sábado, 27 de dezembro de 2014

Portugal: VIDA NOVA CONTRA OS RISCOS



Carvalho da Silva – Jornal de Notícias, opinião

Por muito que queiramos deixar para trás o ano velho para podermos passar a falar de crises, troikas e memorandos como sofrimentos passados, todos os dias chegam notícias a dizer-nos que "isso" ainda não acabou. O recém-divulgado relatório de "Vigilância Pós-Programa" da União Europeia (UE) é uma dessas notícias deprimentes. O que mais choca neste relatório nem sequer são os abundantes puxões de orelhas ao bom aluno apanhado a "cabular". O pior são os agoiros dos vigilantes e, mais ainda, a ameaça que eles por si próprios representam.

A palavra "risco" é a mais frequente do relatório de vigilância. Risco de as exportações ficarem abaixo do previsto devido às más perspetivas económicas nos mercados europeus. Risco de compressão da procura interna por elevado endividamento das famílias e das empresas. Risco de disparo dos juros da dívida pública em consequência da mudança na política monetária nos EUA. Risco de sobrestimação das receitas fiscais no orçamento de 2015. Riscos, todos eles, a desaguarem no risco que mais preocupa quem, como a Comissão Europeia (CE), se põe agora na posição de cobrador do fraque: o de levar a dívida a uma "trajetória explosiva" que culmine na falência do devedor.

Todos estes riscos são reais, mas o maior é aquele que os vigilantes da CE não referem - a própria Comissão e as suas políticas. A CE empurrou Portugal, a Irlanda, a Grécia e a Espanha para resgates com o objetivo primeiro de livrar os grandes bancos europeus da sua exposição às consequências das dívidas públicas e privadas por eles alimentadas, colocando todos os riscos nos cidadãos contribuintes. A CE promoveu, em todo o lado, duros cortes na despesa pública e impôs desvalorização salarial a pretexto da necessidade de "consolidação orçamental" e de "reforço da competitividade". Com estas políticas aumentaram as dívidas e a Europa foi colocada em estagnação e à beira da deflação.

Aí está o risco que os vigilantes - a União e a sua Comissão - representam. Apesar dos muito maus resultados da austeridade, os vigilantes continuam a exigir mais cortes e mais desvalorização salarial, quando dispõem de poderosos instrumentos, inclusive de pressão sobre "os mercados", que poderiam ser muito úteis, sobretudo para os países que, como Portugal, deixaram de dispor de um Banco Central ao integrarem a União Económica e Monetária.

Podemos então esperar vida nova em 2015?

O ano que vem, cheio de condicionalismos, anuncia-se como oportunidade de pôr termo à governação que nos agravou os riscos. Isso já não é pouco. Mas, para além do fim da governação desta coligação, o novo ano poderá trazer, ainda não a concretização plena de uma vida nova no imediato, mas a esperança de um futuro melhor, com o início da recuperação conducente a uma cura gradual sustentada.

Essa esperança não reside nesta UE e nas políticas que prossegue. A máquina da União, mesmo sujeita a abanões políticos fortes, não muda facilmente. É perra. Mais depressa se avaria do que se conserta. A esperança só pode residir num sobressalto cívico capaz de substituir a governação que nos põe em risco por uma outra que nos proteja dele. A solução depende de muita coisa no plano nacional, europeu e internacional e, sobretudo, de uma tomada de consciência coletiva quanto à necessidade de enfrentar os vigilantes, rechaçando as suas recomendações insensatas e imposições criminosas de mais e mais "consolidação orçamental" e desvalorização salarial.

Uma governação capaz de nos fazer sair do buraco em que estamos precisa de sustentar-se numa ampla maioria social de rejeição dos vigilantes, transformada em maioria política abrangente favorável à recuperação. Uma tal governação necessita de um mandato popular claro para defender a primazia das obrigações com a democracia política, económica, social e cultural sobre os compromissos com os credores financeiros.

É possível uma viragem política e nela reside a esperança de uma vida nova. A sua materialização reclama participação de vários partidos e movimentos, forte empenho cívico e político, inclusive de muitos cidadãos que, provavelmente, nunca haviam ponderado a necessidade de se envolverem ativamente na política.

Sem comentários:

Mais lidas da semana