Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
Pouco
a pouco, a União Europeia (UE), ou a Zona Euro, está a transformar-se numa
estranha espécie de federação - uma federação do poder financeiro e económico,
construída à margem das opiniões e interesses dos cidadãos, uma UE desprovida
de instituições realmente democráticas. Na Europa quem manda, formalmente, é um
Conselho constituído por chefes de Governo e de Estado donde emana uma Comissão
que lhe prepara e, em certa medida, aplica as decisões. Mas na realidade quem
está a mandar é o Governo de um dos estados-membros, a Alemanha, e o Banco
Central. O Parlamento - o único órgão eleito - debate-se para conseguir exercer
alguns dos poucos poderes que lhe estão atribuídos. A completar e a sustentar
os órgãos e as funções comunitárias está uma estrutura burocrática com milhares
de funcionários, vivendo e trabalhando em condições privilegiadas, num estilo
de vida em regra muito distante do comum dos cidadãos europeus. E, no meio
dessa grande massa, movem-se tecnocratas formatados pelo pensamento neoliberal
e pelas mordomias que lhes são propiciadas, que têm uma influência que impõem
aos poderes legitimados nos países.
Esta
federação em construção, ao mesmo tempo que vai esvaziando as instituições
democráticas dos estados-membros das suas prerrogativas - primeiro foi a moeda,
depois a autonomia orçamental, e progressivamente áreas de política que estavam
excluídas das competências da União, como as políticas laborais e sociais -,
torna-se cada vez mais impositiva e autoritária.
Um
dos passos mais recentes do caminho dessa federação foi a União Bancária,
saudada por entusiasmados europeístas. Certamente não por coincidência, a União
Bancária desencadeou um processo de fusões e aquisições bancárias que
tendencialmente irá reduzir o número de bancos europeus a um punhado. Ao mesmo
tempo, porque a imbricação entre a economia financeira (e especulativa) e os
grandes grupos económicos é grande, aumentará a dimensão e o poder das
multinacionais nas mais diversas atividades.
Quebradas
as amarras de dependência mútua anteriormente existentes entre sistemas
bancários nacionais e estados, os capitais bancários sentem-se encorajados,
agora num quadro regulatório unificado, a constituir-se como entidades
federais. Perguntar-se-á que mal virá daí ao Mundo? O exercício para identificar
todas as implicações é complexo, mas há uma que será certa: se os bancos de
base nacional já eram "grandes demais para falir", os bancos de base
europeia serão colossos cuja falência deixaria de ter um impacto local, para
passar a afetar toda a União.
Em
Portugal, como na maior parte dos países, se o processo avançar, falar de banca
nacional será um anacronismo. Toda a gestão da economia e a governação do país
ficarão muito mais dependentes de decisões externas. O que está em curso é,
pois, não a reforma de um sistema bancário normal, mas a criação de um sistema
bancário estruturante de uma federação financeira sem democracia.
Este
federalismo financeiro e, por arrastamento, também macroeconómico é um enorme
perigo: i) a sua existência não é compatível com a democracia; ii) as economias
reais, que produzem o fundamental dos bens e serviços que as sociedades
precisam e que sustentam os orçamentos dos estados, vão ficar ainda mais
aprisionadas pelas práticas predatórias da gestão privada dos grandes grupos
empresariais; iii) os estados e as suas instituições perderão meios e
capacidades para responder aos problemas das pessoas e para encetarem processos
de desenvolvimento autónomo; iv) os cidadãos serão espremidos até ao tutano se
quiserem ter acesso a direitos sociais fundamentais como a saúde, o ensino, a
proteção social, a justiça, e terão a vida subjugada às emergências de
constantes "crises" e da "ausência de alternativas".
A
União Europeia precisa de mudança de rumo, de profundas reformas institucionais
e de ruturas com as políticas seguidas, de revisão de tratados. Precisa de
instituições democráticas e de cidadania, não de federalismo financeiro. Se a
UE não conseguir ser espaço de cooperação e solidariedade efetiva entre os
países e os povos, desagregar-se-á, gerando graves riscos. As profundas
transformações de que a UE precisa não se farão com a atual relação de forças,
mas com propostas e pensamento novos.
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