas tradicionais das autoridades locais e comunidades rurais, que em relação a assuntos de âmbito estritamente local utilizam mecanismos muito específicos, também eles remanescentes das sociedades pré-coloniais.           
        
VII - Um exemplo de falência da representatividade é Itália. A manifesta vontade popular de mudança de política, apresentada nas últimas eleições, não é minimamente correspondida pelos seus representantes.

Com um Presidente Quixotesco (o presidente Napolitano apresenta sérios sintomas de esquizofrenia associada a neuroses diversas, mas todas elas graves e que originam prolongadas alucinações, que levam o pobre presidente Napolitano a pensar que é presidente num regime presidencialista e que o Quirinal é o centro de Roma), uma direita arrogante e que pensa estar acima da lei (Berlusconi com as suas palhaçadas, próprias dos presidentes dos conselhos de administração, é cada vez mais arrogante e exigente, pressionando constantemente o neuro-esquizofrénico Napolitano) e uma esquerda envergonhada que se senta á direita de si própria e que ambiciona por se sentar sempre á direita num Hemiciclo apenas com cadeiras do lado direito.

Para além deste panorama estão os deputados grillistas, uma bancada de circo (a Armata Brancaleone, como lhes chama Rossana Rossanda, aludindo a uma comédia cinematográfica dos anos sessenta, de Mário Monicelli) que engloba trapezistas, ilusionistas e palhaços, que sentam-se em qualquer lado do hemiciclo, nem que seja no chão. Para o fim ficam os tradicionais agitadores neo-fascistas, mais a direita extrema da Liga Norte e outros querubins menos extremistas, como os radicais e outras traças.

O jogo destes representantes do povo coloca em causa o regime democrático e abala profundamente os seus alicerces. A falência da democracia representativa não é um momento de alegria, pois quando os regimes chegam a estas situações pantanosas, a demagogia prevalece e a cura apresentada pelos curandeiros faz o mal parecer um remédio. Não é um momento de alegria porque não existem mecanismos de afirmação da decisão popular e o Estado cai na mão do primeiro que o apanhar, como acontece com as pombinhas, numa canção tradicional portuguesa.
     
Por enquanto os representantes da vontade popular entretêm-se em jogos para débeis mentais e os tecnocratas são apresentados como os salvattori, que estão muito acima, pelo seu saber, das decisões dos eleitores. Muitos destes tecnocratas tem comportamento de condottieri (é para isso que os seus patrões, os monopólios generalizados, lhes pagam) e aguardam pacientemente pela altura de prescindir do papel do eleitorado, tal como acontece nas empresas de onde provêm, em que os trabalhadores são dispensados aos milhares, porque já não fazem falta, assim decidiram os novos iluminatti do mundo empresarial e os feiticeiros do sistema financeiro.   

VIII - Da Bolívia chegam ecos de uma situação inversa. Neste país, que atravessa um profundo processo de transformação, os mecanismos de participação directa são efectivos e dinâmicos. É evidente que muito há a fazer neste sentido, mas a autonomia das organizações populares augura um processo firme de institucionalização a médio prazo. Um exemplo elucidativo da importância da participação directa no processo de transformação em curso no país, foi o recente anteprojecto de lei do novo Código Niña, Niño, Adolescente, apresentado pela Ministra da Justiça do Estado Plurinacional da Bolívia, ao Presidente Evo Morales.

Este Código está a ser elaborado desde 2008 e contou com a participação de trabalhadores adolescentes, a nível nacional, através de organizações como a UNATSCO (Union de Niñas, Niños y Adolescentes Trabajadores de Cochabamba), num processo exaustivo de consulta, que levou os sujeitos objecto da lei, a apresentarem propostas e a discutir passo a passo o documento. O Código garante os direitos dos menores e estabelece a responsabilidade penal da juventude.

Segundo o Ministério do Trabalho, cerca de 850 mil menores (28% da população de menor idade), entre os 5 e os 17 anos, trabalham, apesar de protegidos pela legislação sobre o trabalho infantil. Muitas destas crianças abandonam a escola, pois não têm condições para estudar. O novo Código, após profunda discussão e depois de ser enriquecido com as propostas dos próprios, é um instrumento indispensável na resolução deste grave problema social.

No passado dia 12 de Abril, na sessão plenária da Câmara de Deputados da Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia, menores vindos de todos os departamentos do país, delegados pelas suas organizações, aprovaram por unanimidade uma Minuta de Comunicação que recomenda ao órgão legislativo e ao órgão executivo a prioridade das políticas públicas em defesa dos direitos dos menores.

Este estabelecimento de relações entre os representantes e os cidadãos, os mecanismos que introduzem a participação nos órgãos legislativos, são sinais dos ventos que sopram naquelas regiões. Ventos refrescantes e tonificantes, ao contrário dos bafos bolorentos que nos empestam a vida nos Estados de Direito, cada vez mais transformados em coutadas dos senhores que se acham acima da lei, os proprietários que nos desprezam, a nós, os proletários, porque nada temos a não ser a nossa dignidade e inteligência. 
    
Fontes
Font, Nuria. Democracia y Participación Ciudadana; Mediterránea, 1998
Bobbio, Norberto Teoria Generale della Politica; Giulio Einaudi Editore, Torino, 1999.
Sartori, G.  The Theory of Democracy Revisited; Chatam House Publishers, 1987.
Kelsen, Hans La democracia; il Mulino, Bollogna, 1984
Finley, Moses Democracy Ancient and Modern; Rutgers University Press, New Brunswick, 1972
Aguilera, Celia Castellano ¿Utopía?; http://www.rebelion.org

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