Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
Por
muito que queiramos deixar para trás o ano velho para podermos passar a falar
de crises, troikas e memorandos como sofrimentos passados, todos os dias chegam
notícias a dizer-nos que "isso" ainda não acabou. O recém-divulgado
relatório de "Vigilância Pós-Programa" da União Europeia (UE) é uma
dessas notícias deprimentes. O que mais choca neste relatório nem sequer são os
abundantes puxões de orelhas ao bom aluno apanhado a "cabular". O
pior são os agoiros dos vigilantes e, mais ainda, a ameaça que eles por si
próprios representam.
A
palavra "risco" é a mais frequente do relatório de vigilância. Risco
de as exportações ficarem abaixo do previsto devido às más perspetivas
económicas nos mercados europeus. Risco de compressão da procura interna por
elevado endividamento das famílias e das empresas. Risco de disparo dos juros
da dívida pública em consequência da mudança na política monetária nos EUA.
Risco de sobrestimação das receitas fiscais no orçamento de 2015. Riscos, todos
eles, a desaguarem no risco que mais preocupa quem, como a Comissão Europeia
(CE), se põe agora na posição de cobrador do fraque: o de levar a dívida a uma
"trajetória explosiva" que culmine na falência do devedor.
Todos
estes riscos são reais, mas o maior é aquele que os vigilantes da CE não
referem - a própria Comissão e as suas políticas. A CE empurrou Portugal, a
Irlanda, a Grécia e a Espanha para resgates com o objetivo primeiro de livrar
os grandes bancos europeus da sua exposição às consequências das dívidas
públicas e privadas por eles alimentadas, colocando todos os riscos nos
cidadãos contribuintes. A CE promoveu, em todo o lado, duros cortes na despesa
pública e impôs desvalorização salarial a pretexto da necessidade de
"consolidação orçamental" e de "reforço da
competitividade". Com estas políticas aumentaram as dívidas e a Europa foi
colocada em estagnação e à beira da deflação.
Aí
está o risco que os vigilantes - a União e a sua Comissão - representam. Apesar
dos muito maus resultados da austeridade, os vigilantes continuam a exigir mais
cortes e mais desvalorização salarial, quando dispõem de poderosos
instrumentos, inclusive de pressão sobre "os mercados", que poderiam
ser muito úteis, sobretudo para os países que, como Portugal, deixaram de
dispor de um Banco Central ao integrarem a União Económica e Monetária.
Podemos
então esperar vida nova em 2015?
O
ano que vem, cheio de condicionalismos, anuncia-se como oportunidade de pôr
termo à governação que nos agravou os riscos. Isso já não é pouco. Mas, para
além do fim da governação desta coligação, o novo ano poderá trazer, ainda não
a concretização plena de uma vida nova no imediato, mas a esperança de um
futuro melhor, com o início da recuperação conducente a uma cura gradual
sustentada.
Essa
esperança não reside nesta UE e nas políticas que prossegue. A máquina da
União, mesmo sujeita a abanões políticos fortes, não muda facilmente. É perra.
Mais depressa se avaria do que se conserta. A esperança só pode residir num
sobressalto cívico capaz de substituir a governação que nos põe em risco por
uma outra que nos proteja dele. A solução depende de muita coisa no plano
nacional, europeu e internacional e, sobretudo, de uma tomada de consciência
coletiva quanto à necessidade de enfrentar os vigilantes, rechaçando as suas
recomendações insensatas e imposições criminosas de mais e mais
"consolidação orçamental" e desvalorização salarial.
Uma
governação capaz de nos fazer sair do buraco em que estamos precisa de
sustentar-se numa ampla maioria social de rejeição dos vigilantes, transformada
em maioria política abrangente favorável à recuperação. Uma tal governação
necessita de um mandato popular claro para defender a primazia das obrigações
com a democracia política, económica, social e cultural sobre os compromissos
com os credores financeiros.
É
possível uma viragem política e nela reside a esperança de uma vida nova. A sua
materialização reclama participação de vários partidos e movimentos, forte
empenho cívico e político, inclusive de muitos cidadãos que, provavelmente,
nunca haviam ponderado a necessidade de se envolverem ativamente na política.
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