Fernando Santos –
Jornal de Notícias, opinião
A crise económica -
e, por arrasto, a social - está a remeter uma porção substancial de portugueses
para um gueto de pobreza.
Floresce entretanto
a crise de valores, e não apenas patente nas patetices do momento - o efeito
manada das imbecilidades das praxes e o esmagamento das audiências televisivas
pelo maior telelixo alguma vez emitido em Portugal - o "Casa dos segredos,
desafio final 2", maná de audiências para a TVI sedimentado na falta de
escrúpulos e graças ao mais reles grupo de analfabetos alguma vez junto na
pantalha, para gáudio de uma legião de fãs da ordinarice e paizinhos ululantes
de orgulho por terem dado à luz descendentes tão mal-educados. Sim, vale a pena
assistir a tanta ordinarice por metro quadrado para se ter consciência de como
não se deve ser.
Sem reticências: a
crise moral está para as relações humanas no país como a doença do escaravelho
para as palmeiras: alastra, corrói e tem tudo para matar, pelo menos a
esperança de um melhor futuro.
Os comportamentos
nas praxes ou no reality show são paradigmáticos de um dia a dia feito, na rua
de cada um de nós, de exemplos flagrantes da mais abominável falta de respeito
pelo ser humano. São casos comezinhos, sim, mas preocupantes.
Três exemplos
vivenciados, todos no âmbito do mercado de trabalho. Todos, curiosamente, na
área da restauração, essa mesmo, a da choraminguice pelos efeitos do IVA a 23%.
1. Uma das muitas
chafaricas feitas cafés no país. Entrada e saída permanente de esforçados
feitos funcionários. Movimento principal à hora do almoço. Cliente assíduo
pergunta ao dono do tasco se é eficiente o mais recente jeitoso que tenta
equilibrar a bandeja. O homem diz que sim. E quanto ganha? Resposta na ponta da
língua, com o ar mais normal do Mundo: tem direito a almoço! (Três dias depois,
nem vê-lo. Claro.)
2. Restaurante
afamado, construído na base de uma gerência muito relações públicas e
funcionários simpáticos - cada vez mais gentis para tentarem receber o ordenado
mínimo. Têm vários meses de salários em atraso. Comem e calam. O patrão, esse,
feito empreendedor, rodeia-se de amigos, faz festas no espaço, usa os serviçais
a seu bel-prazer e estes, num momento de juízo perfeito, acabam por bater com a
porta. Cansados. No bolso levam créditos para receber nas calendas gregas.
Trocados são por outros condenados ao ciclo vicioso.
3. Dois
funcionários e um casal explorador de restaurante especializado num certo
prato. Qualidade indiscutível. O cliente degusta os produtos e na hora de pagar
a conta assume-se a patroa; à distância e nas costas da dita-cuja, o empregado
faz um sinal de longe, adivinhando-se o "não, não, não". Não, o quê?
Desfaz--se entre dentes o enigma enquanto a senhora vai fazer o troco das duas
notas de 20 euros: "Não deixe ficar gorjeta! Não é para mim. A tipa fica
com ela, embora não me pague o ordenado a horas". Está dito. E cumprido.
Aqui chegados,
impõe-se aclarar: os casos são da área da restauração, mas podem ser replicados
sem dificuldades para outros setores de atividade. Há excelentes empresários de
todos os ramos, não se duvide; mas não faltam candidatos a imitadores da
exploração ao jeito do Bangladesh.
A crise resulta num
esfarelamento sequencial da sociedade, abrindo leque ao debate sobre os efeitos
do desemprego e a qualidade dos novos - e poucos - postos de trabalho em
criação.
Para onde vamos?
Amanhã, o Governo
reúne-se com os parceiros sociais para debater - fórmula eufemística de
apresentar decisões tomadas - seis pontos passíveis de elencar razões para o
despedimento.
Assim vai o país.
Sem comentários:
Enviar um comentário