sexta-feira, 12 de abril de 2013

LA STRADA




Rui Peralta, Luanda

I - La Strada é uma realização de 1954, um filme produzido por Carlo Ponti e Dino De Laurentiis, argumento de Fellini e Tullio Pinelli e roteiro de ambos com Ennio Flaiano. A fotografia foi de Otello Martelli, um dos mestres da época e a música do grande Nino Rota. Aliás Nino Rota, Flaiano e Pinelli, constituíam a equipa permanente de Fellini. E depois há três interpretações inesquecíveis: Giulietta Masina (mulher de Fellini) no papel de Gelsomina, Anthony Quinn, no papel de Zampanó e Richard Baschart, no papel do louco que leva o conhecimento a Gelsomina.

Mas não é o cinema a razão de ser deste texto. Referenciei esta obra da cinematografia italiana porque recordei-me de uma cena do filme que retrata muito bem a actual situação de Itália. Num diálogo entre o louco (Richard Baschart) e Gelsomina (Giulietta Masina), o louco aponta para um pedaço de uma pedra e diz: “Não sei para que serve isto, mas serve certamente para algo…”

II - O sentimento da grande maioria dos italianos pode muito bem ser representado por esta frase do louco. Todos foram chamados a exercer um acto de soberania popular, através das eleições, mas nenhum dos eleitores, acaba por entender qual o motivo para o qual é chamado a exercer o seu direito de voto, uma vez que o episódio seguinte ao acto eleitoral é a tragicomédia de terceira classe, em que os personagens da política italiana movimentam-se de forma teatral e pouco convincente, sempre no sentido contrário ao resultado efectivo das eleições.

A democracia representativa italiana, pós fascismo, é um autêntico exercício de faz de conta, um tratado de como não cumprir o que foi expresso no voto, situação agravada desde o célebre (de triste memória) compromisso histórico, assinado na década de setenta entre a defunta Democracia Cristã e o defunto Partido Comunista Italiano.

Os eleitores italianos decidiram, no acto eleitoral de 24 e 25 de Fevereiro, dizer um grande NÃO á tecnocracia neoliberal do primeiro-ministro (ou director-geral?) Mario Monti. Mas de pouco bastou. Em nome de uma subcultura da emergência, o mesmo modelo tenta ser imposto, através de um hábil jogo de negociatas entre as nomenclaturas institucionais.

III - Berlusconi (será a senilidade?) assumiu de vez o papel de bobo da corte (personagem que ele sempre soube desempenhar enquanto primeiro-ministro e ao qual lhe empresta um ar sinistro, pois um bobo da corte em qualquer opereta se não tiver algo de sinistro, é um mero personagem de circo pobre), e quanto á Sinistra, nem vale a pena falar, parecendo mais um spot publicitário de uma nova marca de enlatados para animais domésticos. Beppe Grillo, que em episódios anteriores era o personagem do bobo inteligente e astuto, evoluiu para um personagem típico da estética mozartiana: o flautista mágico.

O Presidente Napolitano desdobra-se em contactos, reuniões e tentativas de convergência, qual Padrinho tentando conciliar a Famiglia. E de golpe em golpe, o sentido do voto é deturpado, através de sucessivos novos actos, em que o bobo, o anunciante de comida para cães, o flautista mágico e outros personagens tecnocraticamente enfastiados, assumem á vez, o protagonismo.

IV - Na Itália de hoje, manifestam-se diferentes orientações, aparentemente difíceis de sintetizar, mas que respondem a um desígnio facilmente reconstituído por um observador atento. O desígnio geral corresponde a uma tendência generalizada em toda a U.E. e pode ser definido desta forma: a consagração definitiva de uma tripla estratificação dos sujeitos sociais, típica da fase neo-liberal.

Acima da multidão estão os elegibus solutis, os acima da lei, que gozam de uma total liberdade de movimentos, para que possam colocar a Itália na senda dos mercados. Claro que este estrato é de uma elevada pureza ética, sendo o político desonesto, afastado e o politico honesto abençoado, ou seja de vez em quando aparecem uns bodes expiatórios (Berlusconi, o bobo, corre esse sério risco) e mantém a mistificação do Estado acima dos interesses, o que em Itália obriga a enormes exercícios de retórica.

Seguem-se os cidadãos de pleno direito, os titulares de deveres e de direitos segundo o esquema tradicional do Estado de Direito e os principais destinatários do anterior contrato social, formados pelas classes contratantes e pelas classes garantidas, a chamada classe média. Só que o actual contracto social já se livrou de muitos destes beneficiados, porque já não fazem falta (a necessidade do corte de despesas, por exemplo, leva a dispensar muitos quadros médios e superiores na função publica) e porque os novos sistemas de produtividade já não precisam de muitas das anteriores funções. Estes cidadãos de pleno direito tornam-se, desta forma, cada vez menos.

Por ultimo (e em crescimento exponencial) os não-garantidos, ou seja os excluídos deste processo. São os desempregados e os trabalhadores precários, jovens e de meia-idade, uns que nunca tiveram um emprego e outros que já tiveram mas que já não vão ter mais, um imenso e crescente espaço de marginalizados pelos novos processos produtivos e completamente inúteis no âmbito da nova economia. São os futuros não-cidadãos, sujeitos que não foram enquadrados no novo contrato social e que serão a médio prazo considerados como inimigos potenciais, indigentes e indesejáveis (assim como os intocáveis da Índia).

V  - Os elegibus solutis estabelecem o seu domínio no processo pós-eleitoral. Os representantes das novas elites do Capital (os tecnocratas das finanças) não se sujeitam ao escrutínio da soberania popular. Utilizam os seus subordinados das máquinas partidárias para exercerem essa função. O bobo, o vendedor de comida para cães e outros tagarelas exercem a sua campanha sobre os cidadãos de pleno direito, enquanto o flautista mágico e as novas caras bonitas do fascismo do século XXI fazem a sua campanha nos não-garantidos (que por enquanto ainda votam, mas que com a implementação do novo contrato social, serão reduzidos á condição de não-cidadãos).

A observação do louco personagem de Fellini fica assim complementada, pois afinal já sabemos para que servem as eleições em Itália: são um mero acto formal de consulta, uma imensa sondagem realizada pelo Estado, paga pelos fundos públicos, para que as elites conheçam as preferências do mercado e alterem as linhas melódicas, a letra da opereta e os personagens. Sempre com o objectivo de os eleitores continuarem a frequentar o auditório e a comprar bilhetes para assistirem ao espectáculo, mas eternamente transitando numa estrada que não leva a sitio algum.

António Gramsci, nas suas Note sul Machiavelli sulla politica e sullo stato moderno perguntava: “ (...) quer-se que existam sempre governantes e governados ou pretende-se criar as condições para que a necessidade da existência desta divisão desapareça?”

Da resposta que for dada a esta questão dependerá o futuro da Itália. Mas esta é uma questão que nunca será referendada pelo sistema. Só pelos que ainda têm alguns direitos e pelos que já perderam a esperança de os manter.

Sem comentários:

Mais lidas da semana