Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
Na
reentrada em cena da época política, Pedro Passos Coelho é um tradicional. Em
2011, quando recuperou a Festa do Pontal como pano de fundo para a reabertura
pós-"silly season" do PSD, sabia bem parte da missão que o esperava:
aproximar-se de Cavaco Silva que havia lançado os últimos foguetes no Pontal em
1994 e romper com a proximidade de Durão Barroso e Santana Lopes à Universidade
da JSD em Castelo de Vide. Os anos de juventude partidária eram tempos passados
e - como canta Florence and the Machine - "Dog days are Over". Só que
a aproximação a Cavaco Silva nunca foi fácil e não lhe bastava reavivar o
espírito da festa. Quatro anos volvidos, Passos Coelho nunca encontrou em Cavaco Silva um
parceiro com quem dançar o tango ou fazer viagens alcatroadas. O betão estava
armado e já não se sentia a febre das auto-estradas. Mas já que era seguro,
Passos Coelho decidiu fazer a rodagem ao seu próprio carro e foi encontrar
amigos lá fora.
Os
seus verdadeiros amigos governaram a casa durante todos estes anos e para com
eles o nosso primeiro-ministro não resiste à demonstração de uma lealdade
enternecedora. A devoção com que Passos Coelho defende os amigos e credores
europeus é uma surto de lealdade comprometida para a infinitude dos tempos, uma
versão pagã de devoção pela fé ao eixo de Merkel, a liturgia do amor a crédito:
"Portugal só não entrou em bancarrota porque houve uma Europa
solidária", disse, sem conseguir explicar como conseguiu a proeza de
aumentar a dívida pública de 95% para 133% do PIB. "Foram três anos que
nunca mais esqueceremos", continuou. Nisso estamos de acordo.
Os
nossos credores praticaram algo vagamente conhecido por um nome: extorsão.
Consentida, claro, o que lhe retira a parte aguda do crime. Deram-nos o mínimo
e perdoaram-nos zero. Alimentaram-nos o ego do "bom aluno europeu"
para depois executarem, implacáveis, as suas políticas de empréstimos de
casino. Entretanto, empobrecemos. Entretanto, reformamos as nossas vidas.
Entretanto, muitos portugueses foram convidados a sair e vêem agora o país e as
famílias ao longe, com tristeza e alguma resignação. Este Governo criou um Muro
de Berlim entre os portugueses, dividiu para reinar e perdeu a soberania do
reino. Este Governo dividiu entre novos e velhos, públicos e privados, úteis e
inúteis, declarou ser insuportável o que é constitucional e inconstitucional o
Tribunal que resolveu desafiar como engodo e bode expiatório para atingir os
seus fins. O PSD marcou a sua "rentrée", mas está a ultrapassar pela
direita na hora de ponta. A campanha eleitoral para as Legislativas 2015
arrancou no Pontal e, assim sendo, Passos Coelho interrompeu as suas férias.
Não seria um banco a retirá-lo da espreguiçadeira.
O
que mais me comove no discurso de Passos Coelho é a forma tão pessoal como vê a
realidade e a descreve sem pudor. Como escrevia Paul Watzlawick, mestre
austríaco das teorias de comunicação no livro "A realidade é real?",
a ideia do nexo entre comunicação e a realidade é relativamente nova. A
configuração da realidade de Passos Coelho é um labirinto só seu, recente,
criado e alimentado por uma subserviência cega aos donos da Europa a que ele dá
suporte, ao apogeu do poder financeiro em detrimento do elogio da nobreza do
poder político, um labirinto criado por si e por aqueles que acreditam que
estas políticas de empobrecimento são uma realidade divina e inultrapassável, o
fim da história com credores de mão estendida à porta de um inferno que é o
nosso.
Cerca
de 45 minutos de intervenção. Intervalo, portanto. Passos Coelho acredita (e
são palavras suas) que está a meio do percurso e, sendo assim, só lhe desejo
que experimente um pouco da precariedade que foi semeando sem complacência no
país que o resolveu eleger. Já que só lhe ouvimos palavras vagas sobre a
promiscuidade entre a banca e o poder, auguro-lhe uma saída tão limpa como
aquela que terá escolhido para o período pós-troika. Auditada, escrutinada,
monitorizada, acompanhada pelos seus melhores algozes, aqueles que jura a pés
juntos serem os nossos amigos e salvadores.
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