terça-feira, 19 de novembro de 2013

Portugal: POR UM ESTADO DE EXCEÇÃO CONSTITUCIONAL

 

Daniel Oliveira – Expresso, opinião
 
Estamos perante a chantagem para um golpe constitucional. Ela manifesta-se numa pressão sobre o Tribunal Constitucional, sem precedentes desde a sua criação. Essa pressão é interna e externa, vinda do governo, ou, com a conivência deste, de instituições europeias e de outras nações. Ela não se baseia num debate interno legitimo em qualquer democracia, sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das medidas propostas pelo governo no Orçamento de 2014. A interpretação da Constituição não é uma ciência exata e até pode corresponder a diferentes perspetivas políticas. O apelo é outro: que o TC ignore as suas funções e, independentemente da constitucionalidade das normas propostas e da coerência com decisões recentes do tribunal sobre normas semelhantes, não crie entraves à sua aplicação. Ou seja, que, vivendo o País num momento de emergência económica, se instale o estado de exceção constitucional.
 
Pode haver interpretações diferenciadas sobre a constitucionalidade de determinada norma. O que não pode haver é dúvidas sobre o primado da lei, começando pela lei fundamental do país, sobre os condicionalismos políticos e económicos de cada momento. No momento em que pusermos em causa a validade da Constituição e o papel do Tribunal Constitucional de fiscalizador rigoroso do seu cumprimento, independentemente doutras considerações políticas, económicas e financeiras, estaremos a subverter o Estado de Direito democrático.
 
Esta chantagem, repetida por quase todas as instituições que, de alguma forma, têm poder sobre o país, e trabalhada através duma dramatização extrema, surge sempre como uma simples e conveniente constatação de factos. Explica-se que, num momento em que tudo está excelente e até poderemos ir aos mercados sem ajuda (em delírio), um chumbo parcial ao orçamento vindo do Tribunal Constitucional tornaria o segundo resgate inevitável, com as respectivas e trágicas consequências para o país. Esta afirmação, repetida até à náusea, parte de dois pressupostos errados.
 
O primeiro é de forma e é simples de explicar: se várias medidas forem consideradas inconstitucionais e isso obrigar a outras soluções, isso não resultará da decisão do TC mas da incapacidade do governo em cumprir os acordos com a troika respeitando a lei. O TC apenas decreta a inconstitucionalidade, não é responsável por ela. Os limites da ação do governo são os da lei, não são os da troika. Governar em violação da Constituição não pode sequer ser considerada uma hipótese. Muito menos uma inevitabilidade. Isto não muda as consequências do chumbo, se ele vier a existir, mas muda os responsáveis pelo impasse criado e até as conclusões políticas a tirar. Uma pode ser esta: é impossível aplicar as medidas propostas pela troika num país onde o Estado de Direito Democrático esteja em funcionamento pleno. Outra pode ser mais imediata: é por decisão do governo que os limites da Constituição não são usados como arma negocial com a troika. Pelo contrário, é a troika que é usada como forma de pressão para não cumprir a Constituição ou vir a revê-la. É uma escolha política pela qual só o governo, e não o TC, pode ser responsabilizado.
 
O segundo tem a ver com a interpretação da realidade. O debate sobre a ida aos mercados, o programa cautelar e o segundo resgate é perturbado por inúmeras cortinas de fumo em que as palavras parecem valer mais do que o seu conteúdo. Não é seguro que haja enorme diferença entre um segundo resgate e um programa cautelar, até porque desconhecemos quase em absoluto os contornos da segunda alternativa. Sabemos que, das duas uma: ou a Irlanda não a quis, por isso implicar condições demasiado negativas para o país, ou a Finlândia e a Alemanha não a aceitaram, por implicar novos encargos financeiros. A este assunto voltarei, espero, ainda esta semana. Mas seja qual for a resposta, uma diz-nos que o programa cautelar não é aconselhável e outra que não é provável. Exatamente as mesmas questões que se levantam em relação a um segundo resgate.
 
Na verdade, parecem-me evidentes duas coisas: que a solução a implementar depois de junho depende mais da vontade política das instituições europeias e da Alemanha do que de qualquer acontecimento nacional e que as diferenças entre o segundo resgate e o programa cautelar podem ser meramente de grau. Sendo certo que não estamos, nem estaremos daqui a seis meses, preparados para regressar aos mercados, também nada nos diz que não venhamos a ser atirados para eles. Piores do que quando de lá saímos. Tudo isto, independentemente da decisão do TC. Claro que ao governo interessa a dramatização. Até para, caso haja um cumbo, poder responsabilizar outros pelo mau desfecho de três anos de austeridade, seja ele a ida em péssimas condições para os mercados, o programa cautelar ou o segundo resgate.
 
Seja qual for o fim desta história, é condição para o nosso presente e futuro em democracia que cada um cumpra as suas funções. E ao Tribunal Constitucional, cujos juízes, como seres humanos, não hão de ser complemente imunes à brutal pressão que estão a sofrer, cabe apenas e só olhar para o orçamento e verificar da sua constitucionalidade. É ao governo e à Assembleia da República que cabe apresentar e aprovar orçamentos dentro da lei, ter alternativas para a possibilidade deles serem considerados inconstitucionais ou aproveitar os limites da Constituição para negociar melhores condições com a troika. É em São Bento e não no Palácio Ratton que estão os nossos problemas. E só de lá podem vir as soluções. E só para lá podem ir as responsabilidades.
 
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