Fernanda
Câncio – Diário de Notícias, opinião
Na
terça-feira, foi tornada pública uma carta aberta ao presidente de Angola,
solicitando-lhe que "desista do processo" contra o jornalista Rafael
Marques, condenado em 28 de maio a seis meses de prisão com pena suspensa por
denúncia caluniosa e difamação num processo instaurado por sete generais da
nomenclatura político-económica angolana e relacionado com o seu
livro Diamantes de Sangue, que descreve violações de direitos humanos nos
territórios diamantíferos dominados pelos ditos generais. Nos 71 signatários,
sobretudo anglo-saxónicos (nem um português), incluem-se o realizador americano
Steve McQueen (autor de 12 anos Escravo), a empresa joalheira Tiffany e
mais duas do mesmo ramo, o secretário-geral dos Repórteres sem Fronteiras, o
fundador da Wikipédia e Mariane Pearl, a viúva do jornalista Daniel Pearl,
raptado e decapitado no Paquistão em 2002.
Há
vários motivos para esta carta ser notícia em Portugal. A
notoriedade dos signatários, desde logo, assim como referir-se a Angola e a um
caso relacionado com liberdade de expressão e informação - assunto tão caro aos
media nacionais, ultimamente em guerra contra o que apelidam de tentativa de
censura na cobertura das campanhas - e com um livro publicado por uma editora
portuguesa, a Tinta da China. Mas igualmente relevante é o facto de solicitar a
José Eduardo dos Santos que desista de um processo no qual não é queixoso. Em
Angola, como em Portugal, a Constituição estatui a separação entre poder
executivo e judicial, o que significa que o PR só pode comutar penas ou
conceder indultos. Ou seja, pode amnistiar Rafael Marques, mas não "deixar
cair" processos, que é o que a carta lhe pede. A situação, aliás, é tanto
mais bizarra quando os autores da queixa tomaram a iniciativa de dela desistir,
num acordo amplamente noticiado com o arguido - levando-o a prescindir de
apresentar testemunhas, para a seguir ser surpreendido por uma condenação que
lhe impõe também retirar o livro de circulação.
Ao
apelar ao presidente para que "se assegure de que os princípios da lei
internacional são aplicados durante o processo de recurso" quando ele está
impedido, pela lei do seu país, de interferir na justiça, a carta assume e
propala aquilo mesmo que Rafael Marques se tem empenhado em denunciar nos
últimos 20 anos: a autocracia de Dos Santos e do seu círculo. Uma ironia mais
num processo que levou o governo americano (o português moita) a dizer-se
"profundamente dececionado com a condenação de Rafael Marques" e a UE
a exprimir desejo de que a sentença seja revista, aumentando desmedidamente a
notoriedade do jornalista e do seu livro. Disponibilizado gratuitamente pela
Tinta da China (a qual já fez saber que não tenciona deixar de o publicar, pois
a justiça angolana não tem jurisdição em Portugal) na net, Diamantes de
Sangue contabilizou mais de 65 mil downloads na versão
portuguesa, estando desde há uma semana e meia também acessível em inglês.
Sem comentários:
Enviar um comentário