quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Macau: CHUI SAI ON, O MEDO DE EXISTIR

 

Marco Carvalho – Hoje Macau, opinião
 
De todas as ficções e convenções com que o Homem se apetrechou, o tempo é a mais subtil por ser também a mais substancialmente enraizada. É uma luta congénita, tão velha como a própria ideia de humanidade (de vida até, porventura), esta que mantemos com a sucessão dos dias e das noites, com a mecânica das estações e com a incessante metamorfose daquilo que no Universo nos é mais particular, o corpo e o espaço que habitamos.
 
Do indizível confronto despontaram duas das mais intrincadas e obscuras manifestações do engenho humano, o calendário e a religião. À extensão cronológica do tempo o Homem respondeu com a ampulheta na inglória tentativa de regrar o ingovernável agastamento do rosto, os cabelos que embranquecem. À extensão ontológica do tempo, o Homem respondeu com um panteão de divindades e a promessa improvável de uma redenção que mais do que resgatar o crente da inevitabilidade da morte, o liberta dos grilhões do tempo. Imprecisos e ilusórios, deuses e relógios são os instrumentos com que o Homem se dotou a si mesmo para se arrogar acreditar que tem, de um ou de outro modo, a marcha do Universo sob controlo.
 
Por mais dissonante que a perspectiva seja, não há que negar uma certa genialidade a quem teve a ideia de fatiar o tempo e de adoptar a revolução que a Terra cumpre em torno do Sol como a medida de todas as coisas. Um ano é período suficiente para que a esperança, tal como o cereal nos campos, desponte e esmoreça, mas também para que o mais determinado dos batalhadores sucumba ao desgaste acumulado e entregue os pontos. A mais deliciosa das fantasias cronológicas a que o Homem se habituou é a que se materializa no final de cada ano e se conjuga com uma certa omnisciência do tempo. A 31 de Dezembro poucos são os que não se entregam animalescamente à crença de que doze badaladas bastam para que se opere um milagre de renovação, que à mudança de número corresponderá por prestidigitação uma mudança de hábitos, posturas e valores. Ingenuamente anti-tétrico, o exercício não é de todo contraproducente, desde logo porque tem a si inerente um esforço de auto-análise, o que por si só é mais do que alguma vez se poderá dizer sobre quem nos governa.
 
Na lacónica mensagem de Ano Novo que espalhou pelas redacções dos jornais, Chui Sai On imprecou banalidades. Nada a que os residentes de Macau não estejam já habituados, poder-se-á pensar. O estranho, desta feita, é que o Palácio da Praia Grande não se tenha sequer esforçado por mascarar a grassa falta de originalidade dos votos do Chefe do Executivo para 2014. A assinatura é a de Chui Sai On, mas o conteúdo da mensagem – anódino e genérico – chega-nos de chofre de Pequim. A 18 de Dezembro, Xi Jinping lembrou a Chui Sai On que a sociedade de Macau se depara com diferentes problemas, que há exigências a que é necessário dar resposta e que há espaço para o aperfeiçoamento das acções dinamizadas pelo executivo da RAEM. O Chefe do Executivo plasmou os ditames na mensagem de Ano Novo com uma ligeireza que chega a soçobrar a indiferença, como se Macau – as ruas atafulhadas de gente, as rendas altas, os pequenos negócios sem futuro, o património e a memória histórica em risco, o caos no trânsito – não fosse mais do que uma fórmula política ou uma ficção constitucional. Um executivo que governa o circunstancial pelo olhos dos outros não respeita e não se dá ao respeito.
 
O Chefe do Executivo já habituou a população que governa à ausência e ao silêncio. Se há uma marca de água que define os quatro anos do consulado de Chui à frente dos destinos da RAEM ela é, sem dúvida, a da crónica falta de capacidade para decidir. Incapaz de se afirmar, de contrariar poderes instituídos, de decidir com pulso, o governo Chui Sai On 2.1 refugiou-se no expediente das consultas públicas, dos conselhos consultivos e nulidades que tais para disfarçar a ausência de norte governativo. Sem projecto claro de governação, sem solidez executiva, mas alimentada pelo ‘superávit’ económico gerado pelos casinos e ainda bafejado pelo beneplácito de Pequim – a quem a terra prometida da ilha de Hengqin abriu férteis janelas de oportunidades – uma liderança débil e autista vai sobrevivendo.
 
Ainda que não tenha o gingante carisma do seu antecessor, Chui Sai On tem, de certo modo, tarefa mais fácil à frente do governo que a que tinha Edmund Ho. Se não herdou de Ho Hau Wah uma locomotiva oleada, o Chefe do Executivo embarcou pelo menos num comboio em andamento: a economia mantém-se possante e desassombrada, os visitantes assomam a Macau em números nunca vistos, o fantasma de calamidades com a destrutiva densidade de uma pneumonia atípica pouparam a Região e nem os tufões incomodaram Chui Sai On com a feroz saciedade com que se insinuaram durante os dois mandatos de Edmund Ho. Não fosse a saúde financeira da economia do território benesse suficiente, o terceiro elenco governativo da RAEM conta também a seu favor com uma conjuntura política que é amplamente menos hostil e depredativa do que poderia, em teoria, ser. Por um lado, porque os frutos da política de liberalização do jogo começam agora a fazer-se notar com um impacto impossível de escamotear e casa onde há muito pão ninguém ralha e ninguém quer ter razão. Por outro, porque a Chui Sai On foi dado o beneplácito de quase governar sem que uma força política organizada lhe fizesse sombra. Os rudimentos de oposição que se materializaram em torno da Associação Novo Macau durante a regência de Ho Hau Wah implodiram no momento em que o organismo se tornou numa espécie de hidra com sintomas de esquizofrenia democrática, um bicho-de-sete-cabeças sem liderança segura e sem um projecto político que possa reflectir mais do que interesses e caprichos pessoais.
 
Com tudo para governar com vigor exemplar, o executivo de Fernando Chui Sai On comprometeu uma quadratura governativa favorável com doses de silêncio, distanciamento e inacção inexplicáveis. Nem uma inofensiva lei de defesa dos direitos dos animais, que aparentemente não teria lesado mais do que os interesses óbvios, o executivo conseguiu promulgar sem se afundar no ilusório labirinto das consultas públicas onde nunca se sabe ao certo quem é o público consultado. O laboratório de autonomia que se materializou há catorze anos com a constituição da Região Administrativa Especial está hoje inegavelmente enfraquecido pela relutância deliberativa que se apoderou do Palácio da Praia Grande. Um fraco rei, já dizia Camões, faz fraca a forte gente e não há mudança de ano que valha a Macau. Dois mil e catorze é o ano em que a RAEM verá certamente confirmado na liderança Fernando Chui Sai On, o Chefe do Executivo com medo de existir.
 

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