terça-feira, 22 de outubro de 2013

Portugal: O FUNCIONÁRIO INÚTIL

 


Alexandre Homem Cristo – jornal i, opinião
 
Se os "Honórios" da função pública pudessem ser despedidos,não era preciso cortar no salário dos que realmente trabalham
 
1. O Honório tem 45 anos e trabalha num instituto público, em Lisboa. É funcionário público com contrato a tempo indeterminado há cerca de 15 anos. Sempre trabalhou para o Estado mas, como sempre se sentiu mal aproveitado, nos dias de maior frustração ameaçava que se ia embora. Nunca aconteceu. Foi, portanto, ficando e, com o passar do tempo, foi também perdendo o entusiasmo de outros tempos no seu trabalho. A sua chefe, sofrendo do mesmo mal, também não lhe exigia muito e, por isso, não fazia diferença nenhuma se ele trabalhava mais ou menos.
 
Um dia, a sua chefe saiu. Para o seu lugar veio uma pessoa de fora, mais nova do que ele, e decidida a tornar esse instituto público num exemplo de excelência no quadro da administração pública. Subitamente, os projectos tornaram-se mais ambiciosos, mais trabalhosos e com prazos mais curtos. O Honório, ainda no primeiro mês, tentou cumprir com o que lhe era pedido. Só que rapidamente se apercebeu que isso lhe exigiria um esforço muito superior ao que ele aplicara no seu emprego, durante a última década, e que não via qualquer razão que o incentivasse a mudar. Aliás, muito pelo contrário: com as sucessivas reduções que o governo aplicara nas remunerações dos funcionários públicos, ele achava que devia trabalhar menos.
 
Assim fez. Começou por arrastar os prazos, com sucessivos atrasos na entrega dos relatórios que lhe eram pedidos. Nos relatórios que tinham de ser redigidos a várias mãos, deixou de participar - os colegas que fizessem. E nunca participou em reuniões que considerasse estarem fora do seu horário de trabalho normal. A chefe percebeu que o Honório personificava uma espécie de arquivo-morto: todo o trabalho que chegasse às mãos dele morria ali. E, porque queria as coisas feitas, deixou de contar com ele.
 
Tudo isto durou um ano e não teve consequências. Mas a chefe sabia que, com uma pessoa a menos, seria particularmente difícil atingir os níveis de desempenho necessários para alcançar os objectivos do instituto. Tentou falar com ele, explicar-lhe a situação, procurar que ele mudasse a sua atitude. O Honório não cedeu. Então, a chefe pensou em transferi-lo, mas contra a sua vontade não iria ser possível. Em desespero, a chefe analisou as possibilidades de o despedir. Cedo se viu obrigada a reconhecer que essa opção também não seria eficaz. Por fim, desistiu e aceitou o facto de ter de manter o Honório na sua equipa. Apesar da sua inutilidade.
 
2. Esta história é verdadeira e muitas outras semelhantes existem na administração pública. É, claro, um erro fazer desta história uma caricatura do funcionalismo público, que tem na sua larga maioria pessoas capazes e dedicadas. Mas, da mesma forma, é um erro achar que, no contexto do funcionalismo público, o Honório é apenas um caso isolado. Não é. Ele faz parte de uma minoria de funcionários públicos, talvez à volta dos 10% (ou até menos), que é paga para fazer um trabalho que não faz mas que mesmo assim não pode ser despedida - porque a legislação é excessivamente protectora, porque o Tribunal Constitucional impõe uma interpretação rígida dessa legislação e porque sempre vigorou em Portugal uma cultura do deixa-andar. Mas que fique claro: se os Honórios da função pública pudessem ser despedidos, não era preciso cortar no salário dos que realmente trabalham. É essa a consequência real da decisão do Tribunal Constitucional que tantos aplaudiram. Os funcionários públicos que pensem nisto quando, em Janeiro, receberem o seu recibo de vencimento.
 
Investigador - Escreve à segunda-feira
 

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