O
que está em jogo é avançar ou não na capacitação da sociedade para disputar o
futuro do país contra a lógica dos mercados.
Saul
Leblon - Carta Maior, editorial
A
separação entre direitos políticos e jurídicos, de um lado, e direitos sociais
e econômicos, de outro, marca um período histórico específico da sociedade
humana.
O
período capitalista.
Aquele
em que a democracia promete mais do que o mercado está disposto a conceder.
Em
outros ciclos, sob o império romano, por exemplo, ou em sociedades
escravocratas, as relações políticas e as estruturas econômicas guardavam
asfixiante coerência.
Um
escravo, como o próprio conceito indica, era integralmente despossuído de
prerrogativas de quaisquer natureza.
Seria
um oximoro falar em escravo com direitos civis se um poder irrestrito detinha
o mando sobre o seu corpo, a sua vida e a alma.
O
escravo aos olhos do seu senhor era um ente desprovido de invólucro social.
A
convivência nunca amistosa entre capitalismo e democracia guarda laços com essa
raiz de polos antagônicos.
Do
conflito emergiram avanços sociais, políticos e jurídicos que abriram
espaços de direitos subtraídos ao capital, em uma relação ontologicamente
inconciliável entre os que detém os meios produzir riqueza e aqueles cuja
opção é vender seu corpo, sua mente –não raro, a alma-- para esse fim.
Quando
a realidade ao redor chapinha na água rasa das querelas em que cidadãos da
tipologia de um Eduardo Cunha, ou de um Aécio, mas também um Cândido Vacarezza
(o ex-deputado petista que se avocou um projeto de reforma política à imagem e
semelhança de sua particular visão de mundo) disputam o ordenamento da
democracia brasileira, é quase uma questão sanitária olhar para além dos seus
limites.
O
Brasil só não vai para o beleléu da ingovernabilidade se mirar acima do
tornozelo histórico em torno do qual o estamento conservador pretende
restringir a influência direta da sociedade na definição do seu futuro e do
futuro do seu desenvolvimento.
Não
são palavras retóricas.
O
que está em jogo é uma disjuntiva que deveria ser explicitada à população por
quem pretende ir além dos limites nos quais a estirpe dos ‘cunhas’
quer restringir a profundidade da reforma política brasileira.
O
que está em jogo é avançar ou não na capacitação da sociedade para disputar o
futuro do país com a lógica dos mercados.
O
descrédito atual no sistema político decorre da incontornável
constatação de que o grau de democratização das decisões no Brasil não propicia
à sociedade as ferramentas necessárias à superação de um impasse
econômico que está arrastando a nação para o beleléu da
ingovernabilidade.
Pior
que isso.
O
que o conservadorismo pretende, mais uma vez, é adequar a democracia ao
mercado, não dotar a sociedade dos meios para se impor a ele.
Esse
é o cerne da disputa em torno da reforma política (Leia o especial deste fim de
semana de Carta Maior sobre o tema).
Até
onde é necessário reformar a democracia brasileira?
Até
onde for preciso para construir uma cidadania plena, capaz de dar ao
desenvolvimento a sua destinação social e civilizatória.
Não
é uma discussão metafísica.
No
Brasil realmente existente uma família assalariada paga imposto sobre o
litro de leite; a república dos acionistas embolsa dividendos livre, leve
e solta, totalmente isenta de tributação.
O
mesmo se dá com os lucros remetidos pelo capital estrangeiro, que o governo
Fernando Henrique Cardoso isentou do imposto de 17% até então vigente no
Brasil.
Idêntico
critério plutocrático isenta integralmente os herdeiros, reiterando na esfera
fiscal a discriminação sócio-genética que condena os frutos do berço pobre ao
limbo.
Quando
se fala que o Estado está gastando mais do que arrecada e é preciso ‘cortar’,
dissimula-se um embate político que cabe ao glorioso jornalismo de
economia lubrificar em gordurosas perorações de meia verdade fiscal.
Uma
democracia capaz de taxar dividendos, remessas e heranças subtrairia ao
centurião Joaquim Levy a prerrogativa de agir como um Bonaparte, que
arbitra nas costas dos assalariados o principal quinhão de
sacrifício para regenerar as contas de toda a sociedade.
O
governo estuda taxar as grandes fortunas, heranças, lucros e dividendos.
Por
que não o fez logo de início?
Porque
o sistema político brasileiro está assentado no poder dos interesses que seriam
atingidos por esse cardápio de ‘ajuste’.
Uma
reforma política que mantenha intocado o poder do dinheiro de
sequestrar a democracia, precificando candidatos e partidos para inscrevê-los
entre os seus ativos disponíveis, não credenciará a sociedade para destravar o
passo seguinte que o Brasil requer.
O
impasse coloca em jogo muito mais que um embate entre PT e PSDB.
A
crise em curso marca uma mudança qualitativa em relação a
tudo o que o país viveu nos últimos doze anos.
Não
é apenas um intermezzo de ajustes para voltar ao que era antes, como
sugere a conveniência do discurso conservador.
De
agora em diante será estruturalmente mais complexo, inevitavelmente mais
conflitivo, governar em favor da maioria e da justiça social.
As
determinações internacionais são relevantes.
A
crise global é e será por muitos anos o novo normal. A China não crescerá mais
os dois dígitos, em média, observados nas últimas três décadas.
O
desmonte definitivo do Estado social na Europa arrastará o continente para uma
longa espiral descendente.
O
império americano não tem mais fôlego para se erguer e arrastar o mundo ao
redor.
Que
esse trem descarrilado avance pelo sétimo ano, na mais lenta, incerta e anêmica
recuperação de todas as grandes crises capitalistas do século XX, dá a medida
do quão longe se encontram as margens do rio revoltoso em que flutua o futuro
brasileiro
Mas
há distorções locais de igual gravidade.
Elas
não podem mais ser subestimadas, sob pena de se aleijar a capacidade de
resistência diante do moedor de carne conservador.
A
economia brasileira resistiu à lógica da restauração neoliberal nos últimos
anos, mas deixou aberto um flanco que agora ameaça reverter suas conquistas e
inviabilizar outras novas.
Esse
é o principal alicerce da crise em curso.
A
verdade é que a largueza das mutações sociais registradas desde 2003 não se fez
acompanhar de uma contrapartida de representação política suficiente forte para
evitar o risco do revés agora em marcha.
O
Brasil avançou nos últimos anos explorando rotas de menor resistência, indo
além delas em alguns casos e setores. Mas a crise global evidenciou os
limites dessa associação a frio entre desenvolvimento e justiça social.
Ao
bonapartismo do crescimento sucedeu-se assim o cesarismo do ajuste,
igualmente à margem da repactuação social, e ao custo de uma quase
catatonia das forças progressistas.
O
conjunto remete de volta à natureza singular da disputa em torno da reforma
política brasileira.
Ademais
de uma transição de ciclo econômico, e sobreposta a ela, há uma crise da
democracia brasileira que sonega aos interesses amplos da sociedade meios
para liderar um novo estirão de desenvolvimento com justiça social.
O
risco de o Brasil ir para o beleléu da ingovernabilidade a bordo de uma paralisia
econômica –que interessa ao conservadorismo fomentar-- não é
negligenciável.
A
saída existe e não é essa que o Banco Central pratica, de manter a conflagração
latente em estado de coma através de doses crescentes de juros (12,75%,
ou uma taxa real de 5,3%, mais alta do planeta)
O
desafio é encarar de frente uma lacuna de que sempre se ressentiu a agenda
progressista desde a chegada ao poder, em 2003.
A
lacuna da coerência entre meios e fins; entre o desenvolvimento que se quer
para o Brasil e a democracia necessária para construí-lo.
Essa
é a contradição que a crise escancarou.
Não
se incorpora 60 milhões de ex-miseráveis e pobres ao mercado sem mexer nas
placas tectônicas de uma ‘estabilidade capitalista’ alicerçada em uma das mais
desiguais estruturas de distribuição de renda do planeta.
Sobram
duas opções.
Avançar
e dar coerência estrutural e política à emergência desse novo ator, ou recuar e
devolvê-lo à margem de origem, colocando-o em modo de espera até a próxima maré
cheia.
Até
um novo ciclo de bonapartismo do crescimento acomodatício.
Não
é apenas um impasse conjuntural.
É
uma encruzilhada da democracia. O seu avanço, ou o seu acoelhamento
através de uma reforma abastardada, determinará se iremos para o beleléu
enquanto projeto de futuro solidário e próspero; ou se a sociedade
assumirá o comando do seu destino para ditar um novo curso ao século XXI brasileiro.
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