segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A COSMOVISÃO DE BOLIVAR (2)




Rui Peralta, Luanda

Bolívia

VI - Em 2009, Evo Morales, proferiu o discurso inaugural da Conferência dos Povos contra as Alterações Climatéricas e pela Defesa da Mãe Terra, realizada em Tiquipaya - Cochabamba O discurso era aguardado com expectativa por todos os presentes na Conferencia, bolivianos e estrangeiros. Evo tinha discursado anteriormente em Copenhaga, Dinamarca, na Cimeira Social, cimeira paralela á Cimeira da Nações Unidas sobre as Alterações Climatéricas, perante mais de cem mil activistas sociais e ecologistas, donde se declarou guerra ao capitalismo em defesa da Mãe Terra.

Mas em Cochabamba o presidente boliviano falou dos danos causados pela Coca-Cola e pelos frangos com hormonas, salientando a queda do cabelo e a transformação dos homens em homossexuais. Parte do público assistente, sobretudo estrangeiros, esperançados pelas declarações de Evo em Copenhaga, ficaram desconcertados com o discurso do presidente boliviano e mais desconcertados ficaram quando o almoço servido na conferência não foi nem mais nem menos do que frango com Coca-Cola.

As resoluções da Conferencia terminaram com a tradicional declaração de guerra ao capitalismo, defesa da Mãe Terra, moções de proibição de cortes dos bosques, monções contra a exploração extractiva nos bosques e territórios indígenas e moções de apoio a um modelo de soberania alimentar. Na Conferencia ouviram-se temas como a luta por uma civilização alternativa ao capitalismo e á modernidade (?), defesa dos equilíbrios ecológicos, pagamento da divida histórica dos países centrais, a divida colonial aos povos indígenas e países periféricos, a transferência tecnológica, as tecnologias limpas e a exigência de que os estados respeitem as decisões de Quioto. Terminou com uma apelo á formação de uma internacional dos povos em defesa da Mãe Terra e em luta contra o capitalismo.

Realizados que foram todos os rituais que precedem e sucedem a estes actos (o folclore), concluiu-se pelo êxito da Conferencia, pelo menos na forma como as ideias e projectos apresentados foram debatidos e pela própria riqueza e importância dos temas. Por comentar ficou o discurso de Evo.

VII - A homofobia é vista pela fraternidade masculina com uma mistura de terror, alteração sexual e problema etário, algo que está fora dos padrões masculinos estabelecidos. A dominação masculina, na cultura burguesa (logo, na alienação capitalista, quando esta cultura é estendida ao todo social) não é apenas exercida sobre a mulher (sobre a qual o homem adquire um minucioso domínio, iniciado pelo corpo), mas também pela exclusão e repressão da subjectividade não masculina e não feminina, mesmo que a homossexualidade esteja implícita, latente ou seja praticada às escondidas pelos machos dominadores.

Esta é uma questão social que está nos alicerces patriarcais. Os grandes temas das lutas sociais em curso na Bolívia, como a descolonização, as lutas dos povos indígenas, a defesa da Mãe Terra, a luta pela autogestão social e por procedimentos democráticos directos, estão intimamente articuladas e implicam uma luta pela emancipação feminina e pelas liberdade sexual. Fazem parte de um campo de batalha mais vasto, o da luta contra o capitalismo e não são separadas umas das outras, nem é possível (como fazem alguns mecanicistas da esquerda actual), concentrar-se numas e deixar outras para um plano secundário. O que define o plano primário ou secundário é a própria dinâmica que uma determinada luta comporta. Se no meio de uma greve geral, as lésbicas queimarem os soutiens e os homossexuais masculinos manifestarem-se pelos seus direitos, é porque a luta daqueles sectores, naquele momento exacto, foi impulsionada pelo movimento grevista. É isto a articulação. Cada uma das lutas reflecte as outras e os logros de umas repercutem-se nas restantes. Todas as frentes de combate devem estar coordenadas, porque fazem parte da guerra prolongada contra o capitalismo.

A realidade do capitalismo é económica, tudo é convertido ao factor económico e esse é o campo de batalha do capitalismo e é nesse campo de batalha que se trava a luta contra a economia politica generalizada (seja a do corpo, a do poder, a colonial ou a da palavra e da ideia). A luta contra o patriarcado, o Estado Colonial, pela autogestão social e pela emancipação dos povos indígenas é realizada no mesmo campo de batalha da luta contra a homofobia, a dominação masculina e pela emancipação feminina.

Não se é anticapitalista, anti-imperialista e anticolonial por um lado e machista ou homofóbico por outro. Nem mesmo Evo Morales.

VIII - Álvaro García Linera, o vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, escreveu um livro intitulado Geopolítica da Amazónia, onde demonstra que Beni, um departamento do nordeste da Bolívia, na Amazónia, está dominado pelos latifundiários e pelas ONG. Os latifundiários exploram e escravizam os povos indígenas e as ONG enganam e utilizam os povos indígenas, através dos programas integrados do capitalismo verde. O livro é também uma defesa da tese do governo relativa á construção da autoestrada amazónica, um importante projecto regional.

A consciência catastrófica da crise ecológica é uma das batalhas travadas contra o capitalismo. Não sou daqueles teóricos deslumbrados da esquerda (ate porque nem me coloco nessa posição, não sou de esquerda – nunca sentei-me no lado esquerdo de um hemiciclo parlamentar e se algum dia isso acontecer farei questão de levar o meu sofá e sentar-me onde muito bem entender - e muito menos um teórico), que consideram que a História da luta contra o capitalismo (porque não a História do capitalismo?) passou por diversas fases: da luta do proletariado, no século XIX, para a luta anti-imperialista, no século XX, sendo agora a época das lutas ecológicas. Näo ando por esses campos de filisteus e sou daqueles (somos poucos mas somos muito bons, modéstia á parte) que considera que a luta é a mesma de sempre: a do proletariado.

As formas de luta anticapitalistas são uma combinação de factores. A problemática ecológica converteu-se num factor da linha da frente destas batalhas porque diz respeito a todos nós, os que vivemos nesta nave espacial (usando uma habitual expressão de Buckminster Fuller). Mas a questão ecológica é também um dos cenários do campo de batalha. E muitas das vezes é um cenário truncado e ilusório, utilizado pelo capitalismo para entravar a batalha pelo desenvolvimento, travada por países e povos que pretendem sair da situação de submissão em que se encontram perante o imperialismo.

Mas esta batalha pelo desenvolvimento, também ela torna-se num cenário truncado e armadilhado. O desenvolvimento dos povos não é o desenvolvimento desenvolvimentista dos capitalismos BRICS, que já partilham a sua quota de Capital, nem o das elites terceiro mundistas, desesperadas por apanhar o seu quinhão nas parcerias com o Capital e que seguem docilmente os pareceres do Consenso de Washington (sempre, claro, com um discurso para consumo interno, não vá o diabo tecê-las e um discurso para o sócio estrangeiro, não vá este duvidar das suas reais intenções). O desenvolvimento dos povos é sustentado e integrado, por um lado e assente em estruturas socialistas, por outro. Ou seja: o desenvolvimento dos povos é assente em bases articuladas, em que a primeira questão é a apropriação da produção, socializando-a e a segunda questão é a reapropriação dos recursos naturais, socializando-os.

E foi neste sentido que o vice-presidente boliviano escreveu as suas linhas, consciente dos perigos representados pelas ONG defensoras do capitalismo verde (os agentes imperialistas) e pelos latifundiários (os agentes internos apostados em fazer falhar qualquer projecto de reforma agraria e de autogestão social das comunidades indígenas), do sector industrial extractivo e das transnacionais que apostam na tese desenvolvimentista de alguns sectores governamentais e na forma de socializar os recursos do departamento de Beni e que poderá constituir um modelo para o Estado Plurinacional Boliviano.

IX - O processo boliviano de emancipação, em curso, é composto por uma frente imensa, ampla, que engloba componentes identitárias extremamente fortes e complexas, para alem das componentes directamente relacionadas com a guerra de classes. O futuro deste processo emancipador está directamente relacionado com as estratégias de desenvolvimento e com a via de desenvolvimento seguida.

A participação das comunidades indígenas no processo de desenvolvimento é de extrema importância. Mas o desenvolvimento, qualquer que seja a via seguida, é portador de uma dinâmica específica, criada pelos componentes desenvolvidos (a mudança) e criadora de novos componentes (os factores transformados). Esta dinâmica é sempre um processo de aculturação, o que implica, a partir de determinado momento do processo, que os factores identitários, inicialmente uma potente fonte de mudança, tornam-se contrarrevolucionários e um bloqueio ao desenvolvimento.

A participação das comunidades indígenas (as nações) no processo de desenvolvimento é geradora de processos de aculturação, pois as comunidades ao assumirem a gestão dos seus assuntos e do seu meio, têm de tomar consciência de que são parte de um todo, que engloba não apenas as outras comunidades (nações), que respondem com diferentes soluções aos problemas com que se depararem, mas também de que afinal convivem num espaço com outras componentes que não pertencem ao seu mundo cultural, o que implica um natural processo de aculturação, deixando para trás o elemento identitário em prol de um elemento cosmopolita.

É neste momento do processo que o elemento identitário torna-se contrarrevolucionário. É nesse momento que determinados factores culturais passam a formar a tradição, porque já näo têm cabimento no presente. Todo esse processo é de extrema complexidade e gerador de forças imprevisíveis.

Por isso é de extrema importância que a dinâmica do Estado Plurinacional, a questão ecológica e a autogestão das comunidades (e nações) sejam uma base determinante do processo de emancipação e do seu modelo de desenvolvimento. Na Bolívia cruzam-se as dinâmicas da economia rural pré-capitalista, com a economia colonial, com a economia capitalista periférica, com a economia capitalista industrial, a pós-industrial, a economia da informação, ou seja, estamos a falar de um espaço territorial com diversas dinâmicas económicas, geradoras de contradições específicas, mas todas elas passiveis de profundas transformações.

Na resolução destas contradições e na profundidade das transformações, reside o êxito do processo emancipador boliviano. Para já uma coisa é certa: O futuro da Bolívia está nas mãos dos bolivianos e essa é já uma vitória do processo emancipador.

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