Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Estamos perante a
chantagem para um golpe constitucional. Ela manifesta-se numa pressão sobre o
Tribunal Constitucional, sem precedentes desde a sua criação. Essa pressão é
interna e externa, vinda do governo, ou, com a conivência deste, de
instituições europeias e de outras nações. Ela não se baseia num debate interno
legitimo em qualquer democracia, sobre a constitucionalidade ou
inconstitucionalidade das medidas propostas pelo governo no Orçamento de 2014.
A interpretação da Constituição não é uma ciência exata e até pode corresponder
a diferentes perspetivas políticas. O apelo é outro: que o TC ignore as suas
funções e, independentemente da constitucionalidade das normas propostas e da
coerência com decisões recentes do tribunal sobre normas semelhantes, não crie
entraves à sua aplicação. Ou seja, que, vivendo o País num momento de
emergência económica, se instale o estado de exceção constitucional.
Pode haver
interpretações diferenciadas sobre a constitucionalidade de determinada norma.
O que não pode haver é dúvidas sobre o primado da lei, começando pela lei
fundamental do país, sobre os condicionalismos políticos e económicos de cada
momento. No momento em que pusermos em causa a validade da Constituição e o
papel do Tribunal Constitucional de fiscalizador rigoroso do seu cumprimento,
independentemente doutras considerações políticas, económicas e financeiras,
estaremos a subverter o Estado de Direito democrático.
Esta chantagem,
repetida por quase todas as instituições que, de alguma forma, têm poder sobre
o país, e trabalhada através duma dramatização extrema, surge sempre como uma
simples e conveniente constatação de factos. Explica-se que, num momento em que
tudo está excelente e até poderemos ir aos mercados sem ajuda (em delírio), um
chumbo parcial ao orçamento vindo do Tribunal Constitucional tornaria o segundo
resgate inevitável, com as respectivas e trágicas consequências para o país.
Esta afirmação, repetida até à náusea, parte de dois pressupostos errados.
O primeiro é de
forma e é simples de explicar: se várias medidas forem consideradas
inconstitucionais e isso obrigar a outras soluções, isso não resultará da
decisão do TC mas da incapacidade do governo em cumprir os acordos com a troika
respeitando a lei. O TC apenas decreta a inconstitucionalidade, não é
responsável por ela. Os limites da ação do governo são os da lei, não são os da
troika. Governar em violação da Constituição não pode sequer ser considerada
uma hipótese. Muito menos uma inevitabilidade. Isto não muda as consequências
do chumbo, se ele vier a existir, mas muda os responsáveis pelo impasse criado
e até as conclusões políticas a tirar. Uma pode ser esta: é impossível aplicar
as medidas propostas pela troika num país onde o Estado de Direito Democrático
esteja em funcionamento pleno. Outra pode ser mais imediata: é por decisão do
governo que os limites da Constituição não são usados como arma negocial com a troika.
Pelo contrário, é a troika que é usada como forma de pressão para não cumprir a
Constituição ou vir a revê-la. É uma escolha política pela qual só o governo, e
não o TC, pode ser responsabilizado.
O segundo tem a ver
com a interpretação da realidade. O debate sobre a ida aos mercados, o programa
cautelar e o segundo resgate é perturbado por inúmeras cortinas de fumo em que
as palavras parecem valer mais do que o seu conteúdo. Não é seguro que haja
enorme diferença entre um segundo resgate e um programa cautelar, até porque
desconhecemos quase em absoluto os contornos da segunda alternativa. Sabemos
que, das duas uma: ou a Irlanda não a quis, por isso implicar condições
demasiado negativas para o país, ou a Finlândia e a Alemanha não a aceitaram,
por implicar novos encargos financeiros. A este assunto voltarei, espero, ainda
esta semana. Mas seja qual for a resposta, uma diz-nos que o programa cautelar
não é aconselhável e outra que não é provável. Exatamente as mesmas questões
que se levantam em relação a um segundo resgate.
Na verdade,
parecem-me evidentes duas coisas: que a solução a implementar depois de junho
depende mais da vontade política das instituições europeias e da Alemanha do
que de qualquer acontecimento nacional e que as diferenças entre o segundo
resgate e o programa cautelar podem ser meramente de grau. Sendo certo que não
estamos, nem estaremos daqui a seis meses, preparados para regressar aos
mercados, também nada nos diz que não venhamos a ser atirados para eles. Piores
do que quando de lá saímos. Tudo isto, independentemente da decisão do TC.
Claro que ao governo interessa a dramatização. Até para, caso haja um cumbo,
poder responsabilizar outros pelo mau desfecho de três anos de austeridade,
seja ele a ida em péssimas condições para os mercados, o programa cautelar ou o
segundo resgate.
Seja qual for o fim
desta história, é condição para o nosso presente e futuro em democracia que
cada um cumpra as suas funções. E ao Tribunal Constitucional, cujos juízes,
como seres humanos, não hão de ser complemente imunes à brutal pressão que
estão a sofrer, cabe apenas e só olhar para o orçamento e verificar da sua
constitucionalidade. É ao governo e à Assembleia da República que cabe
apresentar e aprovar orçamentos dentro da lei, ter alternativas para a
possibilidade deles serem considerados inconstitucionais ou aproveitar os
limites da Constituição para negociar melhores condições com a troika. É em São
Bento e não no Palácio Ratton que estão os nossos problemas. E só de lá podem
vir as soluções. E só para lá podem ir as responsabilidades.
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Expresso
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