#Publicado em português do Brasil
Crianças presas. Torturadas. Metralhadas. Cada corpo é um obstáculo que deve ser deslocado (ou exterminado). A cada morte – inclusive de meninas e meninos – a fronteira israelense é dilatada. Não importa se o soldado é “de esquerda”
Berenice Bento* | Outras Palavras
Cena 1:
Dois estudantes, 10 anos e 11
anos, relatam suas prisões por soldados israelenses. Ao sair da escola, no
vilarejo de Al-Sawiya (próxima a Nablus/Palestina), soldados/as as abordaram e
as levaram, com as mãos algemadas e capuz na cabeça para um centro de detenção.
Diziam ter informações precisas de que elas atiraram pedras nos/as soldados/as.
O interrogatório durou cerca de cinco horas. Já era noite quando foram
abandonadas em algum lugar. Enquanto a tortura acontecia seus pais tentavam
localizá-las. Éramos observadores/as internacionais em visita à escola.
Escutamos os relatos paralisados. A história dessas duas crianças não está
registrada, não gerou número, não se constituiu
Quem eram aqueles/as soldados/as? Seriam originários/as de que pais?
Os operadores do dispositivo
sionista não diferenciam as fases da vida quando se refere a qualquer
palestino/a. Não existem aqui marcadores da diferença baseados
Cena 2:
A Doma da Rocha (Al Aqsa), localizada em Jerusalém intramuros, é um complexo formado por jardins, mesquitas e escolas para crianças e adolescentes palestinos. Depois de um passeio com o diretor da escola pelas salas, nos sentamos com tranquilidade para uma conversa acompanhada por chá. Um dia antes, essa conversa teria sido impossível. Dezenas de soldados/as israelenses tentaram invadir a escola para prender estudantes. Acusação: atirarem pedras. O diretor e os professores protegeram a entrada da escola utilizando seus corpos como escudos. As digitais dos soldados estavam espalhadas no corpo do diretor em forma de hematomas gigantes.
Quem eram aqueles/as soldados/as? Em qual partido votaram nas últimas eleições de Israel?
Cena 3:
Não tem cena. Apenas som. Os
estrondos fizeram-me pular da cama
Quem eram aqueles/as soldados/as?
Essas cenas ilustram,
anemicamente, o terror que o colonialismo israelense impõe às crianças
palestinas. As que já foram presas relatam torturas físicas e psicológicas,
ausência de advogados e de familiares. Muitas ficam absolutamente
incomunicáveis
Não há registro de nenhum outro país no mundo que aprisione crianças, torture-as, mantenham-nas em solitárias e as julguem em tribunais militares, configurando-se em violações sistemáticas do Direito Internacional. O detalhamento das violações pode ser lido no relatório da UNESCO5.
Para além da imoralidade que
significa prender crianças, deve-se ampliar o foco e pensarquais os sentidos da
infância no contexto colonial. Ser encarcerada é uma realidade que muitas já
enfrentaram. A prisão, contudo, também pode ser lida como uma metáfora que
caracteriza o cotidiano. Na casa que me recebeu
Dispositivo sionista
A IDF (Força de Defesa de Israel,
sigla em inglês) é formado, principalmente, por judeus/judias nascidos
A noção de “dispositivo sionista”
que estou propondo inspira-se
A defesa do Estado de Israel. O que significa, neste contexto, “defesa”? Engajar-se diretamente na IDF porque são as forças armadas que garantem suas fronteiras. Aqui começam as diferenças internas ao dispositivo: alguns sionistas defendem as fronteiras de 1967, outros a “retomada” da Grande Israel (o que significa o desaparecimento total da Palestina). Essa seria a solução final perfeita: o desaparecimento absoluto da Palestina e do seu povo. Mas qual é, de fato, a fronteira de Israel com a Palestina, o limite que imporia a Israel a impossibilidade de entrada? Não existe. O colono diz que aquela terra lhe pertence. O Estado de Israel o incentiva a permanecer oferecendo-lhes a infraestrutura, inclusive militares da IDF. Planos de anexação são apresentados para áreas que, de fato, já são controladas por Israel. E todos os pontos referentes a territórios presentes nos Acordos de Oslo (o cavalo de Troia) virou letra morta.
A lei do “retorno” é o segundo eixo estruturante do dispositivo sionista. Todos/as defendem o direito de retorno, ou seja, de ser parte do projeto de colonização da Palestina. Como desdobramento inevitável na guerra demográfica, todos também se recusam a reconhecer a Resolução 194 III da ONU (11/12/1948) que assegura aos/às palestinos/as expulsos de suas terras em 1948 o direito ao retorno.
As divergências internas ao dispositivo sionista podem funcionar como prestidigitações e produzir a ilusão de que o “sionista de esquerda” e os “outros sionistas” são diferentes. Estas diferenças, que podem ter sentido nas disputas internas de Israel, são nulas para o povo colonizado. Quem matou aquela criança em Jerusalém eram sionistas.
Voltemos ao ponto que se refere às fronteiras. Se as fronteiras de Israel com a Palestina não estão definidas, qual a função do IDF? Construir e assegurar a fronteira. E isso só poderá ser exitoso se todo/a palestino/a for removido. A disputa por fronteira não é algo abstrato. Cada corpo palestino é um obstáculo que deve ser deslocado (ou exterminado). A cada palestino morto, inclusive as crianças, a fronteira israelense é dilatada. A guerra acontece ali, na esfera micro. E nessa microfísica da guerra demográfica, o dispositivo sionista está coeso.
Quem eram aqueles/as soldados/as que levaram as duas crianças da cena 1? Talvez um “sionista de esquerda” que aqui, no Brasil, irá defender o direito de Israel defender-se. Eles fazem uma lavagem vermelha (redwashing6, conforme propus nomear esta configuração discursiva interna ao dispositivo sionista) dos crimes de Israel. Dirá que é “preciso acabar com a análise binária”, reforçará a ideia de que estamos diante de um conflito simétrico. Pergunte para ela/ele quantas crianças israelenses estão nas prisões palestinas. Certamente irá retomar o mantra do diálogo e da paz. Então, vamos conversar sobre paz? Que Israel comece a respeitar o Direito Internacional e as Resoluções da ONU, principalmente a 194 III. Pergunte para esse “sionista de esquerda” se ele serviu ao exército, se participou das sessões de tortura de alguma criança palestina. Nenhum sionista nega a importância de fazer parte na IDF (são três anos de serviço obrigatório para os mulheres e dois anos para mulheres) e não há qualquer crise ética em cumprir as ordens necessárias para assegurar a existência de Israel.
Para Manoel de Barros (poema Uma didática da invenção) “as coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças”. O que não tem nome não existe. Então, o trabalho da infância é inventar o mundo. As inventividades do mundo infantil precisa de um lugar sem trauma, medos, pânico, terror para serem semeadas e nasceram. Este deveria ser o décimo primeiro mandamento: não roubarás a infância alheia.
*Doutora em Sociologia e professora do Departamento de Sociologia da UnB
Notas:
1 Vida precária: el poder del duelo y la violência, Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós, 2006.
2 “Mineirinho”, crônica de Clarice Lispector. https://www.geledes.org.br/mineirinho-por-clarice-lispector/
3 Para informações sobre dados de crianças palestinas presas, as condições das prisões, o processo de julgado, ver: http://www.addameer.org/the_prisoners/children.
4 Ver depoimentos de crianças palestinas presas, em: Precarious Childhood: Arrests of Jerusalemite Children, https://www.youtube.com/watch?v=0uDPeeD_RPk&feature=emb_logo
5 https://www.unicef.org/oPt/Children_in_Israeli_Military_Detention_-_Observations_and_Recommendations_-_Bulletin_No._2_-_February_2015.pdf
6 Berenice Bento. Redwashing: discursos de esquerda para limpar os crimes do Estado de Israel. https://operamundi.uol.com.br/opiniao/46262/redwashing-discursos-de-esquerda-para-limpar-os-crimes-do-estado-de-israel
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