Fernanda Câncio –
Diário de Notícias, opinião
Percebo o horror
com que alguns terão visto em maio a aprovação do projeto de lei sobre coadoção
em casais do mesmo sexo. Terá sido um choque darem-se conta da existência,
entre nós, de casais do mesmo sexo com crianças. É compreensível: são crianças
iguais a todas as outras, não andam por aí com uma cruz na testa ou na lapela.
Não há notícias de tumultos nas escolas que frequentam, nos prédios e nas ruas
onde vivem com a família. Aliás, até há muito pouco tempo, não havia notícias:
podia acreditar--se que estas crianças não existem.
Quem se habituou a
pensar assim, quem gosta de pensar assim, prefere agarrar-se a essa ideia. É
por esse motivo que de cada vez que se fala de coadoção em casais do mesmo sexo
- a possibilidade de um dos cônjuges solicitar a um tribunal que lhe permita
adotar o filho, biológico ou adotivo, do outro cônjuge, filho esse que vive com
os dois, que é criado pelos dois e chama mãe ou pai aos dois (e que não pode
ter mais nenhuma mãe ou pai reconhecido pela lei, porque se tiver a coadoção é
interdita) - há quem fale de adoção por casais do mesmo sexo. Conduzir o debate
para a possibilidade de adotar, em conjunto, uma criança disponível para tal e
até aí sem laços com o casal permite dizer coisas como "as crianças devem
ter direito a um pai e a uma mãe"; "a adoção não é um direito dos
adultos, é um direito das crianças"; "não sabemos o efeito numa
criança de ser criada por dois pais e duas mães, por isso é melhor não
arriscar" - etc. Sobretudo, permite fingir que se está a pôr acima de tudo
a preocupação com as crianças, quando a intenção é a contrária.
Negar a
determinadas crianças o direito de gozar da proteção que lhes confere o
reconhecimento legal de dois progenitores em vez de um: é isso que quer quem
recusa a coadoção em casais de pessoas do mesmo sexo. Tem um tal horror aos
homossexuais que não hesita em sacrificar o bem-estar muito concreto das
crianças muito concretas que com eles vivem. Como bem sabe que isso é
vergonhoso, finge estar a tentar impedir que "se entreguem crianças a
homossexuais" e pede um referendo "para a sociedade decidir".
Entendamo-nos: as
crianças em causa na lei da coadoção nunca vão ter "um pai e uma
mãe". Têm duas mães ou dois pais e tê-los-ão sempre - quer a lei lhos
reconheça ou não. Não está em causa decidir com quem essas crianças vivem, quem
vai educá-las e amá-las e quem elas vão amar. Essa decisão não nos pertence. A
nossa opção é entre aceitar e proteger essas famílias ou rejeitá--las e
persegui-las. Entre dizer a essas crianças "a tua família é tão boa como
as outras" ou "a tua família não presta". Referende-se então
isso: "Tem tanto horror aos homossexuais que deseja que a sociedade
portuguesa decida em referendo discriminar os filhos deles ou acha que a lei
portuguesa deve deixar, o mais depressa possível, de fingir que essas crianças
não existem e o Parlamento lhes deve garantir os direitos que lhes faltam?"
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