terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A MORTE DE UM HOMEM BOM

 

Mário Soares – Diário de Notícias, opinião
 
1. Era esperado o falecimento de Nelson Mandela. A doença prolongou-se e a idade era muita. Nos últimos dias, uma filha falou, já sem esperança.
 
É óbvio que a comunicação social do mundo inteiro, com grande antecedência, preparou-se para o acontecimento. Eu próprio fui solicitado, com antecipação, para ter preparado um artigo para quando o triste momento chegasse. Recusei. Talvez com um pouco de superstição. A morte representa o fim irrevogável e merece silêncio, respeito e recolhimento.
 
Finalmente, surgiu, por via da filha, a tristíssima notícia. E a comunicação social do mundo inteiro disparou com o que estava há muito preparado. Durante os dois ou três dias que se seguiram não se falou nem se escreveu outra coisa: televisões, rádios, jornais, revistas. Não só em Portugal como no mundo inteiro. E os funerais vão ser longos.
 
Recebi a notícia por via da SIC. Foi António José Teixeira, de quem sou amigo, que me telefonou e, obviamente, me pediu logo uma primeira entrevista. Disse-lhe que sim e assim fiz, discretamente. Mas depois disso choveram os pedidos de rádios, televisões e até da Lusa. Mas não respondi a mais ninguém. Porque para mim, Nelson Mandela é uma personalidade única do nosso tempo, de um idealismo, de uma bondade pessoal e de um sentido humanitário raríssimo. E por isso deve ser em absoluto respeitado. E não utilizado por quem apenas o quer aproveitar por razões pessoais. Como sucedeu com alguns políticos com grandes responsabilidades, infelizmente não assumidas, da nossa infeliz terra, que se tivessem vergonha teriam ficado calados.
 
Isso custou-me, porque representa um aproveitamento que salta à vista. Por isso fiquei calado. E só agora no Diário de Notícias o faço porque é o jornal em que escrevo todas as semanas. Mal seria se não dedicasse o meu artigo, em primeiro lugar, ao meu tão admirado amigo - porque o foi - Nelson Mandela.
 
Começo por responder a três perguntas do jornalista do Diário de Notícias João Pedro Henriques.
 
Pessoalmente só o conheci depois de ter sido posto em liberdade. Mas antes disso, estando Mandela preso, em pleno apartheid, tive de ir a Pretória, por causa do desastre, quase fatal, que o meu filho e mais dois seus companheiros do CDS e do PSD sofrerem em Angola, quando foram visitar Jonas Savimbi. O meu filho esteve entre a morte e a vida e foi quem mais foi atingido no desastre. Eu era então presidente da República e parti nesse mesmo dia para a Hungria e para Holanda, em visita de Estado, mas a minha mulher e a então mulher dele, o meu sobrinho cirurgião Eduardo Barroso e o meu médico da Presidência Daniel de Matos, partiram logo para a África do Sul.
 
Eu fui poucos dias depois, apesar de nenhum dirigente político europeu ou americano, dada a posição da ONU, poder ir à África do Sul. Fui, como é natural, dada a situação do meu filho, sem qualquer hesitação.
 
Contudo, quando lá cheguei, fui recebido pelo nosso embaixador José Cutileiro mas também pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da África do Sul, Pik Botha. Disse-me que estava a representar o presidente De Klerk, que me enviava cumprimentos. Respondi que estava ali para visitar tão-só o meu filho, que não tinha naquele momento qualquer função oficial porque como europeu e presidente de um Estado europeu não a podia ter. E, ainda por cima, porque sempre fui, em absoluto, contra o apartheid.
 
Sem comentários, teve a delicadeza de me levar ao hospital, onde vi finalmente o meu filho ainda em coma.
 
Digo isto porque só muito mais tarde conheci Mandela. Mas não posso nem devo esquecer o que se passou antes. É que dias depois - já o meu filho tinha saído de coma - fui convidado por Pik Botha para ir almoçar com o presidente De Klerk.
 
Fui. E a conversa foi só e sempre sobre o apartheid e sobre Mandela. Porque De Klerk me disse querer acabar com o apartheid. Disse-me que iria libertar, quando eu partisse, dez presos do ANC. Perguntei-lhe se entre eles se contava Mandela. Disse-me que não e acrescentou: "Porque os militares não deixam." Contei-lhe então o que se passou em Espanha, quando era primeiro-- ministro Adolfo Suárez. Os militares espanhóis também não queriam que Santiago Carrillo, líder do Partido Comunista Espanhol, entrasse em Espanha. Mas num domingo de Páscoa, em que as pessoas saem de Madrid, Suárez anunciou a sua entrada e nada se passou com os militares...
 
Realmente no dia do meu regresso a Lisboa foram libertados vários companheiros de Mandela. Mas não ele. Veio a sê-lo tempos depois, tendo De Klerk tido a amabilidade de me convidar a ir de novo a África do Sul, onde há, e sempre houve, uma comunidade imensa de portugueses.
 
Quanto à imagem que guardo de Mandela, que acabei por conhecer bem e sempre me deslumbrou, não podia ser melhor. Um homem extremamente bom, modesto, inteligente e amável para toda a gente, independentemente do nível dos seus interlocutores.
 
Tudo isso me surpreendeu e por isso me tornei não só amigo como rendido admirador. E desde a sua morte, saudoso e até ao fim da minha vida, assim serei. Pude ver como ele foi sempre admirado, mesmo pelos boers e também pelos imensos portugueses que vivem e trabalham na África do Sul e com alguns dos quais conversei quando estive em Pretória, na Cidade do Cabo, como lhes chamaram os portugueses da Boa Esperança, e em Durban, terras e mares que os navegadores portugueses - note-se - foram os primeiros europeus a conhecer.
 
Permitam-me breves notas que me ocorrem.
 
Como disse, estive na África do Sul quando do acidente do meu filho João, em 1989, estava ainda Nelson Mandela preso. Falei com De Klerk, como já disse, no sentido da sua libertação e, modestamente, contribuí para que viesse a sair do cárcere.
 
Em 5 de outubro de 1993, recebi, em Lisboa, e condecorei, com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, distinção rara, criada pela Revolução dos Cravos, Nelson Mandela então presidente do ANC.
 
Em maio de 1994 fui à sua tomada de posse como presidente da República. Foi algo que muito me impressionou por ele ter convidado dois dos seus carcereiros para a cerimónia.
 
Em novembro de 1995, fiz, como presidente da República, uma visita de Estado à África do Sul, acompanhado quase sempre pelo então já presidente Nelson Mandela.
 
Em 1997, com o professor Mário Ruivo, voltámos a encontrar-nos. Participávamos então na 5.ª sessão plenária da Comissão Mundial Independente para os Oceanos. Mandela, entre outros, foi um dos oradores, tendo dado um grande apoio à comissão, cujo relatório final foi apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas.
 
Em 2008, escrevi no Diário de Notícias, quando Nelson Mandela celebrou 90 anos, perante os aplausos unânimes do mundo inteiro. Antigo "terrorista" - assim considerado por bastantes sul-africanos brancos - na luta antiapartheid, pelo que sofreu durante 27 anos de prisão, é hoje uma referência ética e ideológica em todas as latitudes. Pela sua vida, pelo seu idealismo, pelas suas profundas convicções humanistas e, como já disse, pelo seu carácter e personalidade. Tive assim o enorme privilégio de o conhecer pessoalmente. Assisti à sua posse como presidente e visitei--o depois, longamente, nessa qualidade. Sempre o admirei e continuo a admirar como um símbolo. Bem como a sua mulher, Graça Machel, uma pessoa superior. Considero ambos um par de excecional valor.
 
Lembro que a ONU proclamou, em 2010, o dia 18 de julho como o Dia de Mandela e tudo o que ele representa. Foi o dia em que completou 92 anos, em plena juventude de espírito. Juntei-me por isso aos milhões do mundo inteiro e apresentei-lhe modestamente os meus parabéns.
 
No mesmo ano fui convidado a apresentar o livro Nelson Mandela: Arquivo Íntimo, prefaciado por Barack Obama. Assim o fiz, com muita honra.
 
Repito o que tenho vindo a dizer: a sua resistência, a sua força moral, o seu espírito de tolerância, a sua crença no progresso e na humanidade e ainda na igualdade de todos os seres humanos, sem exceção, são exemplo e um ensinamento impar no mundo sem rumo em que vivemos. Leva-nos a acreditar nos outros e no futuro. Obrigado, Nelson Mandela, por ser o que é.
 
2. A crise europeia Era tão fácil acabar com a crise que Portugal e sobretudo a zona euro atravessam, com cada vez mais dificuldades dos Estados membros. Era necessário somente que o Banco Central Europeu fosse capaz de fazer o que a América de Barack Obama faz: emitir dólares. Ora o Banco Central Europeu não fabrica euros, como devia.
 
Porquê? Porque aparentemente a Alemanha não deixa. Parece querer mandar na Europa. O que só lhe vai trazer complicações, como começa a acontecer à própria Alemanha.
 
Veremos se vai ou não haver uma coligação entre o SPD e a pseudo-CDU para governar a Alemanha. E se o ministro das Finanças, que mandava na chanceler Merkel, não ficará na Alemanha. Se for, como parece, para Bruxelas, será um desastre. Veremos do que são capazes, dado o alargamento da crise, a tantos países europeus, de fazer os sociais-democratas alemães que, ao que parece, vão aliar-se com a chanceler. Irá ela continuar a governar a Alemanha e a zona euro? E, como advertiu Helmut Schmidt, cair no abismo...
 
Há muitos sinais de que não será assim. Mas o mundo, por todo o lado, está imprevisível. Como nunca antes aconteceu, nem no tempo das guerras mundiais. Oxalá os alemães não nos atirem, irresponsavelmente, para um novo conflito mundial... Espero que não.
 
3. A Ucrânia É preocupante a situação em que se encontra a Ucrânia, um grande país europeu que não quer continuar a ser uma "província" da Rússia, mas sim um Estado independente que possa aderir à União Europeia, apesar da crise em que esta se encontra.
 
As manifestações do povo ucraniano repetem-se diariamente. É um povo inteiro. E no domingo passado derrubaram e destruíram a estátua de Lenine. Um símbolo da odiada ditadura leninista, que tanto pesou à Ucrânia e à própria URSS.
 
É verdade que Putin não é Lenine nem Estaline, embora tenha sido, antes da queda da URSS, membro da polícia de Estado, o KGB. Contudo, não creio que pense voltar ao passado, o que não parece ser possível.
 
De qualquer modo, a força - e o entusiasmo - do povo ucraniano vai vencer. Assim espero. E a União Europeia, se não for completamente destituída de senso - como tem sido nos últimos meses -, espero que lhe abra a porta com ambos os braços.
 
Grande povo os ucranianos!
 
4. Um livro que recomendo José Medeiros Ferreira acaba de publicar um livro de muito interesse intitulado: Não Há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal) Dita da Integração Europeia, que merece ser lido e meditado.
 
Começa na I Guerra Mundial, em que Portugal, como se sabe, participou e depois passa para as consequências económicas da paz, para a chamada sociedade das nações, as propostas alemãs na II Guerra Mundial, os planos dos Aliados e finalmente Não Há Mapa Cor-de-Rosa, ou Portugal no Balanço da Europa.
 
É um livro muito interessante e que recomendo vivamente. Vale a pena lê-lo e refletir sobre ele.
 

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