Nuno Saraiva – Diário
de Notícias, opinião
Portugal, teima em
dizer-se, é um país de brandos costumes. Tolerante, liberto de preconceitos,
evoluído, civilizado. Enfim, moderno.
Abertos, porém, os
olhos, verificamos que não é bem assim. À laia de exemplo, veja-se o que um
militante do CDS, Nuno Lobo, em pleno século XXI, defendeu em texto de moção
apresentada ao congresso do partido há uma semana: "As realidades
familiares naturais são compostas por um homem e uma mulher e orientadas para o
nascimento e a boa educação dos filhos. O bem comum é prejudicado pela
existência de famílias não convencionais." E, não satisfeito, acrescentou:
"Os filhos são a finalidade do casamento que deve ser orientado por normas
de estabilidade, permanência e fidelidade conjugal. Assim, é possível formar-se
pessoas decentes, cumpridoras das leis e das normas sociais."
Em coerência com
esta visão troglodita, aberrante e passadista, em que a base do casamento é a
procriação e não o amor ou os afetos, talvez fosse legítimo concluirmos que,
por exemplo, todos aqueles que cometem a indecência de cortar pensões e
salários não passam de um "bando de maricas". Que quem foge aos
impostos apresenta orçamentos que vão contra a Constituição, propõe referendos
que não são cumpridores da lei - como é o caso daquele que ontem foi aprovado -
ou comete outro tipo de ilegalidades, ou faz porque ou é "bicha" ou
foi formado num contexto de "família não convencional", portanto,
homossexual. Como é óbvio, nada disto é verdade. Mas desenganem--se todos
aqueles que acham que o senhor Lobo está sozinho. Há por aí muito tacanho à
solta que ainda vê o mundo a preto e branco.
Fosse esta a
cartilha aceite e lá teria alguém de inventar também uma brigada de costumes
que se encarregaria de, em casa de uma família monoparental - fosse por viuvez,
separação ou apenas porque sim -, pespegar um homem ou uma mulher. E, para
respeitar o figurino do senhor Lobo, impusesse pela força aquilo a que Natália
Correia chamaria o "truca-truca procriativo".
Aberração é, em
pleno ano da graça de 2014, haver ainda quem assim pense. Aberração foi aquilo
que ontem se passou na Assembleia da República. Um grupo de deputados do PSD, a
meio de um processo legislativo próprio de uma democracia representativa como é
a nossa, decidiu torpedear e brincar com as expectativas criadas em inúmeras
famílias, inviabilizando a possibilidade de o Parlamento legislar sobre a
coadoção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo, aprovada em maio na
generalidade.
Além do enorme
desrespeito pela instituição parlamentar que isto significa - com precedente
aberto em 1998 pelo então primeiro-ministro socialista, António Guterres,
quando impôs um referendo sobre a despenalização do aborto, aprovada um ano
antes pela Assembleia -, esta lamentável decisão é também uma colossal falta de
respeito pelas pessoas. Sim, ao contrário do que pensam os senhores Lobos que
por aí uivam, os homossexuais são pessoas como eles. São decentes, cumpridores
das leis e das normas sociais. E, no limite, também pelos eleitores que, como
mostra a estatística histórica, pouco ligam aos referendos porque agradecem,
como é próprio das democracias representativas, que os eleitos decidam por
eles.
Mas é também uma
gigantesca falta de respeito pelas crianças, que os fundamentalistas não
hesitam em utilizar despudoradamente como argumento. É assustadora a quantidade
de idiotas que enchem a boca para falar no "superior interesse das
crianças". São os mesmos que preferem mantê-las em camaratas de uma
qualquer instituição, por mais respeitável que seja, a conceder-lhes o direito
universal e inalienável de dispor de uma família, a menos que seja a dita
convencional, que as ame, que as eduque, que as proteja. Enfim, que as forme.
Ignorando esta gente que isto já acontece. Que existem famílias compostas por dois
pais ou duas mães e respetivos filhos, a quem o Estado, ao não as reconhecer
juridicamente, está a expor à maior crueldade que se pode infligir a uma
criança: a falta de segurança nos afetos.
Os afetos, tal como
a consciência, não são referendáveis. Por isso, como diria o Papa Francisco,
tenham vergonha!
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