Mafalda Santos –
Expresso, opinião
Sábado à noite e um
frio de rachar em Lisboa. Entre a azáfama de quem sai de casa, quente mas
resistente e entusiasmado por uma noite de convívio e jantar entre amigos, o
contraste de quem, pacificamente, já se encontra no seu espaço, dobrando a
roupa pacatamente, alheio a tudo em seu redor, como se estivesse na privacidade
proporcionada por paredes que se ergueu. Ali, mesmo a meio da Rua da Escola
Politécnica, perto da Procuradoria-Geral da República e a escassos metros de
uma das zonas mais "in" da cidade de Lisboa, o Príncipe Real, um
homem dobrava as suas camisas com tranquilidade, encostado ao vão de um prédio,
com os escassos pertences aos pés. Punho com punho, encostados ao peito, como
se o facto da ausência de vincos na pouca roupa que possui fosse um brio que se
faz questão por manter. Um resquício de dignidade, que essa, por mais miséria
que se tenha na vida, pode sempre perdurar na grandeza dos gestos simples. Na
altura, quando passei reparei nele mas não lhe prestei a devida atenção. A cena
da camisa prendeu-me o olhar mas não o suficiente para me pôr a pensar. Foi só
no regresso, quando o frio da madrugada gelava as mãos e acelerava o passo até
ao carro, que voltei a deparar-me com a sua presença, deitado sobre a pedra
fria do degrau do passeio, enrolado em cobertores. Foi aí que voltei no tempo -
que nem analepse - e voltei a vê-lo, de cigarro no canto da boca, a dobrar os
punhos da camisa encostada ao peito.
Lembrei-me dele
escassas horas antes, assim como me lembrei de uma fotografia que vi na semana
passada, de um casal sem-abrigo cujo sítio onde dorme se situa no vão de um
prédio em plena Avenida da Liberdade. Ali, onde o luxo impera em todo o seu
esplendor e as grandes marcas abrem lojas onde nem nos atrevemos a entrar, um
casal montou o espaço que lhe é possível ter e fez dele aquilo que mais próximo
tem de poder chamar de "casa". Um cobertor no chão define o leito e
serve de cama, aos seus pés um tapete, onde residem um naperon, um terço e um
vaso de flores. De plástico, mas flores, que sempre foram símbolo de beleza.
Encostados a uma parede os sacos com o que estas vidas portáteis permitem
carregar, ordeiramente dispostos, perfeitamente arrumados, que uma casa mesmo
pobre quer-se limpa e ordeira.
Poderia ser um
cenário de uma peça de teatro vanguardista ou puro revivalismo kitsch, tão em
voga atualmente, mas é a realidade ao alcance dos nossos olhos. A foto, captada
por uma figura pública da nossa praça tornou-se viral, gerando a compaixão de
todos os que se cruzavam com ela. Há algo de belo e trágico naquela imagem. A
beleza de querer continuar a ter uma vida "o mais normal" possível
dada a inexistência de condições. A miséria assumida sem pudores com
apontamentos decorativos, exposta perante terceiros, que passam e ignoram, que
comove e arrepia.
Pensei que a
dignidade hoje em dia ainda é algo que vale a muita gente mas que não nos enche
a boca ou mata a fome, não nos garante uma cama quente numa noite fria e que
ainda nos questiona, hesitante, como se não fosse suficiente: afinal somos
pobres ou andamos a fingir?
Escreve à
terça-feira
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